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P. R. Cunha

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Sobre o autor

Banho gelado, antes de qualquer coisa. Depois, fazer alongamentos — aleatórios, sem nenhuma bateria de exercícios pré-estabelecida, nada de conselhos do monsieur personal, que ganha lá tremenda fortuna para simplesmente reproduzir uma qualquer lista enfadonha de aquecimentos,  consequência direta da chamada expansão da indústria da beleza, que parece exigir de toda a gente um corpo muito magro e esbelto e sem imperfeições, o que é bem difícil, bem difícil mesmo, quase impossível se pararmos para pensar nas porcarias que se comem, nos conservantes, nos venenos e isso e aquilo, daí que o monsieur personal utiliza, ou melhor, usurpa essa lista num sítio web com tipologia «Comic Sans» e repete: faça assim e faça assado; e depois nos cobra por isso, cada centavo, vê lá como isto tudo funciona, e essa lista não é outra coisa senão um conjunto terrível dos exercícios mais terríveis, exercícios que logo deixam aqueles que se predispõem a realizá-los, ou seja, aqueles que ingenuamente acreditaram nos supostos conselhos do monsieur personal, logo deixam, como eu estava lhe dizendo, logo deixam aqueles que querem adotar hábitos mais saudáveis com as melhores intenções, não animados e predispostos, como havia de ser, mas sim aborrecidos e tremendamente entediados, ao que eles não mantêm nenhuma rotina saudável porque ao pensar nesses exercícios aterradores eles sentem aversão, e é bem por isso que me exercito ao acaso, de acordo com as circunstâncias, a respeitar o meu próprio apetite, mando às favas quem se mete a dizer como e quando preciso movimentar meus músculos etc. Alongamentos aquecem depois do banho gelado. Se lá fora o tempo se mostra ameno, pedalo a minha bicicleta. Mas é claro que não é sempre assim. Por vezes simplesmente levanto e sento-me para escrever em mangas de camisa, ou mesmo de pijamas, enquanto entorno minha caneca de café com o rosto do David Lynch estampado. Aparentemente minha cabeça funciona de forma satisfatória ali por volta das catorze horas. E por mais que ache divertido observar alguns colegas escritores apegados a rituais extravagantes, eu mesmo não cultivo nenhum. Bom, gosto de ler periódicos estrangeiros antes de praticar a própria megalomania; para induzir os neurônios, como se diz. E não me incomoda o fato de esses periódicos me influenciarem, de modificarem a minha escrita. Fontes criativas estão por toda a parte, eis um adágio apropriado. Se bem que prefiro ler algo que não tenha muita relação com o tema a respeito do qual estou escrevendo. Dia desses um repórter local pediu-me para contar como tinha sido a minha adolescência em Brasília e antes de ir encontrá-lo para responder à entrevista eu me embebedei de Virgílio, li Eneida até dizer chega. É um poema belíssimo e ainda assustadoramente contemporâneo, apesar de ter sido escrito há mais de dois mil anos. Cito de memória um trechinho: veloz, divide ora aqui ora ali o pensamento indeciso, por várias partes detendo-se, sem decidir coisa alguma. No decorrer dos séculos, muitos continuariam a se identificar com os versos de Virgílio, por isso Eneida se tornou um dos poemas mais republicados da história. O desassossego mudava de região para região e mostrava-se com diversos aspectos de intensidade, mas se um gajo sofresse de melancolia em Inglaterra e outro na Rússia sentisse dores por conta de um coração partido, e se esses dois pobres-diabos combinassem de tomar café, digamos, em Viena — as angústias seriam reconhecíveis, compreender-se-iam sem grandes dificuldades, mesmo se houvesse qualquer barreira linguística. No futuro eu já não sei; continuaremos a ler Eneida? Continuaremos a nos reconhecer ali enquanto manuseamos smartphones virtuais e ligamos para a mamã telepaticamente? Compadeço as penas de neurologistas, psicólogos e psiquiatras que precisam se desdobrar para compreender tantas fobias, neuroses, transtornos maníacos que surgem a cada segundo por conta de certa dependência tecnológica. O jovem do Rio de Janeiro que se deita no divã e tenta explicar para o confuso profissional da alma por que pensara no suicídio depois que determinada Fulana de Bucareste não curtira uma fotografia que ele postara justamente para essa Fulana de Bucareste, ou um outro sujeito que de facto se enforcara porque teve conversa íntima interceptada por hackers e na noite seguinte se deu conta de que a imagem do próprio pênis tinha sido publicada em todas as redes sociais imagináveis. O que estou querendo dizer é que li o velho Virgílio, que teria completado 2087 anos em outubro, para escrever sobre a minha juventude numa cidade com menos de seis décadas. Talvez você considere isto um tipo de ritual. Talvez. Passo muitos dias sem escrever. São dias terríveis que me fazem refletir seriamente: pronto, é isto, não deu certo, tente outra coisa, literatura não é para você, e você sabia desde o início, e mesmo assim insistiu na coisa toda. Acontece que meu dormitório há tempos se transformara também na minha biblioteca. Acordo de manhã cedinho virado para duas estantes com aproximadamente mil livros e é difícil explicar a aversão que sinto a esses livros quando estou imerso num desses períodos em que não consigo anotar uma linha sequer. Mas daí vêm as semanas de explosão, como costumo chamá-las. Quinze, dezesseis, dezessete dias em que tomo gosto pela coisa, faço as pazes com as palavrinhas, e escrevo um monte, e até ouso comparar-me aos gigantes. Escrevo minhas cinco páginas por noite, depois leio o Bernhard e sinto que estamos no mesmo patamar, escrevo tão bem quanto o Bernhard. E por que me iludo dessa forma é matéria sobre a qual apenas posso especular. Obviamente que essas semanas de explosão passam, caio na realidade, como se diz, e é nesse momento um tremendo choque. Volto a odiar os livros, volto a odiar as coisas que escrevo, volto a odiar o mundo, volto a odiar meus pais, meus irmãos, meus amigos, toda a gente que não me permite escrever, a culpa é toda deles etc. Vou até à livraria, abro vários livros ao acaso, se determinado parágrafo com o qual me deparei me agradar então carrego o livro para alguma mesa da lanchonete dessa livraria, peço o café e continuo a minha leitura. É basicamente assim que procuro as ideias inicias, a pedra fundamental, como diriam os nossos piedosos antigos. Ou por vezes algum amigo solta qualquer frase inusitada, tomo nota porque pretendo utilizá-la num futuro romance. Ir para um bar e de maneira discreta — ou não — ouvir a conversa alheia. As pessoas geralmente bebem para esquecer, e é sempre um prodígio descobrir o que elas querem esquecer. Assistir aos filmes mudos. Ir a recitais de música clássica. Conversar com pessoas mais velhas, aquelas que viveram, não sei, mais de oitenta anos; como se sobrevive neste planeta assustador durante tanto tempo? Qualquer faísca pode ser o suficiente para colocar a narrativa em movimento. Gosto também de me envolver emocionalmente com os protagonistas dos meus livros. No romance que estou escrevendo agora, por exemplo, o narrador é este sujeito intransigente, carrancudo, taciturno. Ao passo que não raro eu também me vejo intransigente, carrancudo, taciturno quando ele perde um familiar, ou quando se decepciona com os seres humanos — e esse tipo de decepção parece ocorrer a cada duas páginas —, ou quando a dama bonita que mora no 302 recusa pedido de almoço depois de ele ter passado quatro noites sem dormir antes de finalmente ter coragem o bastante para bater à porta dela. Entrego-me a essas esquizofrenias de bom grado e acho que é bem por isso que muitos me questionam se meus textos são autobiográficos. Você passou por essas situações mesmo?, perguntam-me. Tento explicar que na verdade foram os personagens que passaram por aquilo tudo e eu cá na vida real estou a copiá-los na cara dura. Trata-se de uma constante convivência com essas figuras imaginárias. Quando me dá na telha, transcrevo alguns dos nossos diálogos e de repente há ali um qualquer esboço de romance. Então é isso: no fim das contas, sou apenas o editor das minhas esquizofrenias. Há quem não pise mais em museus porque sente medo de não compreender aqueles quadros todos, as esculturas de determinado gênio renascentista etc. «Céus! O que vão achar de mim, da minha ignorância, da minha falta de cultura, serei finalmente desmascarado?» Pois procura atender às expectativas de uma sociedade que exige cada vez mais que saibamos de tudo, que sejamos especialistas em cada detalhe do que se produziu. «E se eu não sentir nada quando me deparar com a Mona Lisa?» A maioria então recorre aos telemóveis, procura no Google: como devo me portar diante da Mona Lisa, e assim por diante. O grande paradoxo é que podemos encontrar milhares de respostas nos sítios web, mas se nos acostumamos com essas pesquisas ligeiras, superficiais, guardamos pouco para si. Isso tudo porque muitos não têm coragem de simplesmente dizer: ora, não faço a ideia, não entendo. Um amigo artista plástico que mora em Perm, na Rússia, explicou-me que começa os melhores quadros depois de, digamos, descarregar-se em cima da privada. Quando expõe as próprias obras nas galerias gosta de se esconder num canto e observar a postura pedante dos supostos entendedores de arte, que conjecturam os maiores absurdos sobre o processo de trabalho dele. Não me isolei numa cabana no meio da floresta, ele diz, pintei isto aí depois de uma boa cagada. O meu ponto é: depois que desmistificamos artistas e criações artísticas, depois que compreendemos que, como diria Montaigne, no trono mais alto do mundo continuamos a estar sentados no nosso traseiro, depois que nos libertamos dessas amarras, dessas exigências de sermos conhecedores excepcionais, daí não há motivo para nos sentirmos ansiosos. Vou escrever um livro para falar dos assuntos que eu compreendo; pode não ser grande coisa, mas já é algo. Quando terminá-lo, terei tempo para aprender novos temas. É este ciclo de desconhecimento, de ignorância temporária, que me mantém nos eixos, que me destrava. Não sei se me explico. A verdade é que se eu pudesse revisaria meus textos para sempre. Mas isto é contraintuitivo pacas, como sabemos. Então em algum momento preciso dizer a mim mesmo: isto está suficientemente bom, chega. Por conta dessa eterna busca perfeccionista eu quase nunca releio meus trabalhos publicados, pois sei que vou encontrar ali qualquer coisa de indecoroso, uma vírgula deitada no canto errado, um termo bobo, infantil de mais, choramingas de mais, sentimentaloide de mais. Isso deprime à beça. No início do ano comecei a trabalhar com um editor português, o António, e é para ele que preciso mostrar meus rascunhos. De vez em quando também envio cópia para o meu eterno professor Paulo Paniago, que sempre me presenteou com os melhores conselhos. Mas acontece que o Paniago tem lá as próprias tarefas e sei cá bem que não posso aborrecê-lo a toda hora. Fora eles, não sinto muita necessidade de compartilhar minhas criaturas. A não ser que perguntem: ei, o que está aí a escrever, posso dar uma olhada? (Entenda que por vezes esta atividade nos isola e um acaba por se sentir um tantinho vaidoso quando alguém demonstra interesse pelo que se está a produzir.) «Claro!, e depois me diga o que achou.» Há pouco assisti a uma entrevista incrível com o Paul Auster na qual ele comentava que independentemente dos avanços tecnológicos sempre iria criar romances utilizando uma máquina de escrever Olympia, com cerca de trinta anos de uso. Mas que isso não deveria ser parâmetro para ninguém, o senhor Auster explica numa determinada altura, era apenas o método que encontrara para si à guisa de padronizar o processo de escrita. Como se esse velho hábito mostrasse ligeiro ao próprio cérebro: aqui estamos novamente diante da Olympia, sabemos do que se trata, é hora de colocar a mão na massa. Achei uma maneira muito, muito elegante de se posicionar. Em nenhum momento o senhor Auster condena os escritores que escrevem no computador, ou no telemóvel, ou em qualquer outra mídia moderna. Ele não impõe, não evangeliza. Simplesmente acostumara-se a essa rotina pessoal, sente-se confortável assim, sabe que o plano lhe serve bem. Então, por que alterá-lo? No meu caso, gosto do movimento da caneta sobre o papel, de brincar com a minha tipologia por vezes errática, modificar as cores para destacar situações específicas do romance. Fui alfabetizado dessa forma e meu sistema neurológico acostumou-se. Quando sinto que o texto está razoavelmente pronto, porque, como lhe disse, a mim ele nunca estará completamente pronto, daí passo tudo para o computador. Excelente forma de se revisar, inclusive. Pois que de súbito estou como que a ler o texto de uma outra pessoa. — E eis que topamos novamente com a minha esquizofrenia. Percebo-me mais criativo quando passo um período perto da literatura e outro longe da literatura. Numa palavra: se consigo estabelecer essa frequência de forma consciente, as ideias me surgem aos bocados. Aliás, sempre que termino um trabalho de fôlego, como se diz, gosto de analisar de que maneira consegui me adequar às demandas dele. Porque, repito, é bem isto que acontece: o livro está no comando, toma as rédeas do meu cotidiano, e se me dou conta de que aceitar o convite de determinada senhorita para tomarmos um café possa interferir num trechinho taciturno que estou a escrever — pois que o encontro com tal dama me deixaria com certeza demasiadamente feliz —, então digo a ela que não posso, fica para outro dia. Tais influências livrescas, obviamente, costumam ultrapassar todos os limites da sanidade. Para amenizá-las, saio e me meto a tirar fotografias. Por enquanto tem funcionado. Veja que a cada dia temos de lidar com uma série de experiências. Algumas nos enchem de alegria, outras nos fazem sofrer um bocado, sentimos raiva, esquecemos um tanto, guardamos à memória outro tanto. Isso acontece com toda a gente. Um conjunto enorme de ações que mostra o que somos, ou o que deixamos de ser, ou mesmo o que poderemos ser, como já se disse. O tipo que se dedica à escrita consegue de certa forma sistematizar esses acontecimentos, remodelá-los; contextualiza o presente com algum trauma do passado, teme o futuro por conta de uma tragédia anunciada etc. É a velha imagem da literatura como organizadora do caos. O livro cuidadosamente encadernado tem início, meio e fim. Já a vida é incerta, imprecisa, tem algo de adivinhação. Essa volta toda para lhe dizer que meu processo de escrita adaptou-se a esse acúmulo de ocasiões. Meu pai faleceu, ganhei prêmio literário com o Paulo Paniago, participei de projetos musicais, montei exposição com as minhas fotografias, terminei relacionamento de nove anos com uma moça que eu tinha absoluta certeza de que seria a mulher da minha vida, entrei em parafuso, saí do luto, voltei ao luto, saí do luto novamente e todas essas marcas, essas cicatrizes, influenciaram minhas narrativas, ou melhor, foram as minhas narrativas. O Mariano Sigman costuma dizer que não há nada em nós que seja inato. Em certa medida, nosso cérebro toma forma com a experiência cultural e social, é algo que está sempre a mudar. A evolução da minha escrita, sem juízo de valor, é portanto um reflexo dessas influências perturbadoras em constante movimento. Papai falecera num desastre de automóvel em 2010, pouco antes de eu completar vinte e cinco anos. Significa que em 2035, no meu aniversário de cinquenta, poderei dizer que passei metade da vida a ter pai e a outra a não tê-lo. Então gostava de escrever sobre isto, sobre o Evandro, sobre como as minhas lembranças dele se comportaram durante tanto tempo. Tenho tomado notas a respeito, vejamos. Enquanto isso, continuarei a tratar do nosso relacionamento contemporâneo com a memória. Como se lida com a morte alheia, com a saudade, como se lida com a própria finitude. Tantos mecanismos que se criam, miragens para poder seguir em frente, para legitimar o próprio papel nos contextos sociais e assim por diante. Quanto ao livro que gostaria de ler e ainda não existe. Bom, talvez um qualquer romance escrito por inteligência artificial, mas que isso seja completamente imperceptível, sabe? Ninguém se dá conta de que fora um robô que escrevera. Daí suponhamos que o livro ganhe o Nobel, e na hora da premiação coloquem lá o computador ao púlpito para dizer eletronicamente: humanos, superei-vos. Cena pra lá de assustadora. Mas quem sabe também não seja uma possibilidade de revermos nossos conceitos, nossos próprios valores artísticos?

P.S.: o epicentro da minha vida sempre foi a escrita e arrisco-me a dizer que sempre será pois nesta altura estou com quase quarenta anos e não sei se tenho forças adequadas para remover este enorme cometa que ocupa meus pensamentos praticamente a tempo inteiro. Não me considero um escritor fracassado até porque se o fosse os substantivos não surgiriam na folha em branco com certa facilidade mas sou na maior parte um autor fracassado não sei angariar leitores como se diz no jargão comercial buscar editoras tampouco me apetece e só de pensar em noites de autógrafo e/ou leituras em público a agorafobia consome as minhas entranhas. Em suma eu sei o que quero escrever mas não sei vender o que escrevo. Não exageraria se dissesse que a construção de universos paralelos é uma atividade que torna a minha existência interior suportável e penso que quando estou um bocadinho predisposto a vida exterior é bem mais fácil de domar ainda mais quando aprendemos a sair do esconderijo com os disfarces adequados. A coisa toda obviamente não pode durar muito tempo há limites. Se fico longe da escrivaninha meu estado emocional se deteriora e deve ser uma cena dolorosa para quem está perto. Então tento explicar sem sucesso que meus modos são voltados para a escrita minha rotina minhas neuroses minha energia minhas obsessões minha impaciência meu desespero tudo tem a ver com a escrita pois se escrevo as coisas tendem a ficar bem mas se não escrevo torno-me ainda mais insuportável. O que quero dizer é que as ondas da escrita me definem. Posso estar na crista em puro êxtase e num intervalo de poucas horas cair numa depressão abissal como um oceano que nunca se decidisse. A verdade é que se trata de uma batalha constante para conseguir escrever ter o meu momento com a escrita e quando as pessoas simplesmente me deixam em paz eu logo desconfio: ora isso não pode estar certo por que me deixam escrever qual é o ardil desta vez etc. etc. etc. Como tantos outros escritores também fiz listas detalhadas de tudo o que já sacrifiquei pela escrita — série de carnificinas pessoas objetos relacionamentos oportunidades desperdiçadas pedaços para todos os lados. De aí a escrita falha ou talvez a manhã não tenha sido assim tão produtiva e é quase impossível não se perguntar: vale a pena?


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