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O monstro estava em paz (Café Wittgenstein)

Acho absolutamente compreensível a pessoa não querer levar uma vida filosófica, ele disse enquanto preparava o pequeno-almoço e tentava equilibrar o telemóvel entre a orelha e o ombro direito. Há pouco estive em Itália, fui visitar uma amiga a Salerno, e lá ninguém escrutinava a própria existência com questionamentos de toda a sorte, mostravam-se satisfeitos com o que tinham, com a quinta, com os animais, com os produtos da terra, ele disse, e vários já andavam na casa dos cem, seres humanos muito velhos e felizes. Agora eu te pergunto: quanto tempo vive um filósofo, quantos não estouram os miolos, e quantos ainda não morrem vivos, negligenciados na casa dos loucos…, percebes o que estou a dizer?

Publicado por P. R. Cunha / 20 de março de 2023


Batalhas perdidas ou curvas ao infinito

algures por aí há uma mulher
que roubou o elixir da vida —
lua encoberta

*

o som funerário do sino
desce para o vale
e transforma a água em gelo


Yosa Buson

Estou a ler Com meus dentes de cão, do Paulo Paniago — disponível nas melhores lojas do ramo literário.

O meu exemplar foi adquirido na Livraria da Travessa.

Digo isso a título de extravagância.

Livraria da Travessa não me ofereceu dinheiros para citá-la, mas eu os teria aceitado de bom grado, fosse o caso.

Quanto valeria publicidade num blogue que possui (segundo dados WordPress) quarenta e dois leitores diários?

Não é fácil falar sobre a obra de um amigo-professor-ouvinte-conselheiro. Pisa-se em ovos, e o precipício nunca anda longe.

Sou um escritor de ficção, eu invento, eu minto.

Escrevo isto depois de algumas doses consideráveis de euforia etílica.

Se calhar, um dos papéis do misantropo é oferecer, sem filtros, acessos à realidade, às coisas como elas são. «Estás aí escondidinho atrás dessas mantas de ilusões», parece dizer o misantropo, «pois!, sai logo da cama!», e imaginamos o misantropo a levantar as mantas sem qualquer cerimónia, etc.

Paulo Paniago é escritor notável por discórdias prolíficas. Há sagacidades, sabedoria popular, animais humanos obscuros, frustrações…

…narrativa bem-humorada, indisposta, acrobática, fixe, elegante, distorcida, profética, lúcida, kafkiana, veloz, amazing, narcótica, vertiginosa.

Onde ler a obra?

Em casa, no autocarro, num café moderadamente movimentado. Silêncios fugidios, e, de quando em quando, uma ou outra pessoa a interromper.

Interrupções condizem com o carácter irascível do livro (a-arte-imita-a-vida-e-vice-versa). Mas, por momentos, esquecemos tudo.

Está-se à beira de um lago, árvores agitadas por uma ligeira brisa, folhas que oscilam, há uma limonada sobre a toalha de piquenique com motivos quadriculados.

Limonadas, sabemos, podem ser doces, azedas, amargas, naturais, verdes, suíças.

Com meus dentes de cão — limonada.

Publicado por P. R. Cunha / 19 de março de 2023


Analgésicos

Alguns fazem tricô, outros dedicam-se incondicionalmente à educação dos filhos, há quem aposte todas as fichas no trabalho, numa carreira respeitável, títulos, estabelecem metas improváveis, há os que praticam esportes radicais, escalam montanhas íngremes, acampam em glaciares, pulam de paraquedas de um arranha-céu, jogam-se às profundezas do oceano, levam o próprio balão aos limites atmosféricos, à Linha de Kármán para verem se conseguem respirar ali, enquanto eu: escrevo — válvula de escape, rota de fuga como outra qualquer. A mim me parece que a escrita com finalidades individualistas é a mais sincera. Atividade egocêntrica, absurda, em busca de prazer próprio, prazer efémero, como quem bebe garrafas de vinhos criminosamente dispendiosos sem pensar na conta a pagar.

Publicado por P. R. Cunha / 18 de março de 2023


Noctívago

Quando ele chegou ao restaurante, ela já estava à mesa perto da varanda com balaustrada ao estilo romano. Ela levantou o copo de mojito e com a outra mão convidou-o para sentar-se. Ele ainda achava inacreditável que pudessem se interessar por um escritor tão obscuro e, não se podia esquecer, pouco disposto a ocasiões sociais. «Peço imensas desculpas», ele tateava buscando o vocabulário apropriado, «o trânsito desta cidade…». Ela levou o copo de mojito à boca e permaneceu calada.

Sempé costumava dizer que cerca de 115% dos problemas dos escritores estavam de alguma forma relacionados a mulheres.

Estás quietinho no próprio apartamento, estás a tomar notas, a ler Kempowski, nada te abala, até que ela te convida para um jantar e tu, naturalmente, aceitas.

Publicado por P. R. Cunha / 17 de março de 2023


Relutância

É necessário imaginar Kaspar Hauser debruçado a tomar notas avulsas numa espécie de diário — a despeito da linguagem vacilante, do despropósito da empreitada, da tentativa hedionda de expressar-se. A despeito de tudo.

(A rotina do escritor por vezes tropeça em lugares-comuns [bares, livrarias/alfarrabistas, cafés, teatros, tabacarias, clubes de jazz].)

No café, alguns senhores ainda se entregam à leitura do jornal de papel. Em redor, a maioria tem o rosto azul da luz que vem do ecrã dos telemóveis.

A analogia é a de sempre: estão-ali-mas-não-estão-ali, etc.

Há os que sofrem mais com mudanças, com transições, com o novo, que, como se diz, «parece chegar a cada instante». Os que são devorados pelos torniquetes do progresso, enquanto tentam de todas as formas manter velhos hábitos.

Aqueles que escolhem não entrar na locomotiva desgovernada isolam-se, qual Kaspar Hauser, deixam de participar, vivem às margens.

Em suma: resistimos.

Publicado por P. R. Cunha / 16 de março de 2023


Lembra-te que tu também serás esquecido

Quantos escritores escreveram, digamos, na virada do século-19-para-o-20, quantos acordaram cedo para trabalhar no próprio manuscrito, quantos dedicaram horas e horas à fazenda literária, quantos buscaram casas editoras e foram recusados, quantos alimentaram a expectativa de ter leitores e foram sumariamente ignorados, quantos tiveram alguns fugidios momentos de relevância para logo depois caírem novamente na vala do ostracismo, quantos ainda são lembrados, ou antes: qual o nome desses fantasmas, que tipo de mensagens jogaram ao mar insaciável, etc., etc.

Publicado por P. R. Cunha / 13 de março de 2023


Aritmética aplicada

Talvez se apagássemos a luz, ela disse.

Ele ajeitou o travesseiro às costas. A conta é directa, ele disse, o dia possui 24 horas, então basicamente dividimos essas horas em duas categorias simplificadas, horas agradáveis / horas desagradáveis.

Não era bem isso que ela imaginara quando sugeriu apagar a luz, mas ela escutava mesmo assim.

Ele continuou: fiz um levantamento detalhado e cheguei à conclusão de que, em média, 19 horas do meu dia são desagradáveis, algumas horas chegam a ser insuportavelmente desagradáveis, mas não levei isso em consideração. Sobram-me, portanto, 6 horas de tréguas, em que procuro fazer o que tem de ser feito.

Ela fechou os olhos, como quem se preparasse para dormir e não conseguisse.

A regra de três é de facto inflexível, ele prosseguiu depois de um silêncio meditativo, 24 está para 100, ele faz as contas no ar com o indicador da mão direita, 19 está para X, 24 X é igual a 100 vezes 19, X é igual 1900 dividido por 24, o que significa que 79% do meu dia são desagradáveis.

A respiração dela sincronizada, cada vez mais profunda — já não lhe apetecia esforçar-se.

Publicado por P. R. Cunha / 12 de março de 2023


Isto é um conto de fadas

Escritor vivia num reino deveras instável. O rei, sempre muito atarefado com responsabilidades de rei, invejava a disponibilidade, o ócio, o foco, a resiliência, a disciplina desse modesto escritor. O rei ficara, dir-se-ia, obcecado pelo modo de vida do escritor, e tão logo percebera que seria impossível superar aquele audacioso homem das letras, partiu para os planos de vingança. Ordenou aos soldados mais agressivos do reino que fossem até à cabana do escritor e dissessem que ele estava expressamente proibido de escrever. Como o escritor não demonstrara nenhuma reação, mantivera-se firme e resoluto, o rei foi chamado às pressas. Tomado por uma ira ainda mais implacável, o rei chegou numa suntuosa carruagem, mandou destruir todo o material de escrita, despedaçar a escrivaninha, rasgar todas aquelas folhas e, por fim, incendiar a cabana. O escritor, no entanto, permanecia calmo, imperturbável, sussurrara que escrevia e pensava com a cabeça e não com objetos. Ao escutar a afronta, o rei puxou violentamente a espada da bainha de um dos soldados e com as próprias mãos decapitara o escritor.

Publicado por P. R. Cunha / 11 de março de 2023


Disparos

Conheço escritores que se sentam confortavelmente ao jardim & escrevem durante uma manhã soalheira, & quase conseguimos ouvir os pássaros, as folhas das árvores, o burburinho da água gaseificada com rodelas de limão — escrevem felizes, portanto.

É um gatilho que não me apetece. Se está tudo bem, se tenho tudo à disposição, enxergo a escrita com ainda mais desconfiança, torna-se uma atividade ainda mais supérflua, um mero exercício de estilo (como um miúdo que acabasse de aprender a andar de bicicleta e gritasse para toda a gente: vejam, sei andar de bicicleta! [engraçadinho de início, mas dali a pouco irrita]).

Moro numa zona industrial, abro a janela do apartamento & escuto o rugir das máquinas, o barulho metálico dos contentores, das carretas, & quando dou por mim estou à escrivaninha, furioso, com tipologia pesada, tresloucado.

Não estou a dizer que sofro ao escrever.

É outra coisa.

Inclinado às miragens gratuitas, talvez eu seja um «eterno» discípulo da Confraria Schopenhauer, da Escola Nietzsche, do Instituto Cioran — escrevo para amenizar, para suportar, para afogar, escrevo para calar-me.

Publicado por P. R. Cunha / 10 de março de 2023


Cansado

Estás cansado — cansado de escrever, cansado de não escrever, cansado de correr atrás, cansado de correr à frente, cansado de agir, cansado de procrastinar, cansado da espera, do sedentarismo, cansado da atividade, cansado da passividade, cansado de inventar, cansado de reinventar, cansado do nomadismo, cansado de blogue, livros, manuscritos, dicionários, cansado de acordar, cansado de dormir, dos jogos, das encenações, cansado de actuar, cansado de beber, de devorar, de ser devorado, cansado de verdades, cansado de mentiras, de estar-tudo-bem, de estar-tudo-mal, cansado dos advérbios de modo, cansado dos adjetivos, dos substantivos, cansado das gentes, dos noticiários, cansado dos filmes, das músicas, das artes, cansado de comprar, cansado de ser comprado, cansado dos dados, cansado dos gráficos, cansado das metas, do virtual, do desigual, cansado de revoluções, cansado do mais, cansado do menos, cansado da chuva, do sol, cansado da neve, cansado da pele, das texturas, cansado dos sabores, dos desassossegos — sim, estás cansado.

Publicado por P. R. Cunha / 9 de março de 2023


Vir-a-ser (Café Wittgenstein)

Estaríamos, portanto, fadados a sermos uma espécie constantemente insatisfeita, incapaz de realizar (de facto) alguma coisa? Sempre a expectativa, os dissabores, o quase, nunca o sonho por inteiro, apenas uma série de objetivos fragmentados, incompletos.

Alguém que construísse uma casa funcional, moderna, confortável, mas que sentisse constantemente a falta de algo, de objetos, de móveis, electrodomésticos, ou é a parede que tem um aspeto estranho, a cor do sofá o desagrada.

A casa está boa — alguém diz —, no entanto, precisa de ajustes.

Em suma: acabamento impossível, perpetuamente no futuro.

Publicado por P. R. Cunha / 8 de março de 2023


Cubos de gelo

Quando se escreve muito sobra a inutilidade de todas as coisas, entropia, o fugidio, o efémero, sobre narrativas artificiais criadas para manter o castelo de areia em pé, quando o sujeito se aproxima demasiadamente da falésia, e está a fitar o nada, o vazio, o despropósito, a ausência de sentido das próprias atitudes, inclusive a escrita, antes de mais nada a escrita: atividade monomaníaca, insanidade parcial, ideia-fixa, é preciso de ser um desajustado para dar prosseguimento ao livro?, dar cabo do livro («embarcamos, fazemos a viagem, atracamos ao porto e chega o momento de desembarcarmos»), quer dizer — cultivar uma série de miragens/ilusões, repetir para si mesmo: é um livro relevante, trata de temas relevantes, pessoas relevantes irão lê-lo, etc. Ou quando o próprio livro, a fazenda do livro, as pesquisas do livro, a tipologia do livro, a mancha gráfica do livro, epílogo do livro, prólogo do livro, quando todo o livro se torna o propósito, a obsessão, a única âncora que ainda não enferrujara, e está-se a uma ou duas braçadas do naufrágio.

Publicado por P. R. Cunha / 7 de março de 2023


A dificuldade de terminar o livro

A dificuldade de terminar o livro
não é questão técnica
de estilo ou gramática
é compartilhar quietudes
segredos subterrâneos
cinco anos de convivência
de angústias e desesperos
e agitações e demandas
sim mas também
de refúgios e confidências
e consolos e caminhos gentis
terminar o livro é livrar-me
do amigo que mostrava
dia-após-dia
a alegria das coisas simples
do sentar-me à mesa
das visões fantásticas
da mente atenta
da caneta
que repousa no caderno
após descrever filosofias
reveladoras —
é despedir-me da sinfonia
que levava ao infinito
todas as manhãs o sussurro
de notas suaves
ou ondas irascíveis
de acordes lentos
ou abalo sísmico irrevogável
vislumbre de felicidade
completude efémera
como o abraço de alguém
que já não existe mais.

Publicado por P. R. Cunha / 4 de março de 2023


Insuspeito

Por motivos dos quais não me orgulho, havia deixado de preparar o meu café matinal com aquele esmero ritualístico, como um aborígene que oferecesse o próprio coração aos deuses.

Tornara-se mera atividade despropositada, automática, quase tão previsível quanto apertar o botão da cafeteira eléctrica e esperar a chávena encher.

Eu havia me transformado numa máquina de café sucateada.

Na obra Non-lieux, o antropólogo Marc Augé definiu «não-lugar» como espaço onde se permanece anónimo, sítio que não possui características significativas, que não constrói referências: átrios de grandes redes hoteleiras, autoestradas, supermercados, aeroportos, rodoviárias.

A pessoa, acrescenta Augé, não vive e não se apropria desses espaços, «corredores» onde está-se apenas de passagem.

Em suma, minha rotina com o café transformara-se em não-lugar, numa atividade indiferente, sempre com a cabeça algures.

Até que hoje acordei com o abraço flamejante do sol às 5h43 da manhã com vontades de regressar aos velhos hábitos: dedicar-me ao cafezinho, moer os grãos, sem pressa, água mineral, coador…

Café bem-feito talvez seja um dos melhores antídotos para dias macambúzios. Felicidade indescritível, faz esquecer certas vicissitudes, ameniza fardos.

Sente-se tudo isso por dentro.

A coloração, o sabor característico, a fragrância de amores, ternuras, saudades, de noites confortavelmente solitárias a ler Kempowski deitado no sofá da sala.

Publicado por P. R. Cunha / 26 de fevereiro de 2023


Açude

Ele estabelece o que precisa de ser feito e o faz com dedicação — dir-se-ia — obsessiva. Coloca todas as forças (mentais & físicas) à disposição do projeto, arrisca tudo (vida matrimonial, amigos, reputações), não poupa nada, nem tempo, nem dinheiro, nem a si mesmo.

Há recompensa passageira, que é quando o livro parece escrever-se sozinho, e o autor observa aquelas palavras alienígenas a surgir numa torrente incontrolável.

Sente-se vivo, o autor.

Veículo de vontades alheias, como que possuído. Na plenitude desses recursos, sem se importar com fonte, gatilho, ou com as consequências de tais sacrifícios, todos os obstáculos desaparecem.

Até que algo acontece, mudança repentina de curso, naufrágio. As frases perdem o significado, porque grotescas, falsas, vazias, e os verbos dão ânsia de vômito.

Autor leva as mãos ao rosto e pergunta se não estaria a desperdiçar a própria vida, etc.

Publicado por P. R. Cunha / 23 de fevereiro de 2023


Sons produzidos por reflexões

Cabana. Fica a vinte e cinco quilómetros de qualquer rodovia pavimentada. Estilo Wittgenstein.

Floresta de árvores retorcidas.

Não há postes elétricos. À noite, pode-se ver a abóbada celeste. Infinitos pontos luminosos.

Era assim que ancestrais erguiam o pescoço para o firmamento? Milhões de olhos a observá-los lá de cima? Deuses vigilantes, talvez.

Os astros se misturam. Não é estrela, é Vênus.

Quando nos tornamos tão desencantados com os detalhes cósmicos? Cabeça baixa para não tropeçar. Um sol distante está prestes a explodir.

Quem liga?

Publicado por P. R. Cunha / 22 de fevereiro de 2023


Escreve

Meteras-te em confusão no trabalho? Escreve!

A moça com quem havias marcado um encontro não apareceu? Escreve!

Perderas as estribeiras no jantar de família? Escreve!

Ganhas dois mil dinheiros e gastaste quatro mil? Escreve!

Alguém disse que és um imprestável, vagabundo, preguiçoso? Escreve!

Pensamentos inescrupulosos a respeito da esposa de um amigo? Escreve!

Mamã e papá te odeiam? Escreve!

Esqueceras os pasteis de nata no forno? Escreve!

Em suma: foste atropelado pela vida?

Escreve…

Publicado por P. R. Cunha / 19 de fevereiro de 2023


Ginjais

Infinitesimal. Kazuma Okabayashi. A caneca branca com a marca do batom dela. Não te lembras? A cama ainda desarrumada. O sol que nasceu, mas ainda se esconde atrás das nuvens e das chaminés das fábricas o barulho do maquinário — ao qual já se acostumara. Garrafa de água com gás vazia sobre a escrivaninha. Há quanto tempo não entornas um copinho de licor de ginja? Ginja de Óbidos, a tua preferida de sempre, uma satisfação prazenteira que faz-te esquecer (bocadinho que seja) desta existência por vezes leve, muitas vezes nem tanto.

Publicado por P. R. Cunha / 18 de fevereiro de 2023


Máquina, descrever

É uma questão de não asfixiar a espontaneidade, porque, depois de um tempo, a empreitada torna-se «produção industrial» (ele abre e fecha aspas com indicador e dedo do meio): atingir metas, mil palavras por dia, separar algumas horas às revisões, e todo esse jazz. O gatilho da praxe é o café, que guia o cérebro àquela região misteriosa a que Tarkovsky chamara de Zona. A viagem, na falta de melhor termo, dura pouco, então precisas de aproveitar cada segundo. Trata-se de uma experiência tão reveladora, quase mística, que voltar ao mundo real é frustrante — agressivo, dir-se-ia. Certa vez, no Zoo de Birmingham, vi um cuidador tirar o bebezinho macaco dos braços da mamã macaco, e a atrocidade daquela cena é o que mais se aproxima do sentimento que me assola quando percebo que estou a sair do fluxo literário.

Publicado por P. R. Cunha / 16 de fevereiro de 2023


Planador

Papagaio-do-mar-do-atlântico, estou a observá-lo a um par de horas, a plumagem alvinegra, patas e bicos alaranjados, como se Paul Gauguin resolvesse pintar uma mistura de pinguim com tucano, ave marinha, certo desdém perante as obrigações do mundo, nada parece abalá-lo enquanto mergulha na água salgada, nem o faminto alcatraz-comum — que sobrevoa as falésias à espera de um descuido.

Publicado por P. R. Cunha / 15 de fevereiro de 2023


Visitantes

Quando estamos a ler um livro alheio, é como se a pessoa que escrevera aquelas palavras estivesse a abrir momentaneamente a própria janela para que espiássemos por dentro: percebemos alguns móveis, dois ou três quadros grudados nas paredes, a tapeçaria, o cantinho de uma biblioteca. O mesmo acontece quando alguém nos convida para jantar em casa, e muitas vezes nos contentamos em apreciar apenas algumas miudezas da sala, ou os utensílios do lavabo, mas o introvertido anfitrião não pretende nos mostrar, por exemplo, os quartos do segundo piso — ele apenas diz (ou temos de supor): há quartos no segundo piso, etc.

Publicado por P. R. Cunha / 14 de fevereiro de 2023


Letreiros

Por algum motivo, escutar sinfonias tornou-se acto de resistência, escreve Simon numa tarde de primavera — até quando chamaremos de música clássica? Mozart, o jovem rebelde de Salzburgo, teria odiado o rótulo, da mesma maneira que Ozzy Osbourne não compreenderia se chamassem o espólio dos Black Sabbath de «canções para elevador». Simon leva a chávena de café aos lábios: já tentaste sair do país sem os documentos necessários, sem as autorizações, os certificados, os comprovantes, os recibos?… Pois que os discursos de liberdade não passam de ladainhas, miragens. É como ler que, segundo a Declaração Universal dos Direitos Humanos, todas as pessoas têm direito à moradia, enquanto ao semáforo uma família sem-casa começa a montar acampamento.

Publicado por P. R. Cunha / 12 de fevereiro de 2023


Prescrições ritualísticas

Eis um trecho que poderia estar no livro que escrevo atualmente — e de facto está, com outras palavras. Sensação de inutilidade, de isolamentos (produtivos e improdutivos [a depender do dia]), uma espécie de mantra laico grudado na parede do escritório: imaginar, produzir, descrever. Inquietar-se, sem perder, como se diz, o fio da meada, etc.

Publicado por P. R. Cunha / 11 de fevereiro de 2023


Época em que as coisas ainda não tinham dado para o torto

Os antigos álbuns de fotografia — penso no nosso álbum «Férias em Cabo Frio» de 1989 — sugerem nostalgia porque, amiúde, guardavam momentos marcantes/significativos para observador & observados. Memórias seletivas em 36 poses. Levemos ainda em consideração que o rolo de filme é mais caro (em vários sentidos do termo) do que um despretensioso toque no ecrã do telemóvel: e ao escrever esta frase com certo azedume percebo o tanto que envelheci.

Publicado por P. R. Cunha / 10 de fevereiro de 2023


Etiqueta

Kuznetsov descia a escada rolante da estação de comboios e pensava no que escutara há pouco ao balcão da cafeteria um casal à esquerda a conversar sobre assuntos variados e a atendente à caixa registadora pedira a ele para inserir o cartão na máquina e aquele verbo («inserir») trouxe-lhe uma série de imagens eróticas à cabeça e enquanto Kuznetsov à guisa de bons modos tentava dissipar essas imagens o homem à esquerda disse que «cada um gera também aquilo que acontece consigo invoca-o não deixa de escapar àquilo que tem de acontecer» descia a escada rolante e pensava portanto nessa frase quando viu uma mulher distraída a sorrir para o ecrã do telemóvel e o comboio aproximava-se numa velocidade como se diz vertiginosa e Kuznetsov chegara a tempo para impedir que a mulher fosse atropelada ou pior dilacerada pelo comboio esquartejada e a mulher olhou para Kuznetsov virou-se e continuou a andar sem dizer palavra.

Publicado por P. R. Cunha / 9 de fevereiro de 2023


Sabotagem

Há alturas em que tudo parece andar bem, e o sujeito encontrara certo sossego, continuidades previsíveis, o clima é bom, a escrivaninha adequada, o trabalho flui, o corpo está saudável, mas, como Pascal bem sabia, o infortúnio do sujeito começa com a incapacidade de estar a sós consigo mesmo num quarto vazio, e por causa de circunstâncias biológicas que ainda carecem de maiores explicações algumas pessoas são sempre atraídas para o penhasco, buscam entropia, e se estiverem longe das falésias criam-nas dentro da própria cabeça — um abismo ainda mais terrível.

Publicado por P. R. Cunha / 8 de fevereiro de 2023


Ateliê

Sempre quis começar, escreve Köhler, narrativa ao modo W. G. Sebald em Vertigem, mas não esperava que em circunstância tão insólita, para não dizer perturbadora — adjetivo caro a Thomas Bernhard, escritor admirado tanto por mim quanto por Sebald.

Então, para tentar escapar a um período particularmente difícil da minha vida, meti-me num ateliê improvisado ao jardim da casa e comecei a construir uma mesa de mogno maciço. A ideia era talvez canalizar na madeira as minhas frustrações e principalmente a minha depressão: que naquela época tornara-se uma sombra difícil de ser dissipada.

Como forma de terapia indireta, imaginava uma família feliz em volta daquela mesa, todos sorririam, e falariam sobre os últimos acontecimentos, e brindariam, e reforçariam laços e coisas assim.

Dois anos depois, a minha própria família estava sentada a esta mesa cujo acabamento — vaidades à parte — mostrava-se de facto impecável quando tocaram a campainha. Sem delongas, um jovem com uniforme militar disse que o general Vogel, pai da minha esposa, meu sogro, havia morrido num trágico acidente ferroviário.

Convidamos o soldado para entrar e oferecemos uma chávena de café, a qual ele sorveu com modos mecânicos, quase como se fosse um robô programado para não reagir a estímulos mundanos. O jovem entregou-nos uma mochila com alguns pertences do general. Sem muito interesse, visto que há tempos havia cortado relações com o pai, a minha esposa largou a mochila no chão, perto das crianças.

O soldado fez vênia exagerada e comentou que o aguardavam no quartel, que precisava de partir e fomos acompanhá-lo até à porta. Ao voltarmos para a mesa, Babette, a nossa caçula, estava com um chapéu militar na pequena cabecinha, o quepe do velho Vogel que, diga-se a propósito, matou/assassinou mais de três dezenas de seres humanos em ocasiões variadas.

Publicado por P. R. Cunha / 5 de fevereiro de 2023


Era uma vez

Era uma vez um escritor que de tanto escrever acabara com a tinta de todas as canetas que possuía e para não perder como se diz o fio da meada fizera um pequeno corte na ponta do dedo indicador e prosseguira com o próprio sangue.

Moral da história: quando todos os dardos foram perdidos, jogue-se a si mesmo ao alvo.

Publicado por P. R. Cunha / 4 de fevereiro de 2023


Pastilhas contra o nervosismo

Há muito espaço — a lua e o planeta não estão assim tão próximos.

Nos últimos casamentos aos quais Hannah compareceu, sempre uma espécie de padrão: a fisionomia da noiva, como que desesperada, a perguntar-se: o que diabos estou a fazer da minha vida?

Temperamentos, astigmatismo, cair de bicicleta, o relógio cuco da vovó que metia medo, baterias viciadas de telemóveis viciados, shots de tequila, a cor roxa do Campari, ansiolíticos, cartas para responder, guitarra verde, kit viagem, o sol parecia uma bola de tênis que os miúdos mergulharam em álcool e acenderam com fósforo para brincar de «batata quente», ir ao posto de gasolina, comprar miudezas e nunca mais voltar.

Publicado por P. R. Cunha / 3 de fevereiro de 2023


Anonimatos

Dentro do coração —
tempestade de neve
Lá fora
brilha o sol
escaldante.


Por vezes, estar-se tão isolado que não se reconhece nada além das fronteiras da própria fantasia (artificial, como todas as fantasias). Ao defender-se com barreiras reais (i.e., as paredes de um quarto) e imaginárias (i.e., cadernos de literatura), cria-se cosmologia à parte — onde as leis de física não operam do jeito que toda a gente espera.

De aí tu não seres notado no meio da multidão, porque é como se não estivesses lá.

Depois de alguns dias sem escrever, tuas inquietações ganham ares de angústia (não a angústia de Sartre, nem a de Heidegger, mas a angústia de Kierkegaard [«aquela ameaça imprecisa e indeterminada inerente à condição humana, pelo facto de que o sujeito, ao projetar incessantemente o futuro, defronta-se com possibilidade de fracasso, sofrimento e, no limite, a morte»]).

Lembra-te.

Qualquer segurança que tu tenhas será sempre ilusória e passageira. Sabes direitinho que foste condenado à errância, ao imprevisível, ao efêmero. Não tens pátria, nem casa.

Publicado por P. R. Cunha / 2 de fevereiro de 2023


Fazendeiro que se ajoelhasse diante da colheita devastada

Hoje de manhã passou um veículo pesado a levar árvores na carroceria. Fiquei a observar aquelas mudas que cresceram em algum terreno fértil e agora estavam a ser transportadas alhures — para um jardim residencial?, área verde de um shopping mall?, praça arborizada? Sabe-se que as plantas têm essa invejável capacidade de se adaptar a vários tipos de terra, mas algumas podem não se sentir em casa em determinados solos: definham, tornam-se infrutíferas. Nesses casos, como diria um amigo meu que é biólogo e entende do assunto, «nesses casos, é preciso de ter paciência, ou lamentar a morte da árvore».

Publicado por P. R. Cunha / 30 de janeiro de 2023


Remorsos

Algumas (poucas) pessoas estarão ao teu lado — mas terás de tomar as decisões por ti mesmo. E quase de certeza tomarás decisões equivocadas, ou «pouco adequadas», porque quando escolhes uma trilha, deixas de escolher infinitas outras trilhas, infinitas possibilidades que não foram, e acabas invariavelmente a analisar esses caminhos alheios com uma consciência idealizadora, seletiva: com olhos mágicos, digamos assim.

Publicado por P. R. Cunha / 28 de janeiro de 2023


Aproximar-se das labaredas com destreza

Esta sensação de estar levemente embriagado, incapaz de me aprofundar no trabalho literário, falésias insondáveis por todos os lados — um cão que farejasse e tentasse reconhecer uma rua na qual nunca esteve.

Diz-se que o sol nasce e morre no horizonte. O dia: microvida.

Publicado por P. R. Cunha / 27 de janeiro de 2023


Itinerário

Apenas esquecimento
um cansaço passageiro
quarto arrumado
nova mesa de trabalho
busca de outros objetos
— a escrita consoladora
fica para amanhã.

Publicado por P. R. Cunha / 26 de janeiro de 2023


Obsoleto

Se olhares retrospectivamente, tudo parecerá inevitável. Era óbvio que morreria num desastre de automóvel, sempre afoito no trânsito; não à toa Ximena fracassara, vivia distraída; aquele ali perdeu os botões porque se aventurou ao abismo. Passado simplificado, quando na época havia dúvidas, incertezas, complexidades, havia caos, corações arrependidos, pensamentos sombrios.

Publicado por P. R. Cunha / 25 de janeiro de 2023


Semicírculos

O cérebro — este órgão gelatinoso responsável por 20% do consumo total de oxigênio do corpo humano, máquina de reconhecer padrões, sempre a buscar significados, casa de neurotransmissores que tentam construir a narrativa mais completa possível mesmo diante de uma perturbadora escassez de informação.

Por vezes, bate-se a cabeça e o cérebro chacoalha no líquido cefalorraquidiano.

Dói.

Para cada escritor bem-sucedido, há milhares de outros que sequer conseguiram ser publicados, pessoas munidas de bloquinhos e caneta que perambulam no meio de nenhures, como fantasmas invisíveis à procura de luz.

Publicado por P. R. Cunha / 24 de janeiro de 2023


Interromper-se

O sujeito está numa rodovia escura a dirigir o próprio Nissan Tiida. O relógio digital do painel mostra que são 2:25 da madrugada. Ele decide encostar o automóvel na berma. Os pneus passam por cima de pedras, areia, galhos partidos, folhas secas e param. O sujeito abre a porta e olha para o céu com infinitos pontos luminosos: tudo o que ele vê é ausência, silêncio.

Bebê também estava em silêncio dentro da barriga da mãe. Médico o arranca do conforto do ventre e, compreensivelmente, é homenageado com berros altos e lágrimas. Bebê não pediu para sair.

Publicado por P. R. Cunha / 23 de janeiro de 2023


Não se contrói prédio (decente) em dois dias ou terreno de areia à beira-rio

Quando chegava de uma viagem dessas, sentava sozinho no quarto, lia qualquer coisa, tomava um café, ficava satisfeito.

Tens sempre um caderninho e uma caneta no bolso. Aprendeste a andar com esses pequenos utensílios independentemente de ocasião/circunstância/destino/&tc. Alguém que olhasse para o teu bolso e perguntasse: o que levas aí dentro? Tu respondes: meu material de trabalho.

Ora, caderninho e caneta deitam-se em qualquer superfície (até mesmo na palma da tua mão), de forma que podes escrever em toda a parte — não há desculpa, ainda mais depois que adquiriste uns protetores auriculares eficazes.

Publicado por P. R. Cunha / 22 de janeiro de 2023


Sapo canta sobre a pedra do jardim

Por vezes chegamos a determinados sítios, olhamos para os lados, há montanhas tomadas pela floresta, um céu azul preenchido por nuvens rechonchudas, pássaros que sobrevoam os rios, o vento balança os cabelos e o sujeito se pergunta: estou a sonhar, isto é real?

Nenhum ser humano num raio de quê?, cinco, dez, vinte quilômetros… E numa altura escutamos as cigarras, ou o barulho do nosso coração.

Na cidade: todos os disfarces possíveis e imagináveis. Aqui: nenhum disfarce — máscaras caem.

As árvores dançam todas juntas, e os galhos cantam hinos de indignação.

Na floresta, obedece-se.

Silêncio, horizonte desimpedido, tudo como deve ter sido há séculos. Um filme passa pela minha cabeça: alguns livros publicados, um par de reconhecimentos literários, cada passo até ao, como se diz, «descanso derradeiro». Depois, desaparecem os livros, os prêmios, os jantares artísticos…, eu.

Este sítio não será assim tão tranquilo daqui a alguns anos. A balbúrdia sempre arruma um jeito.

Parte significativa da minha consciência diz que escrever não leva mesmo a nada, certa inutilidade neste ato de colocar pensamentos no papel; enquanto outra parte da minha consciência (igualmente significativa) diz que isto é a única coisa que sei fazer, que se não fosse pela escrita eu não teria motivo para me levantar de manhã, etc.

O andarilho com o próprio cajado, mais três cães (Chicotó, Luva e Leônidas), desbravam a mata fechada como um Fitzcarraldo sem norte, o barulho do rio, a cachoeira, a queda d’água, e toda a insignificância, o disparate, o efêmero — experiência reveladora em tantos níveis.

À noite, o canto arrastado dos insetos. Incontáveis pontos luminosos no céu, manta cósmica. As estrelas também não dão a mínima.

Uns fragmentos de paisagens que têm interesse para quem esteve lá, mas talvez algo minúsculo e monótono para quem apenas lê tais fragmentos.

Nem toda a gente partilha o mesmo entusiasmo.

De manhãzinha, pingos de chuva tamborilam o telhado da casa. Um sapo canta sobre a pedra do jardim, como se dissesse: já é hora de regressar.

Publicado por P. R. Cunha / 19 de janeiro de 2023


Privações voluntárias

Meio a brincar e meio a sério, o escritor disse que só cortaria o cabelo depois que terminasse o manuscrito no qual estava trabalhando. Como o cabelo dele não parava de crescer — chegara, inclusive, a um «comprimento inaceitável» (segundo os parâmetros da própria noiva) —, muitos passaram a acreditar que ele nunca terminaria a obra, enquanto outros, mais maliciosos, alimentavam rumores sobre uma possível desistência do escritor: não só do livro, mas também de toda a sorte de literaturas.

Publicado por P. R. Cunha / 16 de janeiro de 2023


Panorama

Perto da casa da minha infância — na qual mamãe ainda mora — há um parque com longa trilha que leva até ao lago. Durante o trajeto, o andarilho não precisa de pensar em nada, e as pernas como que se movimentam sozinhas. Dentro do parque há também um mirante, de onde avistam-se os prédios do centro da cidade, a ponte, a torre de televisão e, se virarmos para o sul, a varanda do quarto da minha mãe (por vezes com a diminuta figura dela à balaustrada, contemplando). A sensação que se tem é de que tudo ficará melhor: não perfeito, nem ideal, simplesmente melhor.

Publicado por P. R. Cunha / 15 de janeiro de 2023


Uma nuvem relacionada a outras nuvens (nefologia amadora [ou pequenas alterações podem levar a grandes consequências])

Sentar-me à mesa para refletir sobre os sofrimentos do mundo, ler Nietzsche, Cioran, o próprio Schopenhauer, mas também olhar pela janela e perceber um dia agradável e soalheiro. Se muito do mundo é representação elaborada pelo sistema cognitivo, faz-se necessário tomar os devidos cuidados na hora de abastecer esse sistema. Noutros termos: preocuparmo-nos não apenas com a dieta alimentar, mas também com os pratos de informação que consumimos diariamente.

Publicado por P. R. Cunha / 14 de janeiro de 2023


Monólogos interiores

A primeira palavra desenhada no papel, a frase que se segue, pensamentos abstratos que se tornam legíveis — processo que produz estado de êxtase de enorme intensidade —, a caneta avança depressa, como os dedos de um adolescente necromante sobre o tabuleiro ouija, cada átomo do teu corpo está envolvido nesta inextricável e enigmática atividade: é isto o que estás a ver acontecer.

Publicado por P. R. Cunha / 12 de janeiro de 2023


Panorama

Quão maravilhosa deve ser a vida de escritor — ele diz —, pelo menos se tirarmos as neuroses, as ansiedades, os distúrbios, as perturbações, os abandonos, as fobias, os envenenamentos, as vulnerabilidades…

Quando o próprio local de trabalho passa a ser classificado como um sítio inseguro:

«A minha escrivaninha está a afundar-se.»

Mas estou aqui pelo silêncio (o que sobrou dele).

Publicado por P. R. Cunha / 11 de janeiro de 2023


Ocasiões

Na minha juventude, eu jogava futebol praticamente todos os dias, depois voltava para casa e tocava bateria. Era esse o ciclo. Até que aos 16/17 anos descobri a escrita. Eu já havia lido algumas coisas de Poe, Lovecraft, Kafka, Púchkin, mas nada se comparava com aquilo, com o ato de preencher folhas em branco, exorcizar as próprias ideias. Eu pensei: isto aqui é mágico, alienígena, por que cargas demorei tanto, etc. etc. Mais tarde, já nos meus anos 20, tive a mesma sensação ao experimentar cogumelos. Lembro-me de ter olhado para uma amiga e dizer: «É como escrever literatura, parecidíssimo».

Publicado por P. R. Cunha / 10 de janeiro de 2023


Submerso

Não se sabe a verdadeira profundidade das águas escuras sobre as quais o mundo sorridente flutua — mundo de pedras e desertos, mísero átomo diante de um cosmos que está a expandir-se muito depressa.

Sebastián passa boa parte do dia sentado em uma poltrona estilo Kubrick-A-Clockwork-Orange-1972 no centro de um apartamento praticamente vazio. Fuma o cachimbo, serenamente desapegado, medita, não raro tira do bolso um pequeno caderno e toma notas:

A construção e a desconstrução de um outro ser humano depende daquele que está a observá-lo. Amamos ou odiamos de acordo com um conjunto arbitrário de regras que fabricamos, que estabelecemos.

Sebastián hesita, leva a mão esquerda à têmpora: de aí ser tão «agressivo» para o observador quando a outra pessoa resolve participar da equação caleidoscópica, e se mostra alguém completamente diferente de quem acreditávamos que fosse.

Publicado por P. R. Cunha / 9 de janeiro de 2023


Contradições elétricas

A chuva
o frio —
solidão


Escrever à máquina: mais que um método anacrônico, uma resistência.

Alguém diz: livro de papel, livro eletrônico, qual a diferença?, são palavras, o conteúdo é o mesmo.

Uma pessoa que se levanta cedo, está a se preparar para o dia, toma café na caneca favorita (presente, digamos, da filha, ou do cônjuge, ou talvez herança de um ente querido), experiência significativa. Agora, estás deitado no leito de um hospital, uma enfermeira injeta café na tua veia, ou talvez diretamente na boca, o tubo plástico encosta nos teus lábios, a luz branca do quarto causa-te náuseas.

Café.

O conteúdo é o mesmo, certo?

Publicado por P. R. Cunha / 8 de janeiro de 2023


Valsa à eternidade

O propósito, a razão, o significado de escrever é continuar escrevendo.

Como uma memória que nunca existiu, um fantasma que te envolve, e não te assusta, nunca fala alto — está sempre lá.

ESCRITOR (es-cri-tor [três sílabas, oito letras]):

Alguém que passa anos isolado, a praticar em segredo exercícios mentais de autotransformação e, por meio dessas técnicas, desenvolve extraordinário controle sobre a caneta.

Formas de vida baseadas em carbono / monólito.

Em outros termos: a escrita é algo que não desaparece, mesmo quando deixamos de pensar nela.

Scott Fitzgerald, Virginia Woolf, Hemingway, Philip K. Dick, Kerouac, Sylvia Plath, Lovecraft, Poe…

Às vezes, enlouquecer é resposta apropriada à literatura.

Publicado por P. R. Cunha / 7 de janeiro de 2023


Na meninice: viagens ao Rio de Janeiro; na velhice: tempestades em Brasília; no meio: todo o resto

Onde estão os limites da minha ilusão?

Um escritor que almejasse curar corpos e «almas» doentes.

As ondas
o cair da neve —
vento paralisado


Sonhei que estava dentro de um automóvel e caíamos de uma ribanceira. A queda parecia durar uma pequena eternidade. Vestígios da morte do meu pai? Possivelmente.

Todos os corações parecem felizes. Ao longe, um cachorro late (mas não me incomoda).

Publicado por P. R. Cunha / 6 de janeiro de 2023


Núpcias

Escrever como se fosse a primeira vez — grande desafio.

A rotina subtrai supérfluos, mas também embrutece, negligencia.

Um miúdo a quem ainda não ensinaram nada, e tudo o que ele sabe é aquilo que sente, sem conceitos estabelecidos, sem nomenclaturas, sem rótulos.

Criar coisas e deixá-las desaparecer. Depois, lamentar-se por não ter sido mais amável com elas.

Ir embora enquanto o mundo todo ainda se mostra aberto para as fugas.

A cadeira é a mesma, os livros em redor são os mesmos, a escrivaninha é a mesma, o escritor não é o mesmo.

Como é fácil uma rotina dessas desmantelar-se. Mas aqui não é proibido brincar nas ruínas.

De longe um clarão
como uma biblioteca ardendo

Publicado por P. R. Cunha / 5 de janeiro de 2023


Geometria euclidiana

Sabe-se que o comportamento de um escritor sobre a folha em branco sugere possibilidades sem fim. Cada escolha, cada vírgula, cada ponto…, tudo acarretará em outras escolhas, outras vírgulas, outros pontos, ad infinitum. E isto é verdadeiro — construir mundos não é assim tão simples quanto parece. No entanto, o que a atividade exige não é necessariamente uma escrita total, mas antes um tipo específico de síntese, uma redução aos elementos mais importantes daquilo que se quer contar. Assim, a caneta que se expande, e se retrai, e se bifurca em todas as direções, pode ser reduzida a um plano finito.

Publicado por P. R. Cunha / 4 de janeiro de 2023


Ouvidos internos — depois da tempestade, vêm outras tempestades

Início de ano. Digo a mim mesmo para tirar umas férias: trabalhaste demais, descansa. Vinte e quatro horas depois, lá estou eu angustiado atrás de papel e caneta para conter as vozes que transbordam a minha cabeça.

Coruja: símbolo de sabedoria, guardiã da Acrópole. Mito provavelmente inspirado pelos olhos grandes e pela aparência solene dessas rapinas nocturnas.

Sobre a minha mesa de trabalho há uma corujinha de pedra — chama-se Orwell. Está sentada perto dos livros do Kempowski com uma expressão severa, olhar fixo, inquisidora.

Uns olhos vidrados do tipo que encontramos, segundo Sebald, em determinados pintores e filósofos que, com recurso apenas à pura observação e ao puro pensamento, procuram penetrar nas trevas que nos cercam.

As corujas de verdade são feitas de penas, farta plumagem, asas longas, ossos adaptados ao voo, átomos, moléculas, e, assim com os seres humanos, espaços vazios.

Publicado por P. R. Cunha / 3 de janeiro de 2023


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