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Panorama #2
Dez/onze/doze anos a colectar a estudar a dissecar W. G. Sebald prateleiras repletas com ensaios de-e-sobre W. G. Sebald cadernos organizados cromaticamente com infindáveis anotações a respeito de W. G. Sebald meu escritor favorito preciso de repetir o escritor que me instigara que me tirou da zona de conforto que me fez segurar a pena que me levou a Norwich Dunwich Suffolk Antuérpia e não só meus estudos sobre W. G. Sebald apesar da grande ameaça aqui ao lado das inúmeras misérias internas e externas apesar dos abandonos dos distanciamentos das batidas na porta apesar da janela aberta numa noite de inverno particularmente fria e tempestades de neve e é sabido que os pesquisadores de Sebald quase sem exceção a tudo aguentam ou seja permanecem ficam-se no mesmo sítio com uma curiosa mistura de deslumbramento e pavor e os danos causados por estas empreitadas as ruas sem saída pesquisador de Sebald prostrado com aquela triste convicção de não ter tempo para um trabalho desta magnitude trabalho de fôlego como se diz trabalho minimamente bom etc. etc. etc.
Publicado por P. R. Cunha / 28 de maio de 2023
Panorama #1
Há dez/onze anos tenho colectado uma data de materiais a respeito de W. G. Sebald meu escritor favorito de sempre um dos responsáveis ou melhor o maior responsável preciso dizê-lo agora que reflito e me coloco a escrever sobre essas coisas O MAIOR RESPONSÁVEL portanto o W. G. Sebald por eu ter me interessado pela literatura primeiro por toda a sorte de livros obscuros com temas não menos obscuros e depois pelo próprio hábito da escrita uma escrita diária obsessiva escrita de muitas formas avassaladora escrita-buldozer que devastou não somente aqueles que tentavam se aproximar de mim mas antes e principalmente a devastar as minhas entranhas enquanto eu mesmo já não me reconhecia de todo.
Publicado por P. R. Cunha / 27 de maio de 2023
Monotonia
Ao que parece muitos animais humanos não conseguem simplesmente levar uma vida com baixa entropia e o tédio e o marasmo os levam a praticar vilezas os absurdos mais disparatados e o fim do dia é todo remorso.
Publicado por P. R. Cunha / 26 de maio de 2023
Corpo rompido
Há qualquer coisa de irresistível no discreto assistir de um documentário sobre o sistema solar enquanto deitado na cama antes de adormecer a voz de barítono do narrador explica a órbita excêntrica de Tritão a lua glacial de Neptuno e os anéis translúcidos do planeta a distância mínima que um objeto que se aproxima de um corpo tão massivo consegue suportar antes de desintegrar-se devido às forças de marés gravitacionais ou seja limite de Roche.
Publicado por P. R. Cunha / 25 de maio de 2023
Paródia
Estamos distraídos e passamos por um bom momento e olhamos em redor com olhos criativos e queremos de certa forma guardar/arquivar este bom momento que nos traz toda a sorte de sentimentos prazenteiros como se lê nos livros de poesia. Depois o bom momento se dissipa e há quem sinta imensas saudades e faz de tudo para resgatá-lo ou seja ressuscitá-lo mas isso já não é possível justamente por serem irrepetíveis os contextos as distrações as espontaneidades daquele bom momento etc. etc.
Publicado por P. R. Cunha / 23 de maio de 2023
Desequilíbrios naturais ou darwinismo atualizado (Café Wittgenstein)
Nunca deixar de insistir na importância dos esconderijos mesmo que temporários para a fazenda de qualquer trabalho como se diz introspectivo. Hannah Arendt escrevera que sem o espaço ou o tempo da privacidade «longe da luz implacável e crua da constante presença de outros no mundo público não se pode alimentar a singularidade do eu». Um automóvel pode ser abastecido durante imenso tempo mas chega a altura em que o depósito não suporta mais gasolina e a coisa toda transborda ou explode. O mesmo parece acontecer com o criador que não se permite regenerar-se que está sempre à mostra em suma que não cultiva para si um espaço acolhedor protegido das inundações externas. E saber também que qualquer coisa produzida nesse refúgio uma obra literária digamos será jogada às livrarias e devorada e abandonada quase tão rapidamente quanto surgira no mercado livreiro.
Publicado por P. R. Cunha / 22 de maio de 2023
A vida privada de determinados escritores não é suficientemente espalhafatosa para despertar interesse
O excesso de livros por vezes me fatiga de uma maneira tão brutal que preciso de sair ou antes de fugir do escritório e respirar e não ver apenas fechar os olhos com ruído branco nos auriculares. Bernhard e Sebald e Cioran que me parecem maravilhosos escritores monumentais são para muitos desprezíveis e sem valor de maior. Não «compreendem» os venenos de Bernhard acham Sebald ardiloso e ironicamente prefeririam matar-se a ler Cioran que já nos cumes do desespero dissera que o suicídio sempre chega demasiado tarde. A antítese é um mau truque penso nisso enquanto volto para o escritório como que revigorado e tomo notas.
Publicado por P. R. Cunha / 20 de maio de 2023
Janelas para o vale
Certo colega ilustrador explicou-me que trabalhava com afinco demoníaco dia e noite pois pretendia adquirir para si os melhores equipamentos que um ilustrador pudesse ter o melhor estúdio e de facto logrou êxito e adquiriu tais equipamentos montou o próprio estúdio mas agora ele permanece horas deitado no luxuoso sofá e diz que não tem vontades e que o desenho tornara-se um pesadelo hostil etc. Gostava de insistir nessas idealizações artísticas de conforto de lugares-equipamentos-adequados como aquele escritor que reclamava imenso das algazarras urbanas e quando finalmente consegue fugir para a tranquilidade do campo para o ar sereno do campo para o isolamento do campo a casinha do campo a janela com vista desimpedida do campo quando finalmente encontra silêncio e solidão sente-se morto por dentro e já não escreve nada.
Publicado por P. R. Cunha / 18 de maio de 2023
Repetidas vezes
Personagem de Sartre sente as náuseas ao se deparar com o absurdo da própria existência ou antes com o absurdo de todas as coisas e oscila dentro de um autocarro que segundo nos parece dirige-se a nenhures. Albert Camus abre o já demasiadamente citado O mito de Sísifo com a pertinente provocação a saber se a vida merece ou não ser vivida o problema verdadeiramente sério aos filósofos suicidar-se ou permanecer-se. E num salto espalhafatoso esta hipótese de que a escrita só se faz possível enquanto tais questões ainda não invadiram completamente as ideias do sujeito que escreve um tipo que precisa de cultivar a inocência a ingenuidade do contrário é devorado pela angústia pelas ruminações pelo vazio pela paralisia e certa manhã levanta-se depois de uma noite terrível e ao escovar os dentes observa no espelho um mutilado como o rosto de alguém que sobrevivera a um desastre brutal.
Publicado por P. R. Cunha / 16 de maio de 2023
Falar sozinho
A cafeína é absorvida pelo organismo aumento considerável de energia a bloquear receptores específicos no cérebro liberação de norepinefrina dopamina acetilcolina serotonina sente-se alerta e disposto pupilas dilatadas enquanto levanta a chávena de café para um interlocutor invisível afinal ele andava a pensar muito no pai no avô no tio-avô andava portanto a pensar muito em fantasmas e escreve e está como que suspenso do espaço-tempo-momento-angular-momento-tridimensional-da-gravidade como a flutuar digamos a ter uma experiência reveladora/mística e depois que passasse o efeito da cafeína e relesse o que acabara de escrever todo aquele material tosco ridículo pastiche cafona/piroso coletânea kitsch de móveis almofadados e decrépitos dos 1980 quando voltasse a si talvez tentasse tirar o atraso do sono ou jogar-se-ia mais uma vez no precipício etílico o que já se tornara praxe um padrão.
Publicado por P. R. Cunha / 15 de maio de 2023
Recreio
Há um playground e vários escritores a brincar com os legos. Encaixam as peças e formam diversos tipos de blocos alguns blocos funcionam outros blocos ficam feios e imoderados alguns blocos desabam outros hesitam e os escritores roubam peças alheias e tentam salvar a própria construção de alguma maneira e vemos os legos de cores diferentes espalhados pelo playground. Quem passasse por ali talvez não compreendesse como aqueles excêntricos escritores conseguiam se mostrar tão satisfeitos diante dos legos e todas aquelas combinações possíveis e impossíveis mas a verdade é que se tentassem tirar os bloquinhos dos escritores eles de certeza iriam fazer um tremendo berreiro.
Publicado por P. R. Cunha / 13 de maio de 2023
Ziguezagues
O artista prepara as ferramentas e começa a se dedicar à obra com afinco. De facto um momento aprazível de gestação criativa e o artista se sente muito à vontade com as melhores expectativas pois está a fazer aquilo que sempre o apeteceu está a construir algo do nada convicto de que possui certo talento para o ofício e as casinhas miúdas e aconchegantes em redor e os troncos de árvore na diagonal e o gato tinhoso a dormir à porta da cozinha. Nada se move. Como costumam dizer poder-se-ia escutar um alfinete caindo. Até que pensamentos indecorosos assaltam o fluxo de consciência do artista até que uma obrigação ou uma conta a pagar ou uma memória que não cicatrizou expulsa o artista da redoma que criara para si mesmo e de súbito começa a ter toda a sorte de dúvidas e questiona-se de modo impiedoso e não está mais assim tão convicto e muito menos confiante e as mãos vacilam novamente.
Publicado por P. R. Cunha / 11 de maio de 2023
Nutrir-se à custa de outro
Eu não me lembro exatamente quando comecei a escrever mas de certinho que não foi cedo não nasci segurando um lápis como muitos contam por aí à guisa de mitologia ou monomania e dizem: desde que entendo-me por gente escrevo etc. mas se calhar isto assim se passa porque eu mesmo só fui me entender por gente demasiado tarde se é que de facto entendo-me por gente nesta altura já não faço a ideia talvez eu nunca me entenderei por gente de modo que antes eu tinha outras preocupações outras atividades e jogava o futebol colecionava selos com motivos aeroespaciais tinha o videojogo madrugadas e madrugadas de videojogo os olhos ficavam secos de tanto videojogo e mamã brigava: não vais longe se só ficares aí para o videojogo a tempo inteiro e papá não sabia o que dizer papá não achava tão ruim eu ficar para o videojogo a tempo inteiro ele inclusive muitas vezes jogava comigo escondido da mamã mas eu também ía muito ao cinema naquela época era moda ir ao cinema e uma garota nos convidava para ir ao cinema e segurávamos a mão dela durante algum filme assustador e quando voltava para casa enchia-me de televisão uma data de televisão programas vespertinos com aquela duvidosa qualidade 1990 e insisto só muito depois é que comecei a tomar notas ou melhor a rabiscar palavras e o desastre é mostrar esses rabiscos para outra pessoa e essa outra pessoa diz: nossa como tu escreves direitinho e é o início do fim alguém elogia algo que escrevemos e já era não há mais volta o parasita foi implantado.
Publicado por P. R. Cunha / 9 de maio de 2023
Remos
Há um rio com
águas turvas porque
tempestades
ao meio um bote
demasiado pequenino
luta contra a correnteza
que com imensa força
carrega tudo para o
penhasco da cachoeira
— tu estás naquele bote.
Publicado por P. R. Cunha / 7 de maio de 2023
Disciplinas
Quando há angústias e ansiedades e desassossegos desta natureza sabe bem escrever numa folha de papel. O operador de máquinas comparece à fábrica quase todos os dias igualmente o médico vai ao hospital o barbeiro ao salão e os desportistas treinam e participam de toda a sorte de competições por que razão haveria de ser diferente com os escritores? Se escrevo um bom trecho o seguinte já não sai com tantas semelhanças mas dirijo-me à escrivaninha mesmo assim motivado ou desmotivado pois as palavras dormem ou antes hibernam até que decidem que são horas de acordar.
Publicado por P. R. Cunha / 6 de maio de 2023
Casa de campo
O velho sr. Von Baier não lê jornais não acompanha os noticiários não sabe o que está a se passar ao Médio Oriente não faz a ideia do preço do petróleo se o homem já foi para Marte se a Terceira Guerra Mundial está para eclodir. O velho sr. Von Baier aprecia o próprio pequeno-almoço colonial às traseiras da quinta e alimenta aves com alguns bocados de milho. As aves adoram o velho Von Baier.
Publicado por P. R. Cunha / 5 de maio de 2023
Ao(s) leitor(es) do blogue
Há um público leitor no caminho? Público a respeito do qual o escritor nada sabe? Se calhar um curioso de passagem ou alguém que lê duas/três linhas e se aborrece ou mesmo alguém que percebe que sim de facto existe uma série amorfa de palavras por aqui mas não se dá ao trabalho de ler e desta forma poderíamos chamá-lo de leitor? Leitores-espectros e aparições esporádicas enquanto o escritor acorda no meio da madrugada com aquela inquietadora sensação de estar a ser observado? Esses questionamentos deixam o escritor impaciente ou antes exasperado talvez relutante os leitores bagunçam a vida do escritor ou seria o contrário?
Publicado por P. R. Cunha / 4 de maio de 2023
Pergaminho
Atormentado pelo fim da fazenda livresca fim do livro ou fim do próprio mundo um mundo passageiro bem verdade mundo efémero que durou quatro anos atormentado por não ter mais o objecto de adoração o motivo o propósito o levantar da cama o trabalho diário atormentado em suma pelo vazio e ele acaba por sucumbir a um esgotamento nervoso. O livro agora preserva a memória de algo longínquo. Como se tudo tivesse ocorrido numa «outra vida». E durante alguns dias se instalavam umas tréguas não declaradas. Momento de descompressão. Vai e respira. Ambos escritor-e-escritura comportavam-se como dois elementos suportáveis como se não houvesse conflito como se o futuro guardasse boas novas. O que nem sempre ocorre. Por vezes o futuro é apenas desolador e irremediável. Mas nunca se sabe nunca se sabe nunca se sabe.
Publicado por P. R. Cunha / 3 de maio de 2023
Estar-se nas tintas
Tomar sol
ao terraço
do café.
Publicado por P. R. Cunha / 2 de maio de 2023
Articulado
Não era bem o ruído que o incomodava mas o barulho humano artificial e impositivo e egoístico o barulho violador barulho do qual não se pode escapar.
Publicado por P. R. Cunha / 1º de maio de 2023
Escrevo este microensaio sobre fantasmas e não sei ao certo para onde ir. Minha ideia talvez fosse começar assim:
«Os fantasmas existem.»
Digo isso em voz alta e me parece uma afirmação tola e ingénua e até um bocadinho disparatada.
Meu pai morreu em julho de 2010. Acidente de automóvel. Durante anos não consegui lidar com essa perda. Ou não quis lidar não quis ter período de luto não quis fechar-me num quarto para reflectir. Não quis nada.
Meu pai vai voltar eu mentia para mim mesmo sabia muito bem que ele não voltaria mas repetia igual: meu pai vai voltar.
Se lembramos de alguém que amamos profundamente e esse alguém não está mais como se diz entre nós em suma esse alguém morreu e nos restam as saudades as lembranças.
Se calhar ainda «vemos» esse alguém caminhando pela casa ou está sentado silenciosamente na velha cadeira de leitura de sempre. Não sei.
Escutamos o artista favorito desse alguém e dizemos oh! é o Frank Sinatra o alguém gostava imenso do Frank Sinatra.
O perfume um tom de voz parecido que ecoa no mercado municipal que nos faz olhar para trás confusos e procuramos o alguém no meio da multidão as botas que utilizava os conselhos que exprimia os alimentos que evitava.
Fantasmas são criaturas da nossa cabeça? Isso é certinho. Mas no fim de contas o que não é criatura da nossa cabeça? Estás a ler este microensaio e o teu cérebro re-cria significados.
O texto não é absolutamente real. Permite uma data de interpretações e metamorfoseia-se de acordo com as circunstâncias. Espectros gramaticais.
Podes ter perdido alguém há pouco e tudo o que lês parece carregar uma sombra intolerável?
Ou nunca perdeste alguém e estás a ler o microensaio com uma leveza absurda quase a te divertires?
Os fantasmas tocam flauta.
Publicado por P. R. Cunha / 29 de abril de 2023
Bomba nuclear (Café Wittgenstein)
Quando escolhemos uma frase deixamos de escolher infinitas outras frases quando escolhemos uma palavra deixamos de escolher infinitas outras palavras quando escolhemos uma letra deixamos de escolher infinitas outras letras e quando escolhemos o ponto final fechamos portas.
Publicado por P. R. Cunha / 27 de abril de 2023
Irrealidade de se terminar (propriamente)
Ao final do primeiro esboço — cerca de quatro anos depois —, não houve lágrima, apenas um suspiro anestesiado.
Publicado por P. R. Cunha / 26 de abril de 2023
Dissipar-se
Escrevo o livro que é bem uma mensagem para a vida esta ilha distante mensagem para aqueles que me causaram dores àqueles que fiz sofrer para aqueles que acreditaram e apoiaram para aqueles que duvidaram e nunca acreditarão mensagem de vingança de rancores mensagem pacífica mensagem reconciliatória acordo tácito aproximações distantes vãs tentativas de participar (fazer/parte) um grito silencioso uma efémera nota de rodapé uma seda que desvanecesse na fogueira um alerta-a-mim-mesmo etc.
Publicado por P. R. Cunha / 24 de abril de 2023
Para resistir à decomposição
Personagem coadjuvante que tivera poucas experiências, e que preferia ficar trancada no próprio apartamento a lembrar, ou antes, a idealizar essas poucas experiências, cortava, acrescentava, multiplicava, subtraía, como se diz, a seu bel-prazer, sempre as mesmas lembranças, o mesmo romantismo, os mesmos suspiros — algo que ocorrera em 1973! —, as novidades, novas imagens, novas informações não contaminariam essas reminiscências, mausoléu do passado. Personagem teria uns 90/95 anos.
Publicado por P. R. Cunha / 23 de abril de 2023
Lenitivo(s)
Ela, pedra magnética
— e tu tens os pés de ímã.
Os livros te afastam:
de quem querias
afastar-te e de quem
não querias te afastar.
Da árvore com galhos
retorcidos pendia uma corda,
mas ninguém estava ali.
Jukebox toca
melodias inquietas
«Isto não é música de bar!»,
alguém grita.
Simples pensamentos
profundos como um lenço
impregnado de lágrimas.
Publicado por P. R. Cunha / 17 de abril de 2023
Estar algures em busca de distração, mas também de fracassos, esta mania de fracassos, de malogros, desilusões, este eterno arrepender-se
Electro-carta para o amigo das letras (com um ou outro acréscimo à guisa de efeito semântico): terminar livro é como terminar um longo e exaustivo relacionamento amoroso — «ainda não estou realmente pronto para te largar», «ainda não é a altura», «fica mais um bocadinho», etc. O sujeito se ilude imenso, cria toda a sorte de pretextos, lembra que não foi sempre assim, que um dia amaram-se como nenhum amante se arriscara amar, que o tempo parava, que o futuro era infinito, que o coração funcionava, esse tipo de coisa. Força do hábito, não termina, apenas espera o momento certo, afia a ceifa, observa. Até que numa determinada tarde (geralmente está a chover ou aos nevões), o livro se cansa de ser enganado, percebe a situação. Ou seja, na ausência de atitude, é o próprio livro que toma as rédeas, que se vai embora, e não há muito o que se possa fazer a respeito, foi nada mais do que uma consequência lógica.
Publicado por P. R. Cunha / 15 de abril de 2023
Dias contados
Lembro bem de ela falar: acabou, é isto… — disse com uma calma dispersa, com tamanha indiferença que até hoje essas palavras avulsas me assombram quando me vejo à toa num fim de tarde melancólico.
Publicado por P. R. Cunha / 14 de abril de 2023
Centro geométrico
E eis que me tornei aquilo que sempre temi: ser estranho que balbucia consigo mesmo diante dos livros de uma biblioteca.
Publicado por P. R. Cunha / 13 de abril de 2023
Aparentemente, não consegues ficar mais de dois dias sem escrever: do contrário, enlouqueces
rua da infância
cai uma pétala —
sismo de silêncio
Publicado por P. R. Cunha / 11 de abril de 2023
Schmidt
Depois de um longo dia a ser puxado, como se diz, para-cima-&-para-baixo, de ir para este e àquele sítio, a tomar chuva, a passar frio, a socializar, comportar-se desta e daquela maneira, sempre à espera de um colapso mental, em suma: depois de um longo e exaustivo dia a ser um outro, seguindo ordens alheias, as vontades alheias, os interesses alheios, (mais uma vez a ideia do boneco [marioneta {ver Fantoches, 6 de abril de 2023}]), Schmidt finalmente gritara: chega!, deixem-me em paz no meu gabinete.
Publicado por P. R. Cunha / 8 de abril de 2023
Fantoches
A ideia é basicamente esta: se o escritor vive algures, demasiado tempo fora, a lidar com gentes, com a imprensa, e dá palestras, e fala sobre os próprios livros, sobre as próprias técnicas, sobre as próprias rotinas, que tipo de caneta utiliza, a que horas senta-se à escrivaninha, se toma café ou chá, se chá verde ou de erva-cidreira, se tem tolerância à lactose, então acontece que não está a trabalhar, pode até iludir-se dizendo: ora, isto é também uma espécie de trabalho, mas não é, não está a exercer o ofício, não se dedica às leituras, não se alimenta de ideias, não dialoga com os mortos, não experimenta novas possibilidades, não se aprimora, em suma: torna-se marioneta, veste lá as roupinhas de escritor, óculos de escritor, poses de escritor, mas não passa de representação — mero boneco manipulável.
Publicado por P. R. Cunha / 6 de abril de 2023
Tábua
Estás na livraria diante de milhares-&-milhares de livros, e um deles dialoga com os teus sentimentos, com o teu contexto, com as tuas vontades, dir-se-ia que o livro é compatível, como uma peça que completasse (ou ajudasse a completar) o puzzle. Qualquer coisa de mágico quando isso acontece.
Publicado por P. R. Cunha / 5 de abril de 2023
Vira o disco e toca o mesmo*
*Como publicado na revista Cantina, Moçambique, jan/fev de 2023
Ao café com um amigo, confesso-lhe que estou saturado de romances (enquanto género narrativo e/ou relacionamento afetivo). Moço-encontra-moça-superam-dificuldades-e-permanecem-juntos. Fico com os azeites, porque a fórmula toda é de um desgaste que causa náuseas. Nunca fui romancista, eu digo, e já na adolescência não conseguia suportar esse tipo de literatura. E do que gostas, ele pergunta como se quisesse saber a meteorologia da semana. De prosa, eu digo, ficção, autobiografias inventadas, dar corda aos sapatos.
Publicado por P. R. Cunha / 4 de abril de 2023
Máscaras imprecisas (Café Wittgenstein)
Num dia sol
de aí chuva
no outro nevão
até que sol
de novo…
O que é um dia bom: quando posso me refugiar da realidade, mesmo que apenas durante um par de horas. Enquanto neste estado, dir-se-ia, de alheamento completo, dar formas à entropia, vida que coubesse numa caixa, ou num livro (que não deixa de ser uma espécie de caixa [caixa de papel, papelão]). Certas exigências e/ou expectativas de ordem e previsibilidade. Diante de incontáveis acidentes — se coloco a caneta em determinada posição, se deixo de lavar a roupa naquele horário específico, furo o sinal vermelho e assim estou como que a desmantelar cadeias de eventos, que mudam o tempo todo, com as minhas decisões, com as decisões alheias, mudanças atrás de mudanças, e resta o quê?, esta ilusão (artificial) de estabilidade, ou pior, uma continuidade imposta.
Publicado por P. R. Cunha / 3 de abril de 2023
Dietas
Há diante de nós esta piscina de infinitas impossibilidades. O zelador da piscina diz: muito funda. Vou até ao trampolim e pulo.
Várias gentes comem determinado tipo de alimento. É moda comer tal coisa. Não queres um bocadinho? Respondes: estou cá satisfeito, obrigado.
Alguns, no entanto, insistiriam: mas tens a certeza?, trata-se de um bom alimento, etc.
Publicado por P. R. Cunha / 2 de abril de 2023
Refúgio a calhar
Atentemos num exemplo característico: há sempre uma construção, alguém martelando coisas, automóvel barulhento, motocicletas barulhentas, homem que grita, mulher que grita, crianças que choram, anúncios luminosos, sirenes, balbúrdias eléctricas, música alta em cada esquina/café/restaurante — a tragédia urbana é realmente rica em lições a respeito.
Publicado por P. R. Cunha / 1º de abril de 2023
Boulangerie
Moça segura baguette
enquanto espanta
pombo com a perna
— o pombo foge.
Publicado por P. R. Cunha / 31 de março de 2023
Retratos
Giorginno foi convidado para um jantar na casa do prefeito. Visivelmente intranquilo, permaneceu no salão principal à espera das solenidades. Uma das assessoras do evento chamou o prefeito e disse que aquele ali era Giorginno, escritor de literatura. Cumprimentaram-se. O fotógrafo oficial sugeriu uma foto. Enquanto se ajeitavam para as poses, o prefeito deu três tapinhas nas costas de Giorginno e sussurrou: nunca li teus livros.
Publicado por P. R. Cunha / 30 de março de 2023
Empirismo
Então tu escreves para pessoas invisíveis?, ela perguntou com aquele tom sarcástico que ele tanto abominava, um jeito de falar calculado, sim, premeditado, justamente para aborrecê-lo. Escreves para as futuras gerações, ela continuou, para pessoas que irão te ler e de certeza terão imensa pena de ti, pobre filósofo, essas gentes do futuro dizem, pobrezinho, como deve ter sofrido, e tu já estarás soterrado num túmulo aos pedaços, num cemitério qualquer, e o coveiro pisa na tua lápide coberta de cascalho, erva daninha, e o coveiro não faz a ideia de quem tu eras, apenas mais um pedaço de carne apodrecendo num campo de mortos esquecidos, ela disse.
Publicado por P. R. Cunha / 29 de março de 2023
Ondas electromagnéticas
Brasileiro sentado sozinho à escrivaninha reflete sobre os absurdos do planeta, suplemento alimentar em cápsulas, ultra concentração, biografia do Frank Sinatra (tomo I, num ângulo oblíquo [estranho], setecentas e quarenta e sete páginas), relógio digital de pulso estilo 1990, Amanhã para sempre de Jorge G. Castañeda. Brasileiro sabe que não está louco. Contém 120 cápsulas de 3g. Batem à porta com força.
Publicado por P. R. Cunha / 28 de março de 2023
O que acontece (ou deixa de acontecer) lá fora
Vida humana dura em média uns oitenta anos durante os quais o sujeito imagina-se parte do progresso parte da construção de algo maior toma notas sobre esperança a desigualdade disto e daquilo participa de manifestações também escreve no próprio diário miudezas climáticas que faz bom tempo que faz chuva que faz neve que o sol racha-nos o cocuruto passeios na montanha críticas de filmes de livros que logo tornar-se-ão irrelevantes diversas coisas sobre arte de forma geral música teatro pinturas relacionamentos fracassados a morte deste ou daquele sim como é triste lidar com a morte a perda o luto e o universo tem 13.8 bilhões de anos a escala é realmente brutal.
Publicado por P. R. Cunha / 27 de março de 2023
Capturas
Por volta das 20h: estávamos numa daquelas regiões urbanas negligenciadas, caóticas, esquecidas pelos políticos, esquecidas até pelo próprio diabo e meu amigo apontou com frieza para a esquina à nossa esquerda: quatro assassinatos só nesta semana, ele disse enquanto apertava o botão do semáforo. Do outro lado da rua, um prédio cinza, repleto de rachaduras e cicatrizes de infiltrações. Na janela do terceiro andar, a luz pálida da televisão preenchia o cómodo. Levantei a câmera para fotografar e não consegui.
Publicado por P. R. Cunha / 25 de março de 2023
Ainda sobre os riscos de se conhecer/analisar a biografia de determinados escritores, um casou-se por conveniência a despeito de tudo o que escrevera sobre a inutilidade dos matrimónios, outro meteu-se num ridículo ballet político para manter regalias, quantos não aceitaram prémios-dinheiros-cargos de organizações duvidosas, basicamente: a importância do silêncio, da reclusão, dos segredos, do não participar, da obscuridade para a construção de um carácter menos indecoroso, e ajuda, também, se a figura idolatrada já estiver morta há, digamos, dois/três séculos
Que um bem-estar futuro (qualquer bem-estar [mínimo, que seja]) compense ou faça valer a pena estas ambições literárias, ambições dilaceradas — ao mesmo tempo, a certeza de que não, não compensará, não fará valer a pena, porque acúmulos de mais, acúmulos incuráveis de feridas, de torturas, de traumas, de rancores, etc.
Enquanto escrevo, pelo menos, um átimo de sentido. Propósito passageiro.
Tão logo coloco o ponto final e toda aquela angústia de sempre retorna, como se nada tivesse acontecido.
À noite, ópera.
Publicado por P. R. Cunha / 23 de março de 2023
Actos que precedem as coisas definitivas (dois preâmbulos)
Não importam os esforços e a boa vontade de uma pessoa — ela sempre será usada para algum interesse alheio e sempre usará outras pessoas para algum interesse próprio.
* * *
Na juventude, a personalidade está em construção, pode-se modificá-la, acrescentar, subtrair, alterar os materiais e o acabamento sem causar danos à estrutura. Porém, chega a idade em que isso já não é possível sem que se corra o risco de tudo desabar.
Publicado por P. R. Cunha / 22 de março de 2023
Hieróglifo, ou esconder-se à floresta
Imensas vezes, o único refúgio que temos é a nossa própria cabeça.
Há basicamente duas maneiras: modos exteriores (o que se escolhe mostrar ao mundo), modos interiores (aquilo que se passa «por dentro» [palavras, imagens, segredos, fantasias, bestiários]).
Colocamos as frutas no frigorífico e elas mantêm boa aparência; assim que as tiramos de lá, apodrecem.
Se penso numa narrativa, e ela faz todo o sentido, e até leva certa sonoridade poética, agradável, mas logo desaba quando a transfiro para a folha de papel. Sempre foi assim.
Publicado por P. R. Cunha / 21 de março de 2023
O monstro estava em paz (Café Wittgenstein)
Acho absolutamente compreensível a pessoa não querer levar uma vida filosófica, ele disse enquanto preparava o pequeno-almoço e tentava equilibrar o telemóvel entre a orelha e o ombro direito. Há pouco estive em Itália, fui visitar uma amiga a Salerno, e lá ninguém escrutinava a própria existência com questionamentos de toda a sorte, mostravam-se satisfeitos com o que tinham, com a quinta, com os animais, com os produtos da terra, ele disse, e vários já andavam na casa dos cem, seres humanos muito velhos e felizes. Agora eu te pergunto: quanto tempo vive um filósofo, quantos não estouram os miolos, e quantos ainda não morrem vivos, negligenciados na casa dos loucos…, percebes o que estou a dizer?
Publicado por P. R. Cunha / 20 de março de 2023
Batalhas perdidas ou curvas ao infinito
algures por aí há uma mulher
que roubou o elixir da vida —
lua encoberta
*
o som funerário do sino
desce para o vale
e transforma a água em gelo
Yosa Buson
Estou a ler Com meus dentes de cão, do Paulo Paniago — disponível nas melhores lojas do ramo literário.
O meu exemplar foi adquirido na Livraria da Travessa.
Digo isso a título de extravagância.
Livraria da Travessa não me ofereceu dinheiros para citá-la, mas eu os teria aceitado de bom grado, fosse o caso.
Quanto valeria publicidade num blogue que possui (segundo dados WordPress) quarenta e dois leitores diários?
Não é fácil falar sobre a obra de um amigo-professor-ouvinte-conselheiro. Pisamos em ovos, e o precipício nunca anda longe.
Sou um escritor de ficção, eu invento, eu minto.
Escrevo isto depois de algumas doses consideráveis de euforia etílica.
Se calhar, um dos papéis do misantropo é oferecer, sem filtros, acessos à realidade, às coisas como elas são. «Estás aí escondidinho atrás dessas mantas de ilusões», parece dizer o misantropo, «pois!, sai logo da cama!», e imaginamos o misantropo a levantar as mantas sem qualquer cerimónia, etc.
Paulo Paniago é escritor notável por discórdias prolíficas. Há sagacidades, sabedoria popular, animais humanos obscuros, frustrações…
…narrativa bem-humorada, indisposta, acrobática, fixe, elegante, distorcida, profética, lúcida, kafkiana, veloz, amazing, narcótica, vertiginosa.
Onde ler a obra?
Em casa, no autocarro, num café moderadamente movimentado. Silêncios fugidios, e, de quando em quando, uma ou outra pessoa a interromper.
Interrupções condizem com o carácter irascível do livro (a-arte-imita-a-vida-e-vice-versa). Mas, por momentos, esquecemos tudo.
Está-se à beira de um lago, árvores agitadas por uma ligeira brisa, folhas que oscilam, há uma limonada sobre a toalha de piquenique com motivos quadriculados.
Limonadas, sabemos, podem ser doces, azedas, amargas, naturais, verdes, suíças.
Com meus dentes de cão — limonada.
Publicado por P. R. Cunha / 19 de março de 2023
Analgésicos
Alguns fazem tricô, outros dedicam-se incondicionalmente à educação dos filhos, há quem aposte todas as fichas no trabalho, numa carreira respeitável, títulos, estabelecem metas improváveis, há os que praticam esportes radicais, escalam montanhas íngremes, acampam em glaciares, pulam de paraquedas de um arranha-céu, jogam-se às profundezas do oceano, levam o próprio balão aos limites atmosféricos, à Linha de Kármán para verem se conseguem respirar ali, enquanto eu: escrevo — válvula de escape, rota de fuga como outra qualquer. A mim me parece que a escrita com finalidades individualistas é a mais sincera. Atividade egocêntrica, absurda, em busca de prazer próprio, prazer efémero, como quem bebe garrafas de vinhos criminosamente dispendiosos sem pensar na conta a pagar.
Publicado por P. R. Cunha / 18 de março de 2023
Noctívago
Quando ele chegou ao restaurante, ela já estava à mesa perto da varanda com balaustrada ao estilo romano. Ela levantou o copo de mojito e com a outra mão convidou-o para sentar-se. Ele ainda achava inacreditável que pudessem se interessar por um escritor tão obscuro e, não se podia esquecer, pouco disposto a ocasiões sociais. «Peço imensas desculpas», ele tateava buscando o vocabulário apropriado, «o trânsito desta cidade…». Ela levou o copo de mojito à boca e permaneceu calada.
Sempé costumava dizer que cerca de 115% dos problemas dos escritores estavam de alguma forma relacionados a mulheres.
Estás quietinho no próprio apartamento, estás a tomar notas, a ler Kempowski, nada te abala, até que ela te convida para um jantar e tu, naturalmente, aceitas.
Publicado por P. R. Cunha / 17 de março de 2023
Relutância
É necessário imaginar Kaspar Hauser debruçado a tomar notas avulsas numa espécie de diário — a despeito da linguagem vacilante, do despropósito da empreitada, da tentativa hedionda de expressar-se. A despeito de tudo.
(A rotina do escritor por vezes tropeça em lugares-comuns [bares, livrarias/alfarrabistas, cafés, teatros, tabacarias, clubes de jazz].)
No café, alguns senhores ainda se entregam à leitura do jornal de papel. Em redor, a maioria tem o rosto azul da luz que vem do ecrã dos telemóveis.
A analogia é a de sempre: estão-ali-mas-não-estão-ali, etc.
Há os que sofrem mais com mudanças, com transições, com o novo, que, como se diz, «parece chegar a cada instante». Os que são devorados pelos torniquetes do progresso, enquanto tentam de todas as formas manter velhos hábitos.
Aqueles que escolhem não entrar na locomotiva desgovernada isolam-se, qual Kaspar Hauser, deixam de participar, vivem às margens.
Em suma: resistimos.
Publicado por P. R. Cunha / 16 de março de 2023
Lembra-te que tu também serás esquecido
Quantos escritores escreveram, digamos, na virada do século-19-para-o-20, quantos acordaram cedo para trabalhar no próprio manuscrito, quantos dedicaram horas e horas à fazenda literária, quantos buscaram casas editoras e foram recusados, quantos alimentaram a expectativa de ter leitores e foram sumariamente ignorados, quantos tiveram alguns fugidios momentos de relevância para logo depois caírem novamente na vala do ostracismo, quantos ainda são lembrados, ou antes: qual o nome desses fantasmas, que tipo de mensagens jogaram ao mar insaciável, etc., etc.
Publicado por P. R. Cunha / 13 de março de 2023
Aritmética aplicada
Talvez se apagássemos a luz, ela disse.
Ele ajeitou o travesseiro às costas. A conta é directa, ele disse, o dia possui 24 horas, então basicamente dividimos essas horas em duas categorias simplificadas, horas agradáveis / horas desagradáveis.
Não era bem isso que ela imaginara quando sugeriu apagar a luz, mas ela escutava mesmo assim.
Ele continuou: fiz um levantamento detalhado e cheguei à conclusão de que, em média, 19 horas do meu dia são desagradáveis, algumas horas chegam a ser insuportavelmente desagradáveis, mas não levei isso em consideração. Sobram-me, portanto, 6 horas de tréguas, em que procuro fazer o que tem de ser feito.
Ela fechou os olhos, como quem se preparasse para dormir e não conseguisse.
A regra de três é de facto inflexível, ele prosseguiu depois de um silêncio meditativo, 24 está para 100, ele faz as contas no ar com o indicador da mão direita, 19 está para X, 24 X é igual a 100 vezes 19, X é igual 1900 dividido por 24, o que significa que 79% do meu dia são desagradáveis.
A respiração dela sincronizada, cada vez mais profunda — já não lhe apetecia esforçar-se.
Publicado por P. R. Cunha / 12 de março de 2023
Isto é um conto de fadas
Escritor vivia num reino deveras instável. O rei, sempre muito atarefado com responsabilidades de rei, invejava a disponibilidade, o ócio, o foco, a resiliência, a disciplina desse modesto escritor. O rei ficara, dir-se-ia, obcecado pelo modo de vida do escritor, e tão logo percebera que seria impossível superar aquele audacioso homem das letras, partiu para os planos de vingança. Ordenou aos soldados mais agressivos do reino que fossem até à cabana do escritor e dissessem que ele estava expressamente proibido de escrever. Como o escritor não demonstrara nenhuma reação, mantivera-se firme e resoluto, o rei foi chamado às pressas. Tomado por uma ira ainda mais implacável, o rei chegou numa suntuosa carruagem, mandou destruir todo o material de escrita, despedaçar a escrivaninha, rasgar todas aquelas folhas e, por fim, incendiar a cabana. O escritor, no entanto, permanecia calmo, imperturbável, sussurrara que escrevia e pensava com a cabeça e não com objetos. Ao escutar a afronta, o rei puxou violentamente a espada da bainha de um dos soldados e com as próprias mãos decapitara o escritor.
Publicado por P. R. Cunha / 11 de março de 2023
Disparos
Conheço escritores que se sentam confortavelmente ao jardim & escrevem durante uma manhã soalheira, & quase conseguimos ouvir os pássaros, as folhas das árvores, o burburinho da água gaseificada com rodelas de limão — escrevem felizes, portanto.
É um gatilho que não me apetece. Se está tudo bem, se tenho tudo à disposição, enxergo a escrita com ainda mais desconfiança, torna-se uma atividade ainda mais supérflua, um mero exercício de estilo (como um miúdo que acabasse de aprender a andar de bicicleta e gritasse para toda a gente: vejam, sei andar de bicicleta! [engraçadinho de início, mas dali a pouco irrita]).
Moro numa zona industrial, abro a janela do apartamento & escuto o rugir das máquinas, o barulho metálico dos contentores, das carretas, & quando dou por mim estou à escrivaninha, furioso, com tipologia pesada, tresloucado.
Não estou a dizer que sofro ao escrever.
É outra coisa.
Inclinado às miragens gratuitas, talvez eu seja um «eterno» discípulo da Confraria Schopenhauer, da Escola Nietzsche, do Instituto Cioran — escrevo para amenizar, para suportar, para afogar, escrevo para calar-me.
Publicado por P. R. Cunha / 10 de março de 2023
Cansado
Estás cansado — cansado de escrever, cansado de não escrever, cansado de correr atrás, cansado de correr à frente, cansado de agir, cansado de procrastinar, cansado da espera, do sedentarismo, cansado da atividade, cansado da passividade, cansado de inventar, cansado de reinventar, cansado do nomadismo, cansado de blogue, livros, manuscritos, dicionários, cansado de acordar, cansado de dormir, dos jogos, das encenações, cansado de actuar, cansado de beber, de devorar, de ser devorado, cansado de verdades, cansado de mentiras, de estar-tudo-bem, de estar-tudo-mal, cansado dos advérbios de modo, cansado dos adjetivos, dos substantivos, cansado das gentes, dos noticiários, cansado dos filmes, das músicas, das artes, cansado de comprar, cansado de ser comprado, cansado dos dados, cansado dos gráficos, cansado das metas, do virtual, do desigual, cansado de revoluções, cansado do mais, cansado do menos, cansado da chuva, do sol, cansado da neve, cansado da pele, das texturas, cansado dos sabores, dos desassossegos — sim, estás cansado.
Publicado por P. R. Cunha / 9 de março de 2023
Vir-a-ser (Café Wittgenstein)
Estaríamos, portanto, fadados a sermos uma espécie constantemente insatisfeita, incapaz de realizar (de facto) alguma coisa? Sempre a expectativa, os dissabores, o quase, nunca o sonho por inteiro, apenas uma série de objetivos fragmentados, incompletos.
Alguém que construísse uma casa funcional, moderna, confortável, mas que sentisse constantemente a falta de algo, de objetos, de móveis, electrodomésticos, ou é a parede que tem um aspeto estranho, a cor do sofá o desagrada.
A casa está boa — alguém diz —, no entanto, precisa de ajustes.
Em suma: acabamento impossível, perpetuamente no futuro.
Publicado por P. R. Cunha / 8 de março de 2023
Cubos de gelo
Quando se escreve muito sobra a inutilidade de todas as coisas, entropia, o fugidio, o efémero, sobre narrativas artificiais criadas para manter o castelo de areia em pé, quando o sujeito se aproxima demasiadamente da falésia, e está a fitar o nada, o vazio, o despropósito, a ausência de sentido das próprias atitudes, inclusive a escrita, antes de mais nada a escrita: atividade monomaníaca, insanidade parcial, ideia-fixa, é preciso de ser um desajustado para dar prosseguimento ao livro?, dar cabo do livro («embarcamos, fazemos a viagem, atracamos ao porto e chega o momento de desembarcarmos»), quer dizer — cultivar uma série de miragens/ilusões, repetir para si mesmo: é um livro relevante, trata de temas relevantes, pessoas relevantes irão lê-lo, etc. Ou quando o próprio livro, a fazenda do livro, as pesquisas do livro, a tipologia do livro, a mancha gráfica do livro, epílogo do livro, prólogo do livro, quando todo o livro se torna o propósito, a obsessão, a única âncora que ainda não enferrujara, e está-se a uma ou duas braçadas do naufrágio.
Publicado por P. R. Cunha / 7 de março de 2023
A dificuldade de terminar o livro
A dificuldade de terminar o livro
não é questão técnica
de estilo ou gramática
é compartilhar quietudes
segredos subterrâneos
cinco anos de convivência
de angústias e desesperos
e agitações e demandas
sim mas também
de refúgios e confidências
e consolos e caminhos gentis
terminar o livro é livrar-me
do amigo que mostrava
dia-após-dia
a alegria das coisas simples
do sentar-me à mesa
das visões fantásticas
da mente atenta
da caneta
que repousa no caderno
após descrever filosofias
reveladoras —
é despedir-me da sinfonia
que levava ao infinito
todas as manhãs o sussurro
de notas suaves
ou ondas irascíveis
de acordes lentos
ou abalo sísmico irrevogável
vislumbre de felicidade
completude efémera
como o abraço de alguém
que já não existe mais.
Publicado por P. R. Cunha / 4 de março de 2023
Insuspeito
Por motivos dos quais não me orgulho, havia deixado de preparar o meu café matinal com aquele esmero ritualístico, como um aborígene que oferecesse o próprio coração aos deuses.
Tornara-se mera atividade despropositada, automática, quase tão previsível quanto apertar o botão da cafeteira eléctrica e esperar a chávena encher.
Eu havia me transformado numa máquina de café sucateada.
Na obra Non-lieux, o antropólogo Marc Augé definiu «não-lugar» como espaço onde se permanece anónimo, sítio que não possui características significativas, que não constrói referências: átrios de grandes redes hoteleiras, autoestradas, supermercados, aeroportos, rodoviárias.
A pessoa, acrescenta Augé, não vive e não se apropria desses espaços, «corredores» onde está-se apenas de passagem.
Em suma, minha rotina com o café transformara-se em não-lugar, numa atividade indiferente, sempre com a cabeça algures.
Até que hoje acordei com o abraço flamejante do sol às 5h43 da manhã com vontades de regressar aos velhos hábitos: dedicar-me ao cafezinho, moer os grãos, sem pressa, água mineral, coador…
Café bem-feito talvez seja um dos melhores antídotos para dias macambúzios. Felicidade indescritível, faz esquecer certas vicissitudes, ameniza fardos.
Sente-se tudo isso por dentro.
A coloração, o sabor característico, a fragrância de amores, ternuras, saudades, de noites confortavelmente solitárias a ler Kempowski deitado no sofá da sala.
Publicado por P. R. Cunha / 26 de fevereiro de 2023
Açude
Ele estabelece o que precisa de ser feito e o faz com dedicação — dir-se-ia — obsessiva. Coloca todas as forças (mentais & físicas) à disposição do projeto, arrisca tudo (vida matrimonial, amigos, reputações), não poupa nada, nem tempo, nem dinheiro, nem a si mesmo.
Há recompensa passageira, que é quando o livro parece escrever-se sozinho, e o autor observa aquelas palavras alienígenas a surgir numa torrente incontrolável.
Sente-se vivo, o autor.
Veículo de vontades alheias, como que possuído. Na plenitude desses recursos, sem se importar com fonte, gatilho, ou com as consequências de tais sacrifícios, todos os obstáculos desaparecem.
Até que algo acontece, mudança repentina de curso, naufrágio. As frases perdem o significado, porque grotescas, falsas, vazias, e os verbos dão ânsia de vômito.
Autor leva as mãos ao rosto e pergunta se não estaria a desperdiçar a própria vida, etc.
Publicado por P. R. Cunha / 23 de fevereiro de 2023
Sons produzidos por reflexões
Cabana. Fica a vinte e cinco quilómetros de qualquer rodovia pavimentada. Estilo Wittgenstein.
Floresta de árvores retorcidas.
Não há postes elétricos. À noite, pode-se ver a abóbada celeste. Infinitos pontos luminosos.
Era assim que ancestrais erguiam o pescoço para o firmamento? Milhões de olhos a observá-los lá de cima? Deuses vigilantes, talvez.
Os astros se misturam. Não é estrela, é Vênus.
Quando nos tornamos tão desencantados com os detalhes cósmicos? Cabeça baixa para não tropeçar. Um sol distante está prestes a explodir.
Quem liga?
Publicado por P. R. Cunha / 22 de fevereiro de 2023
Escreve
Meteras-te em confusão no trabalho? Escreve!
A moça com quem havias marcado um encontro não apareceu? Escreve!
Perderas as estribeiras no jantar de família? Escreve!
Ganhas dois mil dinheiros e gastaste quatro mil? Escreve!
Alguém disse que és um imprestável, vagabundo, preguiçoso? Escreve!
Pensamentos inescrupulosos a respeito da esposa de um amigo? Escreve!
Mamã e papá te odeiam? Escreve!
Esqueceras os pasteis de nata no forno? Escreve!
Em suma: foste atropelado pela vida?
Escreve…
Publicado por P. R. Cunha / 19 de fevereiro de 2023
Ginjais
Infinitesimal. Kazuma Okabayashi. A caneca branca com a marca do batom dela. Não te lembras? A cama ainda desarrumada. O sol que nasceu, mas ainda se esconde atrás das nuvens e das chaminés das fábricas o barulho do maquinário — ao qual já se acostumara. Garrafa de água com gás vazia sobre a escrivaninha. Há quanto tempo não entornas um copinho de licor de ginja? Ginja de Óbidos, a tua preferida de sempre, uma satisfação prazenteira que faz-te esquecer (bocadinho que seja) desta existência por vezes leve, muitas vezes nem tanto.
Publicado por P. R. Cunha / 18 de fevereiro de 2023
Máquina, descrever
É uma questão de não asfixiar a espontaneidade, porque, depois de um tempo, a empreitada torna-se «produção industrial» (ele abre e fecha aspas com indicador e dedo do meio): atingir metas, mil palavras por dia, separar algumas horas às revisões, e todo esse jazz. O gatilho da praxe é o café, que guia o cérebro àquela região misteriosa a que Tarkovsky chamara de Zona. A viagem, na falta de melhor termo, dura pouco, então precisas de aproveitar cada segundo. Trata-se de uma experiência tão reveladora, quase mística, que voltar ao mundo real é frustrante — agressivo, dir-se-ia. Certa vez, no Zoo de Birmingham, vi um cuidador tirar o bebezinho macaco dos braços da mamã macaco, e a atrocidade daquela cena é o que mais se aproxima do sentimento que me assola quando percebo que estou a sair do fluxo literário.
Publicado por P. R. Cunha / 16 de fevereiro de 2023
Planador
Papagaio-do-mar-do-atlântico, estou a observá-lo a um par de horas, a plumagem alvinegra, patas e bicos alaranjados, como se Paul Gauguin resolvesse pintar uma mistura de pinguim com tucano, ave marinha, certo desdém perante as obrigações do mundo, nada parece abalá-lo enquanto mergulha na água salgada, nem o faminto alcatraz-comum — que sobrevoa as falésias à espera de um descuido.
Publicado por P. R. Cunha / 15 de fevereiro de 2023
Visitantes
Quando estamos a ler um livro alheio, é como se a pessoa que escrevera aquelas palavras estivesse a abrir momentaneamente a própria janela para que espiássemos por dentro: percebemos alguns móveis, dois ou três quadros grudados nas paredes, a tapeçaria, o cantinho de uma biblioteca. O mesmo acontece quando alguém nos convida para jantar em casa, e muitas vezes nos contentamos em apreciar apenas algumas miudezas da sala, ou os utensílios do lavabo, mas o introvertido anfitrião não pretende nos mostrar, por exemplo, os quartos do segundo piso — ele apenas diz (ou temos de supor): há quartos no segundo piso, etc.
Publicado por P. R. Cunha / 14 de fevereiro de 2023
Letreiros
Por algum motivo, escutar sinfonias tornou-se acto de resistência, escreve Simon numa tarde de primavera — até quando chamaremos de música clássica? Mozart, o jovem rebelde de Salzburgo, teria odiado o rótulo, da mesma maneira que Ozzy Osbourne não compreenderia se chamassem o espólio dos Black Sabbath de «canções para elevador». Simon leva a chávena de café aos lábios: já tentaste sair do país sem os documentos necessários, sem as autorizações, os certificados, os comprovantes, os recibos?… Pois que os discursos de liberdade não passam de ladainhas, miragens. É como ler que, segundo a Declaração Universal dos Direitos Humanos, todas as pessoas têm direito à moradia, enquanto ao semáforo uma família sem-casa começa a montar acampamento.
Publicado por P. R. Cunha / 12 de fevereiro de 2023
Prescrições ritualísticas
Eis um trecho que poderia estar no livro que escrevo atualmente — e de facto está, com outras palavras. Sensação de inutilidade, de isolamentos (produtivos e improdutivos [a depender do dia]), uma espécie de mantra laico grudado na parede do escritório: imaginar, produzir, descrever. Inquietar-se, sem perder, como se diz, o fio da meada, etc.
Publicado por P. R. Cunha / 11 de fevereiro de 2023
Época em que as coisas ainda não tinham dado para o torto
Os antigos álbuns de fotografia — penso no nosso álbum «Férias em Cabo Frio» de 1989 — sugerem nostalgia porque, amiúde, guardavam momentos marcantes/significativos para observador & observados. Memórias seletivas em 36 poses. Levemos ainda em consideração que o rolo de filme é mais caro (em vários sentidos do termo) do que um despretensioso toque no ecrã do telemóvel: e ao escrever esta frase com certo azedume percebo o tanto que envelheci.
Publicado por P. R. Cunha / 10 de fevereiro de 2023
Etiqueta
Kuznetsov descia a escada rolante da estação de comboios e pensava no que escutara há pouco ao balcão da cafeteria um casal à esquerda a conversar sobre assuntos variados e a atendente à caixa registadora pedira a ele para inserir o cartão na máquina e aquele verbo («inserir») trouxe-lhe uma série de imagens eróticas à cabeça e enquanto Kuznetsov à guisa de bons modos tentava dissipar essas imagens o homem à esquerda disse que «cada um gera também aquilo que acontece consigo invoca-o não deixa de escapar àquilo que tem de acontecer» descia a escada rolante e pensava portanto nessa frase quando viu uma mulher distraída a sorrir para o ecrã do telemóvel e o comboio aproximava-se numa velocidade como se diz vertiginosa e Kuznetsov chegara a tempo para impedir que a mulher fosse atropelada ou pior dilacerada pelo comboio esquartejada e a mulher olhou para Kuznetsov virou-se e continuou a andar sem dizer palavra.
Publicado por P. R. Cunha / 9 de fevereiro de 2023
Sabotagem
Há alturas em que tudo parece andar bem, e o sujeito encontrara certo sossego, continuidades previsíveis, o clima é bom, a escrivaninha adequada, o trabalho flui, o corpo está saudável, mas, como Pascal bem sabia, o infortúnio do sujeito começa com a incapacidade de estar a sós consigo mesmo num quarto vazio, e por causa de circunstâncias biológicas que ainda carecem de maiores explicações algumas pessoas são sempre atraídas para o penhasco, buscam entropia, e se estiverem longe das falésias criam-nas dentro da própria cabeça — um abismo ainda mais terrível.
Publicado por P. R. Cunha / 8 de fevereiro de 2023
Ateliê
Sempre quis começar, escreve Köhler, narrativa ao modo W. G. Sebald em Vertigem, mas não esperava que em circunstância tão insólita, para não dizer perturbadora — adjetivo caro a Thomas Bernhard, escritor admirado tanto por mim quanto por Sebald.
Então, para tentar escapar a um período particularmente difícil da minha vida, meti-me num ateliê improvisado ao jardim da casa e comecei a construir uma mesa de mogno maciço. A ideia era talvez canalizar na madeira as minhas frustrações e principalmente a minha depressão: que naquela época tornara-se uma sombra difícil de ser dissipada.
Como forma de terapia indireta, imaginava uma família feliz em volta daquela mesa, todos sorririam, e falariam sobre os últimos acontecimentos, e brindariam, e reforçariam laços e coisas assim.
Dois anos depois, a minha própria família estava sentada a esta mesa cujo acabamento — vaidades à parte — mostrava-se de facto impecável quando tocaram a campainha. Sem delongas, um jovem com uniforme militar disse que o general Vogel, pai da minha esposa, meu sogro, havia morrido num trágico acidente ferroviário.
Convidamos o soldado para entrar e oferecemos uma chávena de café, a qual ele sorveu com modos mecânicos, quase como se fosse um robô programado para não reagir a estímulos mundanos. O jovem entregou-nos uma mochila com alguns pertences do general. Sem muito interesse, visto que há tempos havia cortado relações com o pai, a minha esposa largou a mochila no chão, perto das crianças.
O soldado fez vênia exagerada e comentou que o aguardavam no quartel, que precisava de partir e fomos acompanhá-lo até à porta. Ao voltarmos para a mesa, Babette, a nossa caçula, estava com um chapéu militar na pequena cabecinha, o quepe do velho Vogel que, diga-se a propósito, matou/assassinou mais de três dezenas de seres humanos em ocasiões variadas.
Publicado por P. R. Cunha / 5 de fevereiro de 2023
Era uma vez
Era uma vez um escritor que de tanto escrever acabara com a tinta de todas as canetas que possuía e para não perder como se diz o fio da meada fizera um pequeno corte na ponta do dedo indicador e prosseguira com o próprio sangue.
Moral da história: quando todos os dardos foram perdidos, jogue-se a si mesmo ao alvo.
Publicado por P. R. Cunha / 4 de fevereiro de 2023
Pastilhas contra o nervosismo
Há muito espaço — a lua e o planeta não estão assim tão próximos.
Nos últimos casamentos aos quais Hannah compareceu, sempre uma espécie de padrão: a fisionomia da noiva, como que desesperada, a perguntar-se: o que diabos estou a fazer da minha vida?
Temperamentos, astigmatismo, cair de bicicleta, o relógio cuco da vovó que metia medo, baterias viciadas de telemóveis viciados, shots de tequila, a cor roxa do Campari, ansiolíticos, cartas para responder, guitarra verde, kit viagem, o sol parecia uma bola de tênis que os miúdos mergulharam em álcool e acenderam com fósforo para brincar de «batata quente», ir ao posto de gasolina, comprar miudezas e nunca mais voltar.
Publicado por P. R. Cunha / 3 de fevereiro de 2023
Anonimatos
Dentro do coração —
tempestade de neve
Lá fora
brilha o sol
escaldante.
Por vezes, estar-se tão isolado que não se reconhece nada além das fronteiras da própria fantasia (artificial, como todas as fantasias). Ao defender-se com barreiras reais (i.e., as paredes de um quarto) e imaginárias (i.e., cadernos de literatura), cria-se cosmologia à parte — onde as leis de física não operam do jeito que toda a gente espera.
De aí tu não seres notado no meio da multidão, porque é como se não estivesses lá.
Depois de alguns dias sem escrever, tuas inquietações ganham ares de angústia (não a angústia de Sartre, nem a de Heidegger, mas a angústia de Kierkegaard [«aquela ameaça imprecisa e indeterminada inerente à condição humana, pelo facto de que o sujeito, ao projetar incessantemente o futuro, defronta-se com possibilidade de fracasso, sofrimento e, no limite, a morte»]).
Lembra-te.
Qualquer segurança que tu tenhas será sempre ilusória e passageira. Sabes direitinho que foste condenado à errância, ao imprevisível, ao efêmero. Não tens pátria, nem casa.
Publicado por P. R. Cunha / 2 de fevereiro de 2023
Fazendeiro que se ajoelhasse diante da colheita devastada
Hoje de manhã passou um veículo pesado a levar árvores na carroceria. Fiquei a observar aquelas mudas que cresceram em algum terreno fértil e agora estavam a ser transportadas alhures — para um jardim residencial?, área verde de um shopping mall?, praça arborizada? Sabe-se que as plantas têm essa invejável capacidade de se adaptar a vários tipos de terra, mas algumas podem não se sentir em casa em determinados solos: definham, tornam-se infrutíferas. Nesses casos, como diria um amigo meu que é biólogo e entende do assunto, «nesses casos, é preciso de ter paciência, ou lamentar a morte da árvore».
Publicado por P. R. Cunha / 30 de janeiro de 2023
Remorsos
Algumas (poucas) pessoas estarão ao teu lado — mas terás de tomar as decisões por ti mesmo. E quase de certeza tomarás decisões equivocadas, ou «pouco adequadas», porque quando escolhes uma trilha, deixas de escolher infinitas outras trilhas, infinitas possibilidades que não foram, e acabas invariavelmente a analisar esses caminhos alheios com uma consciência idealizadora, seletiva: com olhos mágicos, digamos assim.
Publicado por P. R. Cunha / 28 de janeiro de 2023
Aproximar-se das labaredas com destreza
Esta sensação de estar levemente embriagado, incapaz de me aprofundar no trabalho literário, falésias insondáveis por todos os lados — um cão que farejasse e tentasse reconhecer uma rua na qual nunca esteve.
Diz-se que o sol nasce e morre no horizonte. O dia: microvida.
Publicado por P. R. Cunha / 27 de janeiro de 2023
Itinerário
Apenas esquecimento
um cansaço passageiro
quarto arrumado
nova mesa de trabalho
busca de outros objetos
— a escrita consoladora
fica para amanhã.
Publicado por P. R. Cunha / 26 de janeiro de 2023
Obsoleto
Se olhares retrospectivamente, tudo parecerá inevitável. Era óbvio que morreria num desastre de automóvel, sempre afoito no trânsito; não à toa Ximena fracassara, vivia distraída; aquele ali perdeu os botões porque se aventurou ao abismo. Passado simplificado, quando na época havia dúvidas, incertezas, complexidades, havia caos, corações arrependidos, pensamentos sombrios.
Publicado por P. R. Cunha / 25 de janeiro de 2023
Semicírculos
O cérebro — este órgão gelatinoso responsável por 20% do consumo total de oxigênio do corpo humano, máquina de reconhecer padrões, sempre a buscar significados, casa de neurotransmissores que tentam construir a narrativa mais completa possível mesmo diante de uma perturbadora escassez de informação.
Por vezes, bate-se a cabeça e o cérebro chacoalha no líquido cefalorraquidiano.
Dói.
Para cada escritor bem-sucedido, há milhares de outros que sequer conseguiram ser publicados, pessoas munidas de bloquinhos e caneta que perambulam no meio de nenhures, como fantasmas invisíveis à procura de luz.
Publicado por P. R. Cunha / 24 de janeiro de 2023
Interromper-se
O sujeito está numa rodovia escura a dirigir o próprio Nissan Tiida. O relógio digital do painel mostra que são 2:25 da madrugada. Ele decide encostar o automóvel na berma. Os pneus passam por cima de pedras, areia, galhos partidos, folhas secas e param. O sujeito abre a porta e olha para o céu com infinitos pontos luminosos: tudo o que ele vê é ausência, silêncio.
Bebê também estava em silêncio dentro da barriga da mãe. Médico o arranca do conforto do ventre e, compreensivelmente, é homenageado com berros altos e lágrimas. Bebê não pediu para sair.
Publicado por P. R. Cunha / 23 de janeiro de 2023
Não se contrói prédio (decente) em dois dias ou terreno de areia à beira-rio
Quando chegava de uma viagem dessas, sentava sozinho no quarto, lia qualquer coisa, tomava um café, ficava satisfeito.
Tens sempre um caderninho e uma caneta no bolso. Aprendeste a andar com esses pequenos utensílios independentemente de ocasião/circunstância/destino/&tc. Alguém que olhasse para o teu bolso e perguntasse: o que levas aí dentro? Tu respondes: meu material de trabalho.
Ora, caderninho e caneta deitam-se em qualquer superfície (até mesmo na palma da tua mão), de forma que podes escrever em toda a parte — não há desculpa, ainda mais depois que adquiriste uns protetores auriculares eficazes.
Publicado por P. R. Cunha / 22 de janeiro de 2023
Sapo canta sobre a pedra do jardim
Por vezes chegamos a determinados sítios, olhamos para os lados, há montanhas tomadas pela floresta, um céu azul preenchido por nuvens rechonchudas, pássaros que sobrevoam os rios, o vento balança os cabelos e o sujeito se pergunta: estou a sonhar, isto é real?
Nenhum ser humano num raio de quê?, cinco, dez, vinte quilômetros… E numa altura escutamos as cigarras, ou o barulho do nosso coração.
Na cidade: todos os disfarces possíveis e imagináveis. Aqui: nenhum disfarce — máscaras caem.
As árvores dançam todas juntas, e os galhos cantam hinos de indignação.
Na floresta, obedece-se.
Silêncio, horizonte desimpedido, tudo como deve ter sido há séculos. Um filme passa pela minha cabeça: alguns livros publicados, um par de reconhecimentos literários, cada passo até ao, como se diz, «descanso derradeiro». Depois, desaparecem os livros, os prêmios, os jantares artísticos…, eu.
Este sítio não será assim tão tranquilo daqui a alguns anos. A balbúrdia sempre arruma um jeito.
Parte significativa da minha consciência diz que escrever não leva mesmo a nada, certa inutilidade neste ato de colocar pensamentos no papel; enquanto outra parte da minha consciência (igualmente significativa) diz que isto é a única coisa que sei fazer, que se não fosse pela escrita eu não teria motivo para me levantar de manhã, etc.
O andarilho com o próprio cajado, mais três cães (Chicotó, Luva e Leônidas), desbravam a mata fechada como um Fitzcarraldo sem norte, o barulho do rio, a cachoeira, a queda d’água, e toda a insignificância, o disparate, o efêmero — experiência reveladora em tantos níveis.
À noite, o canto arrastado dos insetos. Incontáveis pontos luminosos no céu, manta cósmica. As estrelas também não dão a mínima.
Uns fragmentos de paisagens que têm interesse para quem esteve lá, mas talvez algo minúsculo e monótono para quem apenas lê tais fragmentos.
Nem toda a gente partilha o mesmo entusiasmo.
De manhãzinha, pingos de chuva tamborilam o telhado da casa. Um sapo canta sobre a pedra do jardim, como se dissesse: já é hora de regressar.
Publicado por P. R. Cunha / 19 de janeiro de 2023
Privações voluntárias
Meio a brincar e meio a sério, o escritor disse que só cortaria o cabelo depois que terminasse o manuscrito no qual estava trabalhando. Como o cabelo dele não parava de crescer — chegara, inclusive, a um «comprimento inaceitável» (segundo os parâmetros da própria noiva) —, muitos passaram a acreditar que ele nunca terminaria a obra, enquanto outros, mais maliciosos, alimentavam rumores sobre uma possível desistência do escritor: não só do livro, mas também de toda a sorte de literaturas.
Publicado por P. R. Cunha / 16 de janeiro de 2023
Panorama
Perto da casa da minha infância — na qual mamãe ainda mora — há um parque com longa trilha que leva até ao lago. Durante o trajeto, o andarilho não precisa de pensar em nada, e as pernas como que se movimentam sozinhas. Dentro do parque há também um mirante, de onde avistam-se os prédios do centro da cidade, a ponte, a torre de televisão e, se virarmos para o sul, a varanda do quarto da minha mãe (por vezes com a diminuta figura dela à balaustrada, contemplando). A sensação que se tem é de que tudo ficará melhor: não perfeito, nem ideal, simplesmente melhor.
Publicado por P. R. Cunha / 15 de janeiro de 2023
Uma nuvem relacionada a outras nuvens (nefologia amadora [ou pequenas alterações podem levar a grandes consequências])
Sentar-me à mesa para refletir sobre os sofrimentos do mundo, ler Nietzsche, Cioran, o próprio Schopenhauer, mas também olhar pela janela e perceber um dia agradável e soalheiro. Se muito do mundo é representação elaborada pelo sistema cognitivo, faz-se necessário tomar os devidos cuidados na hora de abastecer esse sistema. Noutros termos: preocuparmo-nos não apenas com a dieta alimentar, mas também com os pratos de informação que consumimos diariamente.
Publicado por P. R. Cunha / 14 de janeiro de 2023
Monólogos interiores
A primeira palavra desenhada no papel, a frase que se segue, pensamentos abstratos que se tornam legíveis — processo que produz estado de êxtase de enorme intensidade —, a caneta avança depressa, como os dedos de um adolescente necromante sobre o tabuleiro ouija, cada átomo do teu corpo está envolvido nesta inextricável e enigmática atividade: é isto o que estás a ver acontecer.
Publicado por P. R. Cunha / 12 de janeiro de 2023
Panorama
Quão maravilhosa deve ser a vida de escritor — ele diz —, pelo menos se tirarmos as neuroses, as ansiedades, os distúrbios, as perturbações, os abandonos, as fobias, os envenenamentos, as vulnerabilidades…
Quando o próprio local de trabalho passa a ser classificado como um sítio inseguro:
«A minha escrivaninha está a afundar-se.»
Mas estou aqui pelo silêncio (o que sobrou dele).
Publicado por P. R. Cunha / 11 de janeiro de 2023
Ocasiões
Na minha juventude, eu jogava futebol praticamente todos os dias, depois voltava para casa e tocava bateria. Era esse o ciclo. Até que aos 16/17 anos descobri a escrita. Eu já havia lido algumas coisas de Poe, Lovecraft, Kafka, Púchkin, mas nada se comparava com aquilo, com o ato de preencher folhas em branco, exorcizar as próprias ideias. Eu pensei: isto aqui é mágico, alienígena, por que cargas demorei tanto, etc. etc. Mais tarde, já nos meus anos 20, tive a mesma sensação ao experimentar cogumelos. Lembro-me de ter olhado para uma amiga e dizer: «É como escrever literatura, parecidíssimo».
Publicado por P. R. Cunha / 10 de janeiro de 2023
Submerso
Não se sabe a verdadeira profundidade das águas escuras sobre as quais o mundo sorridente flutua — mundo de pedras e desertos, mísero átomo diante de um cosmos que está a expandir-se muito depressa.
Sebastián passa boa parte do dia sentado em uma poltrona estilo Kubrick-A-Clockwork-Orange-1972 no centro de um apartamento praticamente vazio. Fuma o cachimbo, serenamente desapegado, medita, não raro tira do bolso um pequeno caderno e toma notas:
A construção e a desconstrução de um outro ser humano depende daquele que está a observá-lo. Amamos ou odiamos de acordo com um conjunto arbitrário de regras que fabricamos, que estabelecemos.
Sebastián hesita, leva a mão esquerda à têmpora: de aí ser tão «agressivo» para o observador quando a outra pessoa resolve participar da equação caleidoscópica, e se mostra alguém completamente diferente de quem acreditávamos que fosse.
Publicado por P. R. Cunha / 9 de janeiro de 2023
Contradições elétricas
A chuva
o frio —
solidão
Escrever à máquina: mais que um método anacrônico, uma resistência.
Alguém diz: livro de papel, livro eletrônico, qual a diferença?, são palavras, o conteúdo é o mesmo.
Uma pessoa que se levanta cedo, está a se preparar para o dia, toma café na caneca favorita (presente, digamos, da filha, ou do cônjuge, ou talvez herança de um ente querido), experiência significativa. Agora, estás deitado no leito de um hospital, uma enfermeira injeta café na tua veia, ou talvez diretamente na boca, o tubo plástico encosta nos teus lábios, a luz branca do quarto causa-te náuseas.
Café.
O conteúdo é o mesmo, certo?
Publicado por P. R. Cunha / 8 de janeiro de 2023
Valsa à eternidade
O propósito, a razão, o significado de escrever é continuar escrevendo.
Como uma memória que nunca existiu, um fantasma que te envolve, e não te assusta, nunca fala alto — está sempre lá.
ESCRITOR (es-cri-tor [três sílabas, oito letras]):
Alguém que passa anos isolado, a praticar em segredo exercícios mentais de autotransformação e, por meio dessas técnicas, desenvolve extraordinário controle sobre a caneta.
Formas de vida baseadas em carbono / monólito.
Em outros termos: a escrita é algo que não desaparece, mesmo quando deixamos de pensar nela.
Scott Fitzgerald, Virginia Woolf, Hemingway, Philip K. Dick, Kerouac, Sylvia Plath, Lovecraft, Poe…
Às vezes, enlouquecer é resposta apropriada à literatura.
Publicado por P. R. Cunha / 7 de janeiro de 2023
Na meninice: viagens ao Rio de Janeiro; na velhice: tempestades em Brasília; no meio: todo o resto
Onde estão os limites da minha ilusão?
Um escritor que almejasse curar corpos e «almas» doentes.
As ondas
o cair da neve —
vento paralisado
Sonhei que estava dentro de um automóvel e caíamos de uma ribanceira. A queda parecia durar uma pequena eternidade. Vestígios da morte do meu pai? Possivelmente.
Todos os corações parecem felizes. Ao longe, um cachorro late (mas não me incomoda).
Publicado por P. R. Cunha / 6 de janeiro de 2023
Núpcias
Escrever como se fosse a primeira vez — grande desafio.
A rotina subtrai supérfluos, mas também embrutece, negligencia.
Um miúdo a quem ainda não ensinaram nada, e tudo o que ele sabe é aquilo que sente, sem conceitos estabelecidos, sem nomenclaturas, sem rótulos.
Criar coisas e deixá-las desaparecer. Depois, lamentar-se por não ter sido mais amável com elas.
Ir embora enquanto o mundo todo ainda se mostra aberto para as fugas.
A cadeira é a mesma, os livros em redor são os mesmos, a escrivaninha é a mesma, o escritor não é o mesmo.
Como é fácil uma rotina dessas desmantelar-se. Mas aqui não é proibido brincar nas ruínas.
De longe um clarão
como uma biblioteca ardendo
Publicado por P. R. Cunha / 5 de janeiro de 2023
Geometria euclidiana
Sabe-se que o comportamento de um escritor sobre a folha em branco sugere possibilidades sem fim. Cada escolha, cada vírgula, cada ponto…, tudo acarretará em outras escolhas, outras vírgulas, outros pontos, ad infinitum. E isto é verdadeiro — construir mundos não é assim tão simples quanto parece. No entanto, o que a atividade exige não é necessariamente uma escrita total, mas antes um tipo específico de síntese, uma redução aos elementos mais importantes daquilo que se quer contar. Assim, a caneta que se expande, e se retrai, e se bifurca em todas as direções, pode ser reduzida a um plano finito.
Publicado por P. R. Cunha / 4 de janeiro de 2023
Ouvidos internos — depois da tempestade, vêm outras tempestades
Início de ano. Digo a mim mesmo para tirar umas férias: trabalhaste demais, descansa. Vinte e quatro horas depois, lá estou eu angustiado atrás de papel e caneta para conter as vozes que transbordam a minha cabeça.
Coruja: símbolo de sabedoria, guardiã da Acrópole. Mito provavelmente inspirado pelos olhos grandes e pela aparência solene dessas rapinas nocturnas.
Sobre a minha mesa de trabalho há uma corujinha de pedra — chama-se Orwell. Está sentada perto dos livros do Kempowski com uma expressão severa, olhar fixo, inquisidora.
Uns olhos vidrados do tipo que encontramos, segundo Sebald, em determinados pintores e filósofos que, com recurso apenas à pura observação e ao puro pensamento, procuram penetrar nas trevas que nos cercam.
As corujas de verdade são feitas de penas, farta plumagem, asas longas, ossos adaptados ao voo, átomos, moléculas, e, assim com os seres humanos, espaços vazios.
Publicado por P. R. Cunha / 3 de janeiro de 2023
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