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Litoral

Formas de manejar inquietação — não necessariamente sofrimento, conceito interpretativo. «M. observava o entardecer lilás de Norwich, causava-lhe um encanto inominável; G., ao lado, sofria.» As buscas, no fim de contas, são distintas, cada um acaba por produzir estradas mais convenientes para as próprias ambições: e percorrê-las, a isto se chama viver (ou, pelo menos, tentar viver).

Publicado por P. R. Cunha / 13 de maio de 2024


Partida

Ela embarcou, está já dentro da aeronave, não consegue mais me ver, e mesmo assim fico a observar o avião parado. É, portanto, absolutamente inútil continuar ali: porém, não vou a lugar algum, permaneço no aeroporto até o avião ir embora.

Publicado por P. R. Cunha / 11 de maio de 2024


Curvaturas

Encontro com P. P. ao café da livraria. Estar com outro escritor é como observar a própria imagem invertida. Mostra-se portanto apropriada a figura do duplo — estás diante de um espelho (caleidoscópio). P. P. comenta: gostava de viajar e nunca olhar para trás, nunca retornar ao mesmo sítio, sempre adiante, sempre algures. Dir-se-iam que somos «espelhos excêntricos», por vezes côncavos, por vezes convexos.

Publicado por P. R. Cunha / 10 de maio de 2024


Docuficção

No documentário Nanook, o esquimó, o realizador Robert Flaherty tenta retratar o quotidiano dos inuítes «da maneira mais natural e espontânea possível». Um miúdo nativo que andava perto percebeu que aquilo que o senhor Flaherty estava a filmar não eram os esquimós propriamente: estamos actuando, dissera a criança. Também os inuítes do Árctico canadiano queriam se reinventar diante das lentes indiscretas de um roteirista «civilizado» — isso em 1922.

Publicado por P. R. Cunha / 9 de maio de 2024


Funeral

Será apenas coincidência levarmos flores tanto para quem nos apaixonamos quanto para os mortos? Não seriam ambos fantasmas, ruínas — corpos e sentimentos em constante decomposição? Ainda mais quando a pessoa amada recebe tais flores com a indiferença de um cadáver. «Ontem à noite, dei um belo buquê para F., ela nem se mexeu», etc.

Publicado por P. R. Cunha / 8 de maio de 2024


Estudos sociais

Qual o grau de complexidade alheia que se pode aguentar? O cérebro como um armazém, armário com caixas finitas, enchemo-las com toda a sorte de «dados». É nossa responsabilidade filtrar — dizer: isto entra, já isto aqui (apontamos com o indicador), já isto aqui, não entra. Um ser humano representa acúmulo de informações, sujeito que sofre, que arde, que guarda, repele, cogita, expande-se. Não tenho mais paciência para esse tipo de acréscimo. Canso-me. Hoje em dia, quando conheço alguém, invade-me certa preguiça, dói-me o outro.

Publicado por P. R. Cunha / 6 de maio de 2024


Confissões

Eu cá não suporto mais os textos de ficção. (BREVE PAUSA) […] Reformulo: a narrativa tradicional de ficção, com todas aquelas fórmulas batidas, e repetitivas, e enganadoras, com todas as previsibilidades da praxe. Sim, isso me entedia. Narrador onipresente que «lê» o que se passa dentro da cabeça de personagens. Não dou conta. Descrições detalhadas do candelabro da sala de estar da senhorita Gallagher, frases como: ele disse isso com um sorriso leve e estonteante estampado no rosto cuja juventude aos poucos e irremediavelmente se desvanece. Ainda admiram esse tipo de literatura? A mim não faz sentido, mete medo. 

Publicado por P. R. Cunha / 4 de maio de 2024


Meridiano magnético

E numa dessas escolhas imprevisíveis, num momento, como se diz, «conturbado», viramos a bússola da vida para outras direções, e atônitos perguntamos em que sítio, afinal, vai dar esta estradinha por onde não passa ninguém.

Publicado por P. R. Cunha / 3 de maio de 2024


Cumulonimbus

Subir montanha — caminho tortuoso à beira de um precipício indiferente, e isto causa ansiedade. Carrego no bolso do meu casaco de neve o bloquinho de anotações e a caneta. Continuo a percorrer a trilha até ao cume, onde, como me disse um nativo ao sopé da montanha, «o caminhante poderá apanhar todas as nuvens do mundo».

Publicado por P. R. Cunha / 2 de maio de 2024


Desfechos

Estou na chamada «estrada da vida» e percebo a aproximação de um veículo grande e pesado a carregar toda a sorte de problemas, dúvidas, angústias, etc. Certa vertente clínica moderna pede-me para enfrentar o veículo pesado, se possível abraçá-lo, aceitá-lo, ter resiliência. E o que eu faço? — saio do meio da estrada, deixo o veículo pesado passar.

Publicado por P. R. Cunha / 1º de maio de 2024


Geografia

É sempre o mais bonito —
o país em que
nunca estivemos.

Publicado por P. R. Cunha / 30 de abril de 2024


Consequências

Não te parece irônico, ele disse, não te parece irônico que cada escolha com a qual nos comprometemos faz com que deixamos de escolher uma quantidade absurda de outras possibilidades? No fim das contas, o arrependimento, os pensamentos de «e se eu tivesse ido pelo caminho inverso», o remorso, e as negações mostrar-se-ão efeitos colaterais inevitáveis.

Publicado por P. R. Cunha / 29 de abril de 2024


Prazos

É que toda esta tranquilidade — um dia acaba.

Publicado por P. R. Cunha / 28 de abril de 2024


Com muito esmero

Este caso que dá muito o que pensar: filho escritor recebeu a notícia da morte do pai, não se falavam há anos, e quando a pedido das autoridades foi buscar os pertences no apartamento do falecido — morto em um trágico acidente aéreo, conforme nos contam os noticiários —, percebera sobre a mesinha de cabeceira o exemplar do livro que havia publicado no início do ano, e se julgarmos pelas anotações nos cantos das páginas, o pai estava mesmo a ler a obra do filho com muito esmero.

Publicado por P. R. Cunha / 27 de abril de 2024


Ainda sob os galhos de uma macieira

Depois de quase dois anos sem utilizá-las por aqui, eis que aleatoriamente faço as pazes com as vírgulas. Algumas leitoras a perguntar o que, afinal, aconteceu com Bogdanov. Eu mesmo não faço a ideia. O facto é que abandonamos e somos abandonados numa periodicidade assustadora.

Publicado por P. R. Cunha / 24 de abril de 2024


Lições de anatomia LXXI

Vemos ao longe a figura diáfana de Bogdanov — cabeça erudita e exagerada e obscura e indiferente sob galhos de uma macieira que insiste em resistir às intempéries do inverno. As folhas e as mãos de Bogdanov não se mexem e é improvável que tal estado de repouso se altere: chegam portanto ao fim estas Lições de anatomia.

Publicado por P. R. Cunha / 22 de abril de 2024


Lições de anatomia LXX

Bogdanov está cansado. Ele está cansado de construir e de ter que destruir cansado de manter de falar de ouvir e de estar algures ele está cansado do embotamento das próprias ideias do intelectualismo egocêntrico do acúmulo de livros cansado dos seres humanos e dos encontros e desencontros cansado do barulho da claridade da cacofonia dos posicionamentos catastróficos cansado dos jornais cansado da arquitetura cansado dos museus… Sim. Bogdanov anda imensamente cansado.

Publicado por P. R. Cunha / 21 de abril de 2024


Lições de anatomia LXIX

Por experiência própria Bogdanov aprendeu a suspeitar dos sorrisos e das histórias extraordinárias que as pessoas contam e dos momentos de euforia aos quais elas se entregam e dos excessos — o que à primeira vista parece algo socialmente divertido pode ser apenas forma de ocultar certos desesperos internos.

Publicado por P. R. Cunha / 20 de abril de 2024


Lições de anatomia LXVIII

Precisaríamos compreender que depois de se acostumar com a solidão o escritor passa a desejá-la como um alcoólatra deseja o álcool escreve Bogdanov enquanto espera a chegada do comboio e se tivéssemos a possibilidade de comparar o cérebro de um usuário privado de entorpecentes e de um escritor privado de solidão é certinho que teríamos imensas dificuldades para distinguir um do outro.

Publicado por P. R. Cunha / 19 de abril de 2024


Lições de anatomia LXVII

Há qualquer coisa de libertador neste sentar-se à escrivaninha sem ter um tema específico escrever ao léu como se diz porque existe turbilhão de factores dentro de Bogdanov e se calhar demorar-se-ia uma pequena eternidade antes de ele esgotar-se um poço cada vez mais profundo uma onda que nunca vai quebrar à praia e esta confissão diária já que encarar a folha em branco não deixa de ser processo de revelação e revelação do melhor género pois longe do escrutínio alheio e eu cá também acredito acrescenta Bogdanov que o denominador comum do universo não é a harmonia dos corpos e sim a hostilidade a aniquilação indiferente da matéria o assassinato cego dos compostos orgânicos e inorgânicos.

Publicado por P. R. Cunha / 18 de abril de 2024


Lições de anatomia LXVI

A tendência natural de Bogdanov para o caos para a desordem para o inabitável fez com que ele se apegasse ainda mais às âncoras da literatura. Como se quisesse dizer: minha cabeça não coopera não se organiza então que eu pelo menos tenha algum domínio neste microcosmo aparentemente controlável — a escrita. De início essa era a justificativa para uma rotina regrada e inalterável. Porém aos poucos até mesmo essa pequena ilha de calmarias foi invadida por ventos furiosos e deixara de ser refúgio para se tornar outro sítio de autoexorcismo.

Publicado por P. R. Cunha / 17 de abril de 2024


Lições de anatomia LXV

A cama de súbito se transforma em bote salva-vidas e o quarto é todo mar escuro cujo horizonte se perde numa imensidão nocturna — Bogdanov deitado não se mexe. Eis um sonho recorrente que pode se mostrar fantasia aprazível ou pesadelo insondável a depender do desenlace da narrativa onírica.

Publicado por P. R. Cunha / 16 de abril de 2024


Lições de anatomia LXIV

Há manhãs em que Bogdanov sente que a própria vida encontra-se à beira do precipício. Bastaria um passo em falso de repente um olhar distraído para outra direção e a queda. De aí vêm os mecanismos de defesa — desejo de confinamento de agarrar-se aos livros da biblioteca uma conexão ou melhor uma metamorfose tão profunda que de várias maneiras Bogdanov deixaria de ser humano.

Publicado por P. R. Cunha / 15 de abril de 2024


Lições de anatomia LXIII

Não sejamos indiferentes a nenhuma fonte de inspiração escreve Bogdanov no bloco-notas. Mais uma vez esta imagem — olhamos para o vazio das coisas e tentamos descobrir o que o nada tem a nos dizer. O sujeito é expulso de um lugar para o outro um sem-ninho um sem-refúgio sempre em busca de um teto para trabalhar no manuscrito indo esconder-se cada vez mais longe não é mesmo não é mesmo não é mesmo?

Publicado por P. R. Cunha / 14 de abril de 2024


Lições de anatomia LXII

Bogdanov está agora a refletir: quantas pessoas já passaram pela minha vida e quantas ficaram e quantas se foram e que mais cedo ou mais tarde tudo será levado ao esquecimento inclusive eu mesmo — e ter esses pensamentos acalma o meu coração.

Publicado por P. R. Cunha / 13 de abril de 2024


Lições de anatomia LXI

O nada que nos rodeia o vazio que conforta e que por vezes também nos açoita com fúria os caminhos que nos levam ao mar ou às alturas de uma montanha de gelo escreve Bogdanov.

Publicado por P. R. Cunha / 12 de abril de 2024


Lições de anatomia LX

Bogdanov pensa nos livros na própria escrivaninha repleta de possibilidades na folha à espera de ser preenchida a dopamina que estimula os mecanismos de recompensa e aumenta a motivação além dos sentimentos de euforia causados pela noradrenalina a alquimia do cérebro a todo vapor as respostas fisiológicas Bogdanov também percebe a frequência cardíaca acelerada sim «um coração de corrida» como ele costuma dizer os comportamentos obsessivos para simplesmente sumir e entregar-se aos encantos da escrita.

Publicado por P. R. Cunha / 11 de abril de 2024


Lições de anatomia LIX

Há uma cidade no deserto — lá encontramos Bogdanov.

Publicado por P. R. Cunha / 10 de abril de 2024


Lições de anatomia LVIII

«Não me admira que exista uma tendência à loucura entre os escritores» Bogdanov diz isso meio a brincar. O que move a vida desses pobres diabos é a literatura e muitas vezes não conseguem praticá-la com a dedicação que gostariam. Empregos a tempo inteiro filhos dívidas casamentos demandas socializações diversas e ainda precisam de arranjar brechas para escrever e calha que não escrevem nada daí ficam furiosos doentes perdem a cabeça tornam-se melancólicos e quantos são trancados num asilo para poderem se acalmar um bocadinho e de lá nunca mais saem…

Publicado por P. R. Cunha / 9 de abril de 2024


Lições de anatomia LVII

Bogdanov aproveita todo o tempo de espera para ler/folhear qualquer coisa — dentro do táxi ou numa estação de comboios em pé na fila do banco enquanto aguarda alguém à mesa do café está sempre com algum livro no colo. Em casa nada de televisão de forma que Bogdanov dedica-se à escrita e às leituras sistemáticas e quando o faz gosta de dizer a si mesmo: esta altura da manhã é sagrada.

Publicado por P. R. Cunha / 8 de abril de 2024


Lições de anatomia LVI

Isolar-se não ver ninguém não falar não ouvir permitir-se esquecer o refúgio a desintoxicação de informações o cérebro silencioso os distanciamentos cruciais para os hábitos literários de Bogdanov. 

Publicado por P. R. Cunha / 7 de abril de 2024


Lições de anatomia LV

Lidar com a escrita nos períodos em que tudo vai bem e funciona a cabeça criativa e as ideias como que não têm fim — isso é de certo modo fácil. Se queres testar a verdadeira capacidade de resistir de um escritor diz Bogdanov precisas de encará-lo nos dias de trevas quando absolutamente nada acontece e a página vazia é quase um atestado de óbito.

Publicado por P. R. Cunha / 6 de abril de 2024


Lições de anatomia LIV

Bogdanov sentado à escrivaninha toma notas e por mais que tentássemos não conseguiríamos nos aproximar — seria antes uma aproximação meramente física mas ele estaria algures: muito longe.

Publicado por P. R. Cunha / 5 de abril de 2024


Lições de anatomia LIII

Escritores tentam encarcerar as complexidades do mundo dentro dos limites previsíveis de um pedaço de papel escreve Bogdanov no bloco-notas cujas páginas estão quase todas preenchidas com diversos trechos literários inícios que não deram em nada observações aforismos críticas apontamentos filosóficos — «muitos julgam fácil o livro que está pronto nem pensam nas trevas que antecederam a publicação» ou «jamais buscarei aplausos» ou «este navio dos loucos está a afundar» — e com essas anotações a ilusão de ter o caos sob controle anestesia passageira contra os efeitos colaterais da entropia etc.

Publicado por P. R. Cunha / 4 de abril de 2024


Lições de anatomia LII

De uma carta destinada ao amigo húngaro. Bogdanov diz: o incurável hábito de escrever domina muitos mas por que escrevemos? A mesma coisa de novo e de novo e de novo com outras palavras e se calhar repetimos as mesmas palavras em meio a guerras catástrofes toda a sorte de doenças traumas exaustão quase não conseguimos segurar a caneta o corpo dói a mente vacila e mesmo assim lá estamos nós sempre a escrever. Será que o fazemos para atestar que a despeito dos absurdos biológicos nascemos numa pedra cósmica a que chamamos de planeta Terra e vivemos um bocadinho e não vamos sair daqui sem ao menos deixar algum tipo de vestígio?

Publicado por P. R. Cunha / 3 de abril de 2024


Lições de anatomia LI

Bogdanov está a escrever livro e apesar de todas as complexidades e de todos os desafios e de todas as distrações em suma apesar de todos os percalços ele acorda às 5h45 da manhã toma banho gelado prepara o café senta-se à escrivaninha e a narrativa como se diz «ganha corpo». É preciso de ter disciplina/continuidade. Bogdanov não sabe ao certo quando chegará ao ponto final se daqui a alguns meses ou anos se o trajeto será pacífico ou devastador mas já passara por isso tantas vezes — o suficiente para perceber que vai lá chegar.

Publicado por P. R. Cunha / 2 de abril de 2024


Lições de anatomia L

O teu livro predileto será um reduto um bom e fiel amigo que pacientemente aguardará o teu retorno sem criar casos e sem cobrar nada em troca e é bem por isso que Bogdanov sempre preferiu as companhias de papel.

Publicado por P. R. Cunha / 1º de abril de 2024


Lições de anatomia XLIX

Por vezes acontece de Bogdanov ter alucinações literárias logo pela manhã e passará o dia inteiro como se num estado de transe sem saber ao certo em que «lado» está se real ou imaginário se fantástico ou corriqueiro — vê monstros florestas dinossauros voadores impérios arruinados fadas miúdas que falam idiomas estranhos e parecem zombar de Bogdanov sem o menor pudor.

Publicado por P. R. Cunha / 31 de março de 2024


Lições de anatomia XLVIII

Bogdanov coloca o vinil do Frank Sinatra para tocar 78 rpm The Columbia years (1943-1952) bloco-notas aberto: é comum associar a imagem do escritor aos loucos um Quixote desvairado a empunhar lápis e caneta palavras para todos os lados em defesa de honra e de caráter e de privacidade e do direito de poder escrever em silêncio e de manter o castelo protegido — em defesa portanto da própria existência.

Publicado por P. R. Cunha / 30 de março de 2024


Lições de anatomia XLVII

Por mais que Bogdanov se esforce para se mostrar equilibrado ele sabe direitinho que não existe neutralidade enquanto está a escrever — há sempre qualquer expectativa uma dor a ser mitigada a descrição de um encontro adorável com outro ser humano uma fuga um refúgio uma ferida antiga que nunca cicatriza.

Publicado por P. R. Cunha / 29 de março de 2024


Lições de anatomia XLVI

Pela manhã depois de preparar a chávena de café o apartamento em silêncio Bogdanov está sentado à escrivaninha e aos poucos a escrita o leva ao fluxo de consciência àquele estado em que os princípios corriqueiros de realidade já não funcionam de forma plena e as vozes que aparecem nos pensamentos de Bogdanov são dele ou vêm de outros (adicionar ponto de interrogação aqui) a pergunta é pertinente afinal ele transcreve essas vozes e as chama de «minha literatura» mas e se essas vozes não passarem de fantasmas de leituras passadas cacofonia de todas as autoras e de todos os autores que Bogdanov já leu seria então o escritor um aglomerado de miragens?

Publicado por P. R. Cunha / 28 de março de 2024


Lições de anatomia XLIII

Escrever é perseguir alguma coisa escreve Bogdanov no bloco-notas e por vezes essa coisa é tão abstrata e ilusória que o próprio escritor não percebe ao certo do que se trata. A semente no entanto foi lançada germinará se receber os devidos cuidados e Bogdanov sabe: há sementes que se tornam plantas grandes e outras que se tornam plantas miúdas.

Publicado por P. R. Cunha / 27 de março de 2024


Lições de anatomia XLII

Pode acontecer também de Bogdanov sair com tanta pressa e esquecer o bloco-notas em casa ao que enquanto espera para ser atendido pelo oftalmologista é atacado por uma matilha de narrativas e sem ter como anotá-las precisa de inventar testar e memorizar tudo na própria cabeça e eis Bogdanov muito agitado e confuso sem dizer palavra para que as ideias não se dissipem antes de ele voltar à escrivaninha e colocá-las no papel.

Publicado por P. R. Cunha / 26 de março de 2024


Lições de anatomia XLI

Aos domingos Bogdanov entrega-se à prática da pescaria. Rema o pequeno bote até ao meio do lago lança a vara e espera. E como Bogdanov não consegue evitar as associações literárias ele pensa que escrever também é um acto de expectativa. As ideias ele diz boiam num reservatório de possibilidades e o escritor tem de fisgá-las para então encaixá-las no texto — apenas precisamos de ter paciência e aguardar. 

Publicado por P. R. Cunha / 25 de março de 2024


Lições de anatomia XL

Bogdanov sabe que preencher o bloco-notas com toda a sorte de ruminações é apenas mais uma vã tentativa de assimilar as inúmeras complexidades em redor. Queremos afinal compreender ele diz para si mesmo mas a longo prazo nada disso sobreviverá: comidas de vermes tanto eu quanto o meu bloquinho de anotações.

Publicado por P. R. Cunha / 24 de março de 2024


Lições de anatomia XXXIX

A partir do instante em que o escritor traduz pensamentos numa folha de papel essas representações deixam de ser somente dele e Bogdanov passa a observar o texto a ganhar vida própria como Pigmalião diante da estátua de Galateia que de súbito começa a se mover sozinha.

Publicado por P. R. Cunha / 23 de março de 2024


Lições de anatomia XXXVIII

O atleta antes de praticar qualquer modalidade precisa de aquecer e esticar os músculos do contrário sofrerá lesões. Ao que o escritor acrescenta ainda Bogdanov no bloco-notas o escritor também tem que preparar o próprio cérebro se quiser utilizá-lo adequadamente. Vemos portanto o atleta a levantar pesos e a alongar o corpo já o escritor lê livros e absorve filosofias.

Publicado por P. R. Cunha / 22 de março de 2024


Lições de anatomia XXXVII

Bogdanov tem esta irremediável obsessão em terminar tudo o que começa. Com mãos enormes que mais parecem patas de rinoceronte ele avança de maneira hábil e disciplinada através das páginas do próprio manuscrito — como se alguém conseguisse tocar violino com a lâmina de uma foice e o som saísse perfeitamente afinado. 

Publicado por P. R. Cunha / 21 de março de 2024


Lições de anatomia XXXVI

É certo dizer que ideias narrativas podem surgir repentinamente mas o escritor só conseguirá experimentar esse ímpeto criativo se estiver com a cabeça preenchida com os ingredientes apropriados. Daí a importância das leituras prévias e compulsivas não necessariamente como forma de entretenimento mas antes como fonte/arquivo de pesquisas quantitativas comenta Bogdanov enquanto se aquece para praticar a corrida matinal. 

Publicado por P. R. Cunha / 20 de março de 2024


Lições de anatomia XXXV

O surfista observa o oceano diz Bogdanov. O surfista precisa de estar atento porque as ondas são imprevisíveis e traiçoeiras elas se acumulam depressa ao que ele posiciona a prancha no momento adequado para aproveitar a força da água que irá jogá-lo numa praia qualquer. Nesse sentido o escritor seria também uma espécie de surfista?

Publicado por P. R. Cunha / 19 de março de 2024


Lições de anatomia XXXIV

Noutros termos: a cada vez que Bogdanov tenta descrever o que enxerga/escuta ele está a relatar uma realidade fragmentada e insuficiente. Vai à escrivaninha para arquivar a própria memória num pedaço de papel e o passado não é mais o mesmo já foi alterado tantas vezes pelo cérebro misturado com outras lembranças. Aconteceu de facto daquela maneira? E se calhar há uma fotografia e Bogdanov analisa com espanto: eu não me lembro de ter visto a minha tia Galya na festa mas eis ela ali a segurar meus ombros enquanto sorrimos para o fotógrafo etc.

Publicado por P. R. Cunha / 18 de março de 2024


Lições de anatomia XXXIII

Os sentidos que utilizo para perceber as coisas em redor são limitados escreve Bogdanov no bloco-notas. Os meus olhos por exemplo só conseguem enxergar determinadas frequências de luz (banda situada entre 400 THz e 790 THz) os meus ouvidos só escutam uma fração do espectro auditivo (de 0 a 120/130 decibéis) portanto nada mais natural que aquilo que eu tento descrever seja igualmente restrito e insuficiente.

Publicado por P. R. Cunha / 17 de março de 2024


Lições de anatomia XXXII

É uma manhã nublada estamos sentados no terraço do café e vemos passar Bogdanov como que perdido em pensamentos. Bogdanov! alguém se arrisca a chamá-lo ei Bogdanov ao que ele se vira para ver quem diabos está a gritar daquela maneira disparatada e sem responder segue o próprio rumo sabe-se lá para onde.

Publicado por P. R. Cunha / 16 de março de 2024


Lições de anatomia XXXI

A estas Lições Bogdanov gostava de acrescentar ainda a vulnerabilidade do escritor enquanto escreve o próprio livro e o sinistro padrão de que justamente nesse período em que se mostra frágil e exposto ele tem de enfrentar as mais terríveis tragédias que de certeza irão petrificá-lo por meses a fio.

Publicado por P. R. Cunha / 15 de março de 2024


Lições de anatomia XXX

O grande desafio de qualquer empreitada literária de fôlego garante Bogdanov é que ela leva tempo considerável para ser concluída e o escritor precisa de carregar consigo o peso da incerteza já que tantas coisas podem acontecer no meio do caminho que se ele fosse pensar em todas as imprevisibilidades não conseguiria sequer colocar uma única frase no papel.

Publicado por P. R. Cunha / 14 de março de 2024


Lições de anatomia XXIX

A simplicidade o dizer o que precisa de ser dito sem acréscimos desnecessários a linha reta o não se perder em prolixidades o poder ouvir a própria voz numa orquestra desafinada o deixar o floreio para os floristas — assim Bogdanov tenta seguir em frente com prudências.

Publicado por P. R. Cunha / 13 de março de 2024


Lições de anatomia XXVIII

Respondendo à pergunta de um transeunte curioso que reconhecera Bogdanov e quisera saber afinal qual era o segredo da escrita já que ele o transeunte também tinha grande interesse em publicar livros Bogdanov fixou os olhos num horizonte invisível e disse: apenas senta e escreve e trata de não levantares antes do ponto final.

Publicado por P. R. Cunha / 12 de março de 2024


Lições de anatomia XXVII

Ao longo de uma série infinita de ruminações solitárias Bogdanov desenvolvera gostos peculiares aversões e hábitos pouco usuais. Determinadas viagens à guisa de exemplo causam-lhe crises agudas de ansiedade e ele não consegue entender como alguém pode preferir passar por todas as inconveniências de um deslocamento geográfico moderno a ficar tranquila e confortavelmente sentado numa poltrona e perder-se de bom grado numa jornada guiada por Stendhal ou Walser ou Sterne ou Kleist ou Schulz.

Publicado por P. R. Cunha / 11 de março de 2024


Lições de anatomia XXVI

Sentado novamente diante da folha em branco a segurar a caneta — Bogdanov. Quinze vinte trinta minutinhos de alucinações narrativas o bastante para se esquecer do mundo e dos habitantes desse mundo das dores decepções angústias desse mundo a caneta a pintar palavras no horizonte da página Bogdanov anestesiado sente um alívio temporário.

Publicado por P. R. Cunha / 10 de março de 2024


Lições de anatomia XXV

Há este entendimento geral: quando vemos Bogdanov de ânimo recobrado semblante sereno a esboçar sorrisos e a se entender com toda a gente sabemos que ali anda um homem satisfeito consigo mesmo Bogdanov tivera muito boa manhã de trabalhos literários mas quando aqueles olhos castanhos e profundos parecem lançar tempestades de fogo e ele se recolhe dentro do próprio paletó e é quase como se avistássemos um fantasma que voltara do mundo dos mortos sabemos então que a senhora Literatura aprontara uma das suas com o pobre Bogdanov.

Publicado por P. R. Cunha / 9 de março de 2024


Lições de anatomia XXIV

Quando Bogdanov vai passar uns dias com os pais e permanece longas horas em silêncio dentro do escritório e ao sair se depara com a mãe que se surpreende: meu filho a tranquilidade que trazes para esta casa e és tão discreto que é como se nem estivesses aqui. Bogdanov então torna a tirar o bloco-notas do bolso e escreve «ser invisível — um ideal».

Publicado por P. R. Cunha / 8 de março de 2024


Lições de anatomia XXIII

Sobre a construção e a manutenção do próprio refúgio Bogdanov tem isto a dizer: que seja um sítio simples arejado sem supérfluos e sem interferências externas um gabinete onde o escritor saiba estar em segurança consigo mesmo. Recolher-se diariamente nesse refúgio sob a sombra da escrivaninha eis um hábito saudável aos exercícios literários.

Publicado por P. R. Cunha / 7 de março de 2024


Lições de anatomia XXII

A boa e velha analogia obra literária/obra arquitetônica Bogdanov escreve ambas precisam de fundação bases consolidadas ambas precisam de engenheiros materiais resistentes projetos referências e acima de tudo ambas precisam de tempo para serem construídas do contrário desabam sobre si mesmas e deixam ruínas.

Publicado por P. R. Cunha / 6 de março de 2024


Lições de anatomia XXI

A vida de Bogdanov para quem vê de fora é monólito estático sentado à escrivaninha mas se ao menos pudessem enxergar o outro Bogdanov que se passa dentro daquela cabeça literária… 

Publicado por P. R. Cunha / 5 de março de 2024


Lições de anatomia XX

Depois que termina de ler e/ou de escrever vasta obra literária o escritor não consegue evitar a tentação de se sentir invencível — diz Bogdanov enquanto recoloca na estante o exemplar de O homem sem qualidades do sr. Robert Musil.

Publicado por P. R. Cunha / 4 de março de 2024


Lições de anatomia XIX

«Nada está tão ruim que não possa piorar» é nisso que acredita Bogdanov que de várias formas possíveis se aproveita da escrita como quem procurasse por medicamentos paliativos. Perdi as contas de quantas vezes uma frase adequada amenizara crises profundas e mitigara a ceifa implacável da melancolia ele confessa sem pudores.

Publicado por P. R. Cunha / 3 de março de 2024


Lições de anatomia XVIII

Deparar-se com algo grotesco com perturbações devastadoras Bogdanov insiste enquanto maneia a cabeça em sinal de reprovação e ultrajes de toda a sorte traições guerras ira vilezas mortes complô e já passara da hora de se retirar sim de abaixar as cortinas do palco esse movimento de onda esse pêndulo louco essa atração que expulsa o escritor do próprio escritório e ao mesmo tempo demonstra que até o mais recluso dos indivíduos ainda será refém de um corpo cheio de apetites sedento de necessidades prisioneiro de uma cela feita de carne osso doença e sangue eis em suma o que Bogdanov estava tentando explicar nas últimas Lições mas por algum motivo não conseguiu fazê-lo.

Publicado por P. R. Cunha / 2 de março de 2024


Lições de anatomia XVII

Há um momento ou melhor uma espécie de átimo em que o escritor se percebe absolutamente submerso num oceano de possibilidades criativas alguns o chamam de fluxo Tarkovsky de Зона (Zona) região misteriosa esconderijo transiente onde os sentidos se afastam da realidade e aquele que escreve pode agir com alguma soberania como o rei de um planeta distante que estivesse condenado a ser destruído pela própria estrela em expansão. Para Bogdanov essa é a parte mais significativa do dia e quando o átimo se despede só lhe resta esperar que o mesmo comboio passe para buscá-lo na manhã seguinte — embora nunca se tenha tanta certeza disso. 

Publicado por P. R. Cunha / 1º de março de 2024


Lições de anatomia XVI

É preciso criar cenário insustentável situações irremediáveis cair num poço artesiano para então ter as motivações os pretextos e as justificativas para a escapada rumo às atividades literárias — a escrita diz Bogdanov como a última mão que alguém estende para o náufrago que do contrário se afogaria. 

Publicado por P. R. Cunha / 29 de fevereiro de 2024


Lições de anatomia XV

Bogdanov gosta de se divertir com a seguinte anedota — dois escritores trancados numa cela escura e para um deles a ausência de luz é significativamente criativa enquanto para o outro a escuridão é enfadonha e sem valor. Se colocássemos mais duzentos ou trezentos escritores ali dentro perceberíamos o mesmo padrão a se repetir diz Bogdanov. Não estão a ver absolutamente nada e mesmo assim seriam incapazes de entrar num acordo a respeito desse nada.

Publicado por P. R. Cunha / 28 de fevereiro de 2024


Lições de anatomia XIV

Em menino Bogdanov costumava passar o inverno com o avô numa pequena cidade búlgara chamada Melnik e no segundo andar da casa tinha uma porta que estava sempre trancada de forma que Bogdanov se perguntava constantemente onde estaria a chave para abri-la. Certa manhã enquanto tomavam o pequeno-almoço o avô de Bogdanov à época um dos escritores mais respeitados da Bulgária confessou que a chave não existia e quando não encontramos a chave ele disse num tom taciturno quando não encontramos a chave arrombamos a porta só para percebermos que do outro lado não há nada.

Publicado por P. R. Cunha / 25 de fevereiro de 2024


Lições de anatomia XIII

Bogdanov segura a chávena de café e tenta se livrar de um pigarro inexistente: para compreendermos do que a escrita é capaz ele diz talvez fosse o caso de nos demorarmos um bocadinho em Kafka a quem tudo o que não fosse literatura era encarado como aborrecimento supérfluo. Kafka portanto sujeito composto de letras que se protegia da realidade dentro das muralhas de um castelo construído com as próprias projeções. Estamos em 1914 continua Bogdanov a Europa prestes a se automutilar numa carnificina invencível enquanto Kafka se tranca no quarto da Oppelt house (Mikulášská) e toma notas sobre aquele fatídico dois de agosto: Alemanha declarou guerra à Rússia — à tarde natação. Essa indiferença esse virar as costas para o mundo em frangalhos esse irresistível alheamento essa firmeza de ânimo ante a catástrofe eis a força motriz da escrita.

Publicado por P. R. Cunha / 22 de fevereiro de 2024


Lições de anatomia XII

Acontece de por vezes o escritor se mostrar um ótimo conselheiro mas ser absolutamente incapaz de resolver os próprios problemas — Bogdanov se identifica com esse aparente paradoxo pois já o acusaram de algo parecido. Bogdanov o escritor filosófico que trata das intempéries da vida enquanto ele mesmo se afoga num lago de melancolias. Um pouco como ler os ensinamentos amorosos de Nietzsche depois de saber como foram os casos amorosos de Nietzsche.

Publicado por P. R. Cunha / 21 de fevereiro de 2024


Lições de anatomia XI

Do que realmente precisa o escritor e pergunto isso com o devido respeito diz Bogdanov. De livros sim de uma biblioteca que seja tão importante tão crucial tão imprescindível que tirá-la dele seria como amputar-lhe o próprio coração.

Publicado por P. R. Cunha / 20 de fevereiro de 2024


Lições de anatomia X

Cada escritor deveria desenvolver as próprias idiossincrasias é nisso que acredita Bogdanov. Cultivar hábitos peculiares rotinas específicas maneirismo incompreensível ao julgamento alheio — não importam as excentricidades se ao fim e ao cabo elas ajudam a manter o equilíbrio durante as caminhadas à beira do abismo.

Publicado por P. R. Cunha / 19 de fevereiro de 2024


Lições de anatomia IX

Bogdanov com aquele ar pensativo que lhe é característico comenta que escrever requer disciplina e essa disciplina pode se manifestar com diversas indumentárias — pesquisas inspirações passageiras fobias acertos de contas memórias passeios de bicicleta períodos de profunda tristeza a gravidade oceânica um gatilho… E qual seria o aspecto de uma falha ele se pergunta como que diante de um público invisível: não dar ouvidos a essas estranhas e contraditórias sinfonias que levamos na nossa cabeça.

Publicado por P. R. Cunha / 17 de fevereiro de 2024


Lições de anatomia VIII

O pêndulo da praxe: há dias de sol e há dias de chuva dias de lágrimas e dias para se esboçar um qualquer sorriso dias para aparecer dias para se arrepender dias para desaparecer novamente. Bogdanov percebe o movimento dessas ondas e tenta alinhar a própria embarcação literária de acordo com marés às vezes a lograr êxito noutras vezes nem tanto.

Publicado por P. R. Cunha / 16 de fevereiro de 2024


Lições de anatomia VII

Numa manhã entusiasmada Bogdanov transfere ao bloco-notas parágrafos que o agradam deveras mas apesar do resultado satisfatório ele parece não conseguir tirar da cabeça que esses fragmentos mostram-se tão frágeis fúteis e vulneráveis quanto qualquer outro fragmento. Durante a catástrofe cai toda a sorte de edifícios os monumentais e os desagradáveis às vistas. Sempre foi assim.

Publicado por P. R. Cunha / 15 de fevereiro de 2024


Lições de anatomia VI

Dúvidas incertezas querelas mal resolvidas contradições dores receios cóleras acumuladas desejos perdas insatisfações — eis em suma o que leva Bogdanov à escrivaninha.

Publicado por P. R. Cunha / 14 de fevereiro de 2024


Lições de anatomia V

Escrever é sem dúvida um exercício de frustração escreve Bogdanov. Tenho cá pensamentos edificantes e coesos tudo muito maravilhoso de aí decido colocá-los no papel e as ideias estraçalham-se em cinco mil pedaços. É como um automóvel movido a combustíveis fósseis que perde mais de 90% de energia potencial antes de mover as próprias rodas.

Publicado por P. R. Cunha / 13 de fevereiro de 2024


Lições de anatomia IV

Ao que parece a solidão só faz sentido se queremos fugir de algo ou alguém isto é se temos algo ou alguém à nossa espera do contrário é uma solidão implacável que devora tudo — Bogdanov está sozinho e anota isto no bloco-notas. Na página anterior duas listas: o escritor é «antena» «esponja» «para-raios» «airbag» «aparelho digestivo» / amadurecer as próprias reflexões antes de colocá-las no papel 1) abrir os canais 2) absorver 3) inspecionar 4) misturar 5) digerir 6) elaborar 7) finalmente escrever. Ao rodapé lemos a seguinte sugestão PERCORRE ESSE CAMINHO TANTAS VEZES ATÉ QUE A TRAJETÓRIA SE TORNE [QUASE] IMPERCEPTÍVEL E DAÍ ENTRARÁS NO MODO AUTOMÁTICO etc.

Publicado por P. R. Cunha / 12 de fevereiro de 2024


Lições de anatomia III

Bogdanov diz que a partir do momento em que o escritor começa a se preocupar com vantagens e lucros a saber: dinheiro fama angariar/mobilizar leitores ele imediatamente se transforma num escritor ruim e desprezível. Aproveitar portanto os períodos de autonomia em que ninguém te conhece em que ninguém espera nada de ti e podes simplesmente escrever de graça sem aquela aniquiladora necessidade de prestar contas a este ou àquele público.

Publicado por P. R. Cunha / 11 de fevereiro de 2024


Lições de anatomia II

Bogdanov tem os ouvidos sensíveis — precisa de utilizar protetores auriculares. «Sou muito parecido com um submarino» ele diz «se quero me manter à superfície tenho de escrever porque a escrita é o que regula a quantidade de água dentro da minha estrutura». Trocando em miúdos: quando escreve Bogdanov submerge do contrário afunda.   

Publicado por P. R. Cunha / 10 de fevereiro de 2024


Lições de anatomia I

Depois de se deparar com algumas ciladas Bogdanov finalmente aprendeu a não confiar na própria memória percebera que mesmo as ideias mais robustas as imagens mais significativas os momentos mais esplendorosos são irrecuperáveis se não forem anotados. Hoje não raro observamos Bogdanov perambulando entre ruas e cafés da cidade ele de súbito se inclina para observar qualquer coisa tira orgulhosamente um bloco-notas do bolso do paletó e põe-se a escrever ali mesmo mas a respeito do quê — isso não sabemos.

Publicado por P. R. Cunha / 9 de fevereiro de 2024


Partes menores 

As palavras podem ser válvulas de descompressão ou pedras nos bolsos do náufrago. E nisso elas se parecem um bocado com o urânio — se o enriquecemos na medida certa produzimos energia sustentável mas se passamos dos limites estaremos diante de uma bomba atômica (now I am become Death the destroyer of worlds [eis que me torno Morte a destruidora de mundos]). Não é portanto de admirar que o escritor batalhe constantemente contra as limitações das ferramentas gramaticais e que a própria cabeça pareça querer explodir quando deixa de encontrar termos apropriadas para os sentimentos que o perseguem.

Publicado por P. R. Cunha / 8 de fevereiro de 2024


Paliativos

Necessário admitir à guisa de honestidade que se praticada habitual e obsessivamente a escrita transforma-se numa espécie de ópio um vício a mexer nas estruturas cognitivas mais sensíveis do indivíduo que escreve. Observamos o escritor entrar num transe ele agora tem a sensação ou melhor tem a certeza de que levita acima de tudo o que é terreno mesmo que esteja a tratar das mais ridículas patifarias.

Publicado por P. R. Cunha / 7 de fevereiro de 2024


Energia térmica

No momento em que o triste cérebro entra no modo sobrevivência o mero cogitar na possibilidade de ler livro transforma-se em tortura. O sujeito tão acostumado a se abastecer do combustível literário e a criar ilusões de reciprocidade de súbito se depara com a total indiferença da empreitada — como gritar para um precipício que não produz eco.

Publicado por P. R. Cunha / 6 de fevereiro de 2024


Sem fazer muito barulho

A qualidade fugitiva da biblioteca o sujeito diante das montanhas de papel quer expressar o que absorveu das leituras e aquilo que inicialmente era apenas uma despretensiosa antologia de citações alheias passa a ter sabores próprios e já não sabemos mais quem é quem.

Publicado por P. R. Cunha / 5 de fevereiro de 2024


Estudo do tempo

Talvez o escritor se dê por satisfeito se a obra que escreveu envelheça bem menos depressa do que ele mesmo.

Publicado por P. R. Cunha / 4 de fevereiro de 2024


Quietude #2

À noitinha: documentário sobre bunkers construídos durante a Guerra Fria. Sem me ater às amarras da plausibilidade e da lógica só conseguia pensar em como esses abrigos subterrâneos blindados seriam lugares fantásticos para se escrever em paz.

Publicado por P. R. Cunha / 3 de fevereiro de 2024


Quietude #1

Escritor acostumado aos paraísos artificiais logo percebe que nunca se está imune ao turbilhão da chamada «vida real» — há sempre uma correnteza imensamente mais forte que irá arrastá-lo para o precipício.

Publicado por P. R. Cunha / 2 de fevereiro de 2024


Subsídios

Estás sempre a aludir ao livro que se aproxima uma obra literária que enfim te apeteceria imenso mas repetes tantas vezes «tenho trabalhado no manuscrito» que chega a altura em que simplesmente não esperam mais nada de ti — e sentes o sabor amargo do inadiável como um caixeiro-viajante que perdesse o comboio porque cochilara no banco da estação. A cada revés um novo gesto de defesa contra as circunstâncias difíceis que se seguem. Num dos incontáveis pesadelos da semana passada recebeste reprimenda de certa figura fantasmagórica que diz não protegeste a tua vida literária o bastante não mantiveste segredo livra-te dos amplificadores. 

Publicado por P. R. Cunha / 1º de fevereiro de 2024


Zona árida

Havia tantos livros e ninguém mais acreditava em livros sequer davam-se ao trabalho de folheá-los.

Publicado por P. R. Cunha / 31 de janeiro de 2024


Reavaliações (Café Wittgenstein)

Café Wittgenstein estava como se diz fechado para balanço porque lidar com seres humanos me é cada vez mais custoso de forma que na medida do possível tento evitá-los mesmo que não passem de criaturas imaginárias ou seja clientela da minha própria cabeça. [O tempo é curto e as forças são escassas] as reflexões deste Café têm um efeito determinante sobre mim — ao fazê-las entrego-me às turbinas [se Nietzsche era dinamite Wittgenstein era avião de propulsão rumo a nenhures] técnicas de autocontrole meditações que direta e indiretamente amenizam aquela minha «outra» existência deveras pragmática. Por vezes é como se o próprio filósofo viesse na minha direção e se apresentasse: Wittgenstein destruidor de certezas.

Publicado por P. R. Cunha / 30 de janeiro de 2024


Convivência

P. acordou de um sono sem sonho a luz cinza da manhã nublada que preguiçosamente preenchia o quarto e ficou deitado observando a própria mesa de trabalho com pilhas de livros e cadernos preenchidos e todas aquelas anotações avulsas a cena de um crime qualquer e P. buscava pistas tentava compreender o que havia se passado ali nos últimos meses um rumor se calhar uma promessa vazia mas não encontrava nada e sabia que mais uma vez teria de se acostumar àquela desesperança hostil que insistia em fazer longas visitas embaraçosas.

Publicado por P. R. Cunha / 29 de janeiro de 2024


Em linhas tortuosas

O epicentro da minha vida sempre foi a escrita e arrisco-me a dizer que sempre será pois nesta altura estou com quase quarenta anos e não sei se tenho forças adequadas para remover este enorme cometa que ocupa meus pensamentos praticamente a tempo inteiro. Não me considero um escritor fracassado até porque se o fosse os substantivos não surgiriam na folha em branco com certa facilidade mas sou na maior parte um autor fracassado não sei angariar leitores como se diz no jargão comercial buscar editoras tampouco me apetece e só de pensar em noites de autógrafo e/ou leituras em público a agorafobia consome as minhas entranhas. Em suma eu sei o que quero escrever mas não sei vender o que escrevo. Não exageraria se dissesse que a construção de universos paralelos é uma atividade que torna a minha existência interior suportável e penso que quando estou um bocadinho predisposto a vida exterior é bem mais fácil de domar ainda mais quando aprendemos a sair do esconderijo com os disfarces adequados. A coisa toda obviamente não pode durar muito tempo há limites. Se fico longe da escrivaninha meu estado emocional se deteriora e deve ser uma cena dolorosa para quem está perto. Então tento explicar sem sucesso que meus modos são voltados para a escrita minha rotina minhas neuroses minha energia minhas obsessões minha impaciência meu desespero tudo tem a ver com a escrita pois se escrevo as coisas tendem a ficar bem mas se não escrevo torno-me ainda mais insuportável. O que quero dizer é que as ondas da escrita me definem. Posso estar na crista em puro êxtase e num intervalo de poucas horas cair numa depressão abissal como um oceano que nunca se decidisse. A verdade é que se trata de uma batalha constante para conseguir escrever ter o meu momento com a escrita e quando as pessoas simplesmente me deixam em paz eu logo desconfio: ora isso não pode estar certo por que me deixam escrever qual é o ardil desta vez etc. etc. etc. Como tantos outros escritores também fiz listas detalhadas de tudo o que já sacrifiquei pela escrita — série de carnificinas pessoas objetos relacionamentos oportunidades desperdiçadas pedaços para todos os lados. De aí a escrita falha ou talvez a manhã não tenha sido assim tão produtiva e é quase impossível não se perguntar: vale a pena?

Publicado por P. R. Cunha / 28 de janeiro de 2024


Fôlego ou combustível ferroviário

Poder-se-ia dizer que este escritor não está a correr para demonstrar vitalidades intelectuais — é que ele simplesmente seria despedaçado pela locomotiva da irrelevância caso desacelerasse.

Publicado por P. R. Cunha / 27 de janeiro de 2024


Mamute

O meu animal favorito é o mamute. Mas o mamute já não existe ela disse. Sorrio e digo sim já não existe. Isso explica muita coisa ela disse.

Publicado por P. R. Cunha / 26 de janeiro de 2024


Progressões

Escritores têm potencialidades diferentes alguns falam direto ao nosso coração outros nos colocam numa corrida de obstáculos e como sabemos nem todas as corridas de obstáculos valem a pena. 

Publicado por P. R. Cunha / 25 de janeiro de 2024


Ostrowski

Podemos ler no diário do sr. Ostrowski: acabo de me candidatar à vaga de orador/palestrante de uma renomada empresa de comunicação que oferece além de ótimo salário condições de trabalho exemplares mas há este pequeno e talvez insignificante detalhe — sou gago.

Publicado por P. R. Cunha / 24 de janeiro de 2024


Fundamentos

Realidades sufocantemente insanas e fantasias fugitivas que renovam os próprios sentidos — aquelas justificam estas.

Publicado por P. R. Cunha / 23 de janeiro de 2024


Insatisfeito

Talvez o único desapontamento verdadeiramente genuíno seja a impossibilidade intrínseca de traduzir com palavras certas ruínas de pensamentos abstratos que te assolam a cada par de segundos — ficas sempre com a impressão de que algo está a faltar de que estás diante de um vazio que não se pode preencher.

Publicado por P. R. Cunha / 21 de janeiro de 2024


Pré-histórico

Escrever pelo simples facto de escrever sem esperar nada sem tampouco almejar algo nenhum eco nenhuma reverberação nem resposta apenas o primitivismo da empreitada ideias-caneta-pedaço-de-papel e do que mais precisaríamos?

Publicado por P. R. Cunha / 20 de janeiro de 2024


Repouso

O que buscas na escrita — um qualquer alheamento porque enquanto escreves deixas de pensar no teu próprio acto final mesmo que apenas por alguns instantes. E não é assim com todas as distrações? Anestesias momentâneas do facto de estarmos a desvanecer um bocadinho mais a cada dia.

Publicado por P. R. Cunha / 19 de janeiro de 2024


Serenata

Depois de tantas recusas e esconderijos é um prodígio que ainda me convidem para alguma coisa.

Publicado por P. R. Cunha / 18 de janeiro de 2024


Estorvo

Outra madrugada insone tu fechas os olhos e escreves com aquelas luzes esverdeadas que surgem e desaparecem atrás das pálpebras estás cansado não somente por não conseguires dormir é um cansaço geral mais amplo é um cansaço das pequenas coisas é um cansaço das grandes coisas é um cansaço dos mínimos detalhes e também da falta de detalhe macro/micro cansaço quando as atividades que antes tanto te apeteciam agora passam diante de ti feito espírito maligno e zombeteiro que estivesse à procura da própria cova.

Publicado por P. R. Cunha / 17 de janeiro de 2024


Atuais parâmetros de felicidade

Deitado na cama ele folheia romance de Stendhal e se recorda de que ela antes fugir com o agente imobiliário costumava dizer «não achas que estás demasiado velho para esses mundos alternativos» ao que ele suspira desliga a luminária e aos poucos o escuro é preenchido por outras decepções abafadas.

Publicado por P. R. Cunha / 16 de janeiro de 2024


O que seria

O que seria da literatura do monsieur Proust se não fosse a cama se não fosse o universo claustrofóbico do próprio quarto com a chávena deitada sobre a mesinha-de-cabeceira à espera de mais uma manhã insensata…

Publicado por P. R. Cunha / 15 de janeiro de 2024


Investimento de risco

Todos os dias ele acordava cedo preparava o café e escrevia um par de linhas sempre com a ilusão de um futuro livro «a ser atingido» mas esses pequenos trechos diários não passavam de fragmentos de fragmentos de fragmentos que não levavam nada a cabo.

Publicado por P. R. Cunha / 14 de janeiro de 2024


Caça-fantasmas

Escrever é de muitas formas uma busca pelo invisível e escritor se depara com qualquer coisa abstrata e tenta enjaular o espectro nos limites da página — eu por exemplo gosto deste caderno com folhas cremosas sobre as quais a caneta desfila a própria tinta cujo contraste é prazeroso às vistas — enjaular o invisível como estava a dizer um pouco como carregar água com as mãos ela simplesmente escorre entre os dedos e a sede é imensa.

Publicado por P. R. Cunha / 13 de janeiro de 2024


Traços ilegíveis

Numa manhã chuvosa da primavera de 1999 eu me sento à escrivaninha do vovô e tomo notas. Eis ali um pré-adolescente solitário confuso e perdido que de súbito encontra âncoras nas chamadas fantasias literárias. É tudo muito tosco primitivo sem pé nem cabeça mas o bastante para me estabilizar. Vovô então entra no gabinete observa a criança rabiscando e pergunta com a docilidade da praxe o que estás a fazer ao que simplesmente respondo não faço a ideia vovô.

Publicado por P. R. Cunha / 12 de janeiro de 2024


Colheita

Vida: és traiçoeira
prometes tudo na juventude
abres tantos caminhos
tantas possibilidades
que cada escolha é
deixar mil escolhas para trás
enquanto tu passas
veloz e impertinente
voltas em redor do sol
semeias amarguras
quantas perdas
corpos enterrados
olhos atónitos
diante da dolorosa condição humana.

Publicado por P. R. Cunha / 11 de janeiro de 2024


Entre seres

Situações aleatórias objetos que são apresentados sem qualquer contexto nenhum esforço para explicar o que se passa apenas blocos textuais sem vírgula e quem se predispõe a ler ou antes quem se arrisca a ler fica com a sensação de que algo está errado e algo definitivamente está errado isto só pode ser obra de algum louco de algum neurótico obsessivo porque tudo fora do lugar e narrador (ou aquele que poderia ser considerado narrador) estabelece estas perguntas ONDE ESTAMOS QUE ALGAZARRA É ESTA QUE TIPO DE PLANETA É ESTE uma estrutura que de longe parece excerto literário comum mas quem olhasse de perto logo perceberia que se trata de outra coisa.

Publicado por P. R. Cunha / 10 de janeiro de 2024


Mármore

A verdade é que se alguém fala bem ou mal de algo que escrevo eu cá não sinto nada — é como chicotear uma estátua. 

Publicado por P. R. Cunha / 9 de janeiro de 2024


Excesso de serenidade anestesia as vontades criativas do pobre escritor

Parece necessário sempre existir algum tipo de intimidação uma ameaça de ser interrompido a qualquer momento como bomba-relógio escondida num canto do escritório e dissessem «a bomba-relógio pode ou não estar ativada» ou um atirador à espreita que pudesse apertar o gatilho quando menos esperamos de aí perceberíamos a própria escrita fluir sem as afetações da praxe.

Publicado por P. R. Cunha / 8 de janeiro de 2024


Garganta

Não fazia sentido nunca fez sentido e duvida-se que um dia fará qualquer sentido narrativa aleatória com cenários duvidosos personagens desconfiados e quem se deparasse com este absurdo tatear-se-ia no escuro em busca de possíveis pistas e ao encontrar supostas explicações não teria tempo de concluir nada porque o texto acabaria abruptamente como costu…

Publicado por P. R. Cunha / 7 de janeiro de 2024


Medida de energia não disponível para a realização de trabalho

Hotel ao qual o sujeito vai em busca de sossego um lugar mais silencioso do que o de costume pois em casa há toda a sorte de ruídos e quando se abre a janela é um microcaos incontrolável vêm sons de todos os lados microcaos ele repete em voz alta microcaos é que ultimamente tem se dedicado ao neologismo substantivo de aí que o sujeito se livra de toda a parafernália de hotelaria e transforma a mesa do quarto nº 805 em escrivaninha demora-se diante daquele pedaço retangular de madeira com quatro patas finas e diz consigo mesmo devo dar prosseguimento ao manuscrito se calhar escrever uma ou duas páginas e quando o sujeito finalmente se ajeita para anotar a próxima frase a caneta cantarola uma antiga poesia finlandesa oh pobre infeliz lança-me logo ao teu coração.

Publicado por P. R. Cunha / 6 de janeiro de 2024


Arpeggio acorde quebrado ou acorde em que notas individuais são tocadas uma por uma e não todas juntas de uma vez

A página em branco tornara-se a própria amante um conjunto finito de possibilidades infinitas peço imensas desculpas estava a compor esta sinfonia para ti e foi o mais longe que consegui chegar (TOCA A SINFONIA A AMANTE DÁ DE OMBROS E SUSSURRA SIM ESTÁ MUITO BOA MESMO) mas só muito de vez em quando se experimenta qualquer coisa que poderia ser chamada de música escolhe algumas notas que te apetecem e compõe sinfonia estás agora escondido numa pousada florestal e escreves a partitura imaginas as melodias as cordas a percussão baixo médio grave a coisa toda ganha corpo mas não consegues terminar nunca conseguiste terminar nada eis o fardo nunca terminar nada repetes isso em voz alta não termino nada não compreendo há impeditivos tentas trabalhar em pé não funciona tentas trabalhar sentado deitado inclinado sem sucesso ah olá tu dizes à funcionária da pousada florestal que de súbito entra no quarto não sou compositor tu insistes sou biólogo estudo as árvores não percebo diz a funcionária da pousada florestal achava que estavas a compor sinfonia não não não tu dizes apenas estudo as árvores.

Publicado por P. R. Cunha / 5 de janeiro de 2024


Outras vozes

Livros sobre o nada que mergulham no nada que não saem do nada sem narrativa sem progressão ou qualquer elemento que faça alguém pensar pois bem isto que estou a ler é um livro os pés gelados porque o cobertor está a cair da cama elementos combinatórios como equação matemática deveras complicada resolvida por miúdo que nunca chegasse a uma resposta certa sempre rabiscos e toda a sorte de números e palavras incompreensíveis sobre a página afinal é apenas um miúdo diante de problema absolutamente incompreensível para as próprias capacidades mentais diferentes mecanismos que se juntam e não se formam (PAUSA) nenhuma estrutura estás a sonhar alguém diz atrás de ti sim estás a sonhar mas a escuridão não te permite ver de onde vem a voz e tens apenas que lidar com a voz com os tons melancólicos da voz e pensas que é a voz de alguém realmente muito triste parece a voz da tua tia-avó quando te telefonara três dias antes de ir até à sala com o revólver em mãos bala na têmpora estou mesmo a escrever isto (?) estou a sonhar é insónia colocam-te nestas narrativas sem contexto sem informação adicional nenhum objetivo aparente procuras âncoras e não encontras âncoras o teu navio naufraga (?) insiste a voz tu apenas estás ali parado EXPLORA ATÉ QUE O TEU TEMPO DE EXPLORAR SE ACABE ENTÃO RETIRA-TE foi o que a tia-avó te disse ao telefone e três dias depois ela não estava ela mesma decidira se retirar escrevo num estado de quase sono e quase não consegues manter os olhos abertos os teus pobres e cansados olhos o que fizestes com os teus olhos simplesmente narrativa sem pé nem cabeça como se diz sem propósito repetições narrativa disparatada a morte dos sentidos estás realmente a construir estas coisas isto é real tudo o que fazes é ler e escrever tudo o que fazes é explorar porque o teu tempo de explorar ainda não acabou estás a ter mais um daqueles episódios e pensas em colocar a culpa na insónia novamente quando sabes muito bem de que a culpa não é lá da insónia A CULPA É DA TUA CABEÇA diz a voz tia-avó é a senhora a dizer essas coisas tu enfim balbucias é a senhora a brincar mas a voz não te responde são três e vinte e cinco da manhã não consegues dormir então decides ir ao computador e agora escreves todas essas coisas sobre o nada livros sobre o nada mergulhos no nada &tc. &tc. escreves por uns oito ou nove minutos até caíres no sono e tua cabeça desaba no teclado o editor de texto aberto as tuas bochechas pressionam botões aleatoriamente e as bochechas escrevem numa língua alienígena está lá na tela está lá no editor de texto a língua de outros mundos poderás averiguar quando acordares por enquanto não consegues perceber pois estás a dormir o mesmo acontecerá quando morreres as pessoas continuarão a escrever coisas aleatórias a falar coisas aleatórias a comprar coisas aleatórias a sofrer coisas aleatórias e tu não estarás aqui não perceberás nada as pessoas não sentirão a tua falta da mesma forma que não sentiram a tua falta antes do teu nascimento o nada-antes um piscar de olhos o nada-depois sempre foi assim e não consegues parar de pensar por mais que tentes por mais que digas NÃO QUERO PENSAR é um esforço desumano esforço inútil os pensamentos estão ali independentemente das tuas vontades e todas as árvores que já morreram e todas as chuvas que já caíram e todos os poemas que foram escritos e incinerados e todos os poemas que ainda serão escritos e a voz a mesma voz a voz persistente como as notas de um sintetizador quebrado a voz a repetir ONDE ESTÁS é hora de acordar.

Publicado por P. R. Cunha / 4 de janeiro de 2024


O artista

Ela se sentou apressadamente e pediu café duplo ao garçom e me disse que aquilo tudo era uma tremenda loucura sim ela nunca imaginou que ele fosse embora que o artista a deixaria e agora que ela estava sozinha passou a dar valor às banalidades do artista à simples convivência com o artista às manias do artista à rotina do artista à bipolaridade do artista ela disse enquanto aproximava o café duplo dos lábios bebericava e recolocava o café sobre a mesa quando o artista resolveu não voltar ela continuou quando o artista desapareceu levara consigo a criatividade as aventuras a bomba-relógio a poesia o modo louco e imprevisível de encarar as coisas e agora já não tenho mais nada disso e é terrível aguentar todo aquele silêncio em casa ela disse enquanto olhava para os lados talvez à procura do próprio artista.

Publicado por P. R. Cunha / 3 de janeiro de 2024


Dois mil e vinte e quatro

E chega uma altura em que nem a tua própria mãe lê mais as coisas que tu escreves.

Publicado por P. R. Cunha / 2 de janeiro de 2024


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