Dois mil & vinte & dois
Acontece de às vezes eu acordar no meio da noite e ter umas ideias, e eu penso: são ideias incríveis, maravilhosas, nem preciso de anotá-las, não vou esquecer, etc. Daí eu acordo na manhã seguinte e já não lembro de mais nada.
Posso ser um animal agradável, divertido, aprazível, desde que as coisas funcionem num ritmo adequado ao meu temperamento. Sem excessos. Dezembro é o mês das confraternizações, dos compromissos sociais, da necessidade («obrigação» talvez seja um termo desproporcional) de se estar com outras pessoas.
Começo bem, danço conforme a música, sorrio, me esforço, brinco, conto as piadas da praxe. Mas os eventos se acumulam, e chega uma altura em que simplesmente não dou conta.
Esgotado, meu corpo pode até estar ali. A minha consciência, no entanto, perdera-se nenhures.
Como que hiberno, um urso polar, meu tempo interior dessincroniza-se, sinto que não consigo mais responder ao mundo. Aquele embaraço sobre o qual escrevera Baudelaire: o ópio que imobiliza o sujeito diante do espetáculo humano — que de súbito se acelera vertiginosamente.
Eis que procuro confortos passageiros. Aguenta firme, a festa não se demora, em breve poderás voltar ao teu refúgio gramatical.
Entrega-te de bom grado ao naufrágio.
E feliz ano novo.
Publicado por P. R. Cunha / 31 de dezembro de 2021
Espelhos desabados
Estive a analisar friamente alguns padrões que assolaram os homens da minha família. Herdei deles uma eterna insatisfação, sempre em busca de algo, de alguma peça, e como nunca achamos a peça (se calhar, nem exista), invade-nos umas angústias, ansiedades fúnebres, «consciência do desespero».
Um primo do Rio de Janeiro que precisou de ser transferido para um asilo de alienados pois tornara-se um estorvo, andava abatido pelos corredores do hospício, com aquele olhar vítreo e distante que por vezes eu também sou acusado de possuir.
Um olhar parecido com o do meu pai, que quando estava perto do Atlântico sentava-se para ver o baile das ondas, e a postura inclinada, dir-se-ia taciturna, como que indicando profeticamente a morte que não tardava.
Numa altura estamos exaltados, subimos aos céus (nos termos de Starobinski, diante de quem escrevo estas ruminações), num êxtase de intuição unificadora, manias de grandeza, sentir-se um deus, reis da chuva; noutra altura a busca pela solidão, o retrair-se, fugas, a imobilidade, o estupor — o suicídio.
Instrumentos musicais
reduzidos ao silêncio
numa câmara em ruínas.
Publicado por P. R. Cunha / 30 de dezembro de 2021
Paisagens fluviais — em que P. R. Cunha conversa com interlocutor invisível
O segredo será sempre a continuidade. Sem continuidade, sem uma certa disciplina, não há livro, não há poesia, não há muita coisa. Escrever todos os dias, como se come todos os dias, como se bebe água todos os dias. Do contrário, debate-se diante da escrivaninha, as mãos de alguém que naufraga: frias, lentas e dispersas. Também lá estive e nunca vou esquecê-las.
Cumplicidade ativa do demônio procrastinador. De certeza que imensas coisas são mais úteis, e mais fáceis, e mais instantâneas do que escrever. Simplesmente não as deixo contaminar a minha rotina, faço-me ao largo.
Por isso não tenho televisão, essa aprazível assassina encefálica.
A longo prazo, nada se compara aos poderes proporcionados pela literatura — mesmo que muitas vezes esqueçamos partes do nosso coração durante a caminhada que, a despeito das recompensas, nem sempre é bonita.
Publicado por P. R. Cunha / 29 de dezembro de 2021
Conjecturas sob uma velha árvore ao jardim
Eu me visto e saio
para regar as hortaliças
procurando não pensar
em nada.
Mesmo quando tudo está
a correr bem
e o céu azul seca
a chuva da noite anterior
que ainda cobre a relva e
uma brisa amena refresca
o coração
tinha tudo
repito
tudo para estar feliz mas
ainda percebo a insistência
a presença dessas sombras que
consomem qualquer vontade
de existir
sentimentos desmoronados
como se nunca me fosse permitido
o período de tranquilidade
até a revolta
a indignação
reclamações gratuitas
deixaram de ser:
mecanismos de defesa.
Publicado por P. R. Cunha / 27 de dezembro de 2021
Aparências humanas
O mundo contemporâneo — escrevo isto no crepúsculo de 2021 — permite (e fomenta) a ilusão de conhecimento infinito, tudo a um simples clique de distância. Acontece que, diferentemente das memórias de silício, ainda carregamos dentro da caixa craniana este cérebro orgânico, com capacidade limitada.
Numa altura, as gavetas ficam cheias e não entram mais informações: a despeito de insistências.
Estou a reler Schopenhauer, criatura violenta, irritável, tempestuosa, que canalizava-se (ou pelo menos tentava fazê-lo) em filosofias. O desejo nunca cumpre promessas, ele disse. Acabo de terminar projeto que demandara imenso da minha sanidade nesses últimos anos, e não sinto absolutamente nada. Anestesiado.
A pessoa se isola, reflete, constrói ideias até sentir o ímpeto da criatividade. Ela então sai em busca de novos narcóticos temporários.
É da natureza humana acumular e se entediar. Mesmo se tivéssemos um cérebro ilimitado, jamais nos sentiríamos plenamente satisfeitos. A não ser que nos transformem de uma vez por todas em autômatos impassíveis.
Publicado por P. R. Cunha / 26 de dezembro de 2021
Macromanias
Por ser uma pessoa instável, sempre tive medo de falar que sou escritor, adotar postura de escritor, e enquanto eu estivesse lá fora, preocupado em manter essa máscara literária, eu não escreveria nenhuma palavra, nenhum livro, nada.
Li outro dia os queixumes de um astronauta que não conseguia exercer a profissão pois tinha de dar imensas entrevistas, e participar de jantares, encontros políticos, festas de formatura, etc., etc., implorava para que o deixassem em paz: só queria ser astronauta.
Parafraseio Artaud, que também se desentendera com os exteriores, que eventualmente anunciaria um corte radical com a humanidade (e, dir-se-ia, consigo mesmo): quando vivo, não me sinto viver, mas quando escrevo, aí me sinto existir.
O resto não passa de armadilha vaidosa, alimento fútil para o ego — este mal incurável.
Publicado por P. R. Cunha / 25 de dezembro de 2021
Exílio voluntário
Depois do período de reclusão, eis que sai o homem para o seu primeiro passeio à livraria em meses. De início, um desconfortável estranhamento diante daquele naufrágio de livros, e palavras, e miudezas de papelaria, estranhamento que dura apenas um bocadinho, pois, dali a pouco, lá está o homem a manusear toda a sorte de obras, eufórico, como uma criança que girasse na roda gigante pela primeira vez.
Publicado por P. R. Cunha / 24 de dezembro de 2021
Terraço
Começa-se sempre
com alguma paisagem
estou parado à janela
e observo
nuvens negras que se acumulam
no céu
nos pensamentos
cenários de desfiladeiros
abismos
de contemplações solitárias
corpo inclinado ao parapeito
como a segurar
o peso de todo o universo
prestes a atingir algum
objetivo
que nunca chega
a lenta gravidade
do planeta que se afasta
do sol sem jamais
livrar-se completamente dele
das nostalgias
dos pesares
força magnética a unir moléculas
a estação de devaneio
em que tudo o que se deseja
é certa paz silenciosa
completa imobilidade
chuvas vestidas de carvão
enquanto passa o carro funerário
portador de notícias sinistras
os últimos dias de Sócrates
crepúsculo dos ídolos
ensaios
aforismos
cartas para Montaigne
o busto de Schopenhauer
ao final do corredor
que não deixa esquecer
deste bosque macabro
em que vive
o triste contemplador
a lidar com o próprio corpo
de maneiras ruinosas
noites sem dormir
drogas excessos álcool
automutilações
evidências da precariedade
certa beleza do infortúnio
o declínio derradeiro de uma estrela
longínqua
sem calor
fadada ao gelo
da escuridão.
Publicado por P. R. Cunha / 23 de dezembro de 2021
Declínios à volta
Por vezes acho que leio muito, que deveria dar mais atenção ao chamado «mundo real» — aquele das contas a pagar, tarefas a cumprir, pessoas a encontrar —, que estou isolado, numa ilha. Então eu saio, pago contas, cumpro tarefas, encontro pessoas e de aí começo a achar que não estou a ler o bastante, que negligenciei minhas literaturas, que precisava de escutar meu coração e nunca mais ir algures. Ao que tranco-me no escritório, abro um livro: o ciclo recomeça.
Publicado por P. R. Cunha / 22 de dezembro de 2021
Prelúdio
Ele tocou a campainha da casa e ajeitou os cabelos com os dedos da mão esquerda. Olhava de soslaio pela janela a ver se percebia alguma movimentação lá dentro. Ela descia as escadas.
Os dois se conheceram num café. Ela estava a ler Wittgenstein e ele Husserl. Fitaram-se como os cúmplices costumam se fitar depois de um crime quase perfeito. Conversaram por horas, ela sobre lógica e linguagem, enquanto ele exaltava as ideias da fenomenologia. Ele ficou aliviado quando, antes de fecharem o café, ela tomara a iniciativa de convidá-lo para continuar a conversa na noite seguinte. «Pode ser na minha casa», ela sugeriu, ao que ele respondeu que talvez fosse melhor mesmo, pois tinha acabado de reformar o próprio apartamento, que ainda estava uma bagunça, esse tipo de coisa. A verdade é que ele ainda morava com a mãe, e não queria que ela soubesse. Não agora.
Ela desceu as escadas e abriu a porta: Andrei, ela disse. Boas-noites, Lívia, ele disse ao levantar o buquê de rosas — trouxe isto. Ela cheirou o buquê e pediu para ele entrar. A sala principal da casa tinha um teto de madeira ligeiramente abobadado, sofá marrom atrás da mesinha de centro, sobre a qual jazia um enorme tabuleiro de xadrez. As paredes, repletas de adereços náuticos, davam a impressão de se estar dentro de um luxuoso veleiro. Ela colocou as rosas no jarro, encheu dois copos com Jack Daniel’s, estendeu um para ele. Os dois se sentaram no sofá. Ao fundo, quase imperceptível, o aparelho de som tocava uma sonata de piano. Provavelmente Schubert, ele pensou. Ela girava os gelos dentro do copo com o indicador. Os dois ficaram em silêncio, aquele tipo de silêncio constrangedor, quando não se sabe ao certo o que fazer. De súbito, o rosto dela como que se irradiara. Ela se levantou e disse: tenho uma ideia. Foi até à cozinha e voltou segurando uma espécie de pá. Vem comigo, ela disse.
Os dois saíram por uma porta que dava para o jardim arborizado da casa. Ela ascendeu a luz dos três postes que ficavam nas laterais do terreno. Alguns cachorros começaram a latir. Vem, mais perto, ela disse. Ele se aproximou e ela começou a cavar com ímpeto. Cada vez que a pá atingia a relva ela soltava uns grunhidos furiosos. Ele não estava entendendo. Lívia, ele disse, Lívia? Alheada, ela apenas cavava, cada vez mais fundo, cada vez mais fundo.
Publicado por P. R. Cunha / 21 de dezembro de 2021
Retrospectivas
Ontem recebi mensagem de certa leitora portuguesa a dizer que já me acompanha há uns dois/três anos e que o que mais gosta nos meus textos é o facto de eu respeitar a inteligência dos meus leitores.
Em 2020, mais um ano virulento e estranho, escrevi 55.394 palavras neste blogue. Evitei publicar aos fins de semana, embora nem sempre consiga resistir às tentações.
Se eu contasse também o livro no qual estou a trabalhar agora, o número de palavras subiria para, aproximadamente, 340 mil.
Meus assuntos prediletos, como do costume: diário de viagens, música, fotografia, astrofísica, niilismos (otimistas & pessimistas).
Decidi reler a obra completa de W. G. Sebald — aprazível maneira de desinfetar vícios. A pessoa lê Sebald e percebe uma onda renovadora nas entranhas. No entanto, procuro também não me aproximar demasiadamente do centro de gravidade dos escritores que admiro. Do contrário, paraliso-me diante de tanta luz.
Em 2021, gostava de tomar o pequeno-almoço com o Claudio Magris.
Publicado por P. R. Cunha / 20 de dezembro de 2021
O que funciona como contraveneno
Pensar, refletir, flertar, escrever sobre a morte (a minha própria e daqueles que me são caros), imaginar os piores cenários, a falta, o terror, as dores tremendas que dilaceram o coração e fazem querer sumir, nenhures, são formas [paradoxais] de evitar o destino inevitável diante da lâmina ceifadora, pois, como já disseram, há dias em que buscamos — por-livre-e-espontânea-vontade — a companhia da Sra. Morte, mas não a encontramos em parte alguma, deseja-se ter com ela, porém a dama da finitude, a rainha do tabuleiro da vida, traquinas, insiste em escapar, ao que não nos resta outra alternativa a não ser continuar disputando este jogo absurdo: simplesmente permanecemos.
Publicado por P. R. Cunha / 18 de dezembro de 2021
Correntezas
O de sempre: quando estou na cidade, romantizo a calmaria do campo, os pássaros, as árvores, os animais ao pasto; e quando estou no campo, sinto falta da balbúrdia da cidade, das livrarias, dos cafés, dos concertos, etc. Na cidade eu digo: quero os dias tranquilos do campo, no campo eu digo: quero o anonimato irrequieto da cidade. Todos os sítios me convêm se nunca lá estou. As idealizações distantes da minha consciência, o único refúgio possível [então a preocupação que até aí era passageira, torna-se protagonista dos meus pensamentos].
Às vezes falamos coisas das quais nos arrependemos, e a culpa se intensifica quando não é mais possível se desculpar por nada.
Pergunta retórica: quantas linhas já não escrevi sobre a morte do meu pai (direta ou indiretamente), um embate, ou vãs tentativas de anestesiar-me.
A morte do meu avô, a morte do meu pai — duas mortes de muitas maneiras prematuras —, as saudades, as coisas que poderiam ter acontecido e não aconteceram, ou pior: não acontecerão. Tudo nasce do fluxo e refluxo da matéria reduzida a pó, como dissera Jünger numa altura, cinzas convertidas novamente em matéria-prima para trabalharmos nisto de alguma outra forma.
Nada se cria, nada se perde, tudo se transforma — é Lavoisier.
O álcool, o gelo, o sabor do limão, as verdades que se intensificam: aqui vou eu novamente. «Pula», murmura a voz na minha cabeça.
Estou só — o indivíduo pode encontrar confortos, desde que reconheça ligeiro a própria condição.
Raramente escrevo enquanto bebo, ou bebo enquanto escrevo.
Alcoolizado à beira da piscina. Um vento agradável refresca as minhas pernas. A caipirinha é um alucinógeno tipicamente brasileiro. Canal aberto para os demônios subterrâneos.
Alguns usuários de ópio, depois de um par de horas, enquanto a droga surtia efeito dentro do organismo, conseguiam fazer relatos absolutamente plausíveis de como a própria alma estava a ser «possuída por toda a sorte de criaturas demoníacas», acompanhadas por uma estranha, leve e genuína liberdade — mesmo que fugidia, mesmo que durasse um milésimo de segundo.
Lapso temporal. O sujeito entra em um estado caracterizado como hypnagogia, fase intermediária em que ele está apenas começando a sonhar, mas ainda se mostra consciente.
Pés dormentes
língua dormente
cometa leve
imprevisível.
Descreve o mundo fantástico com tantas nuances, tantos detalhes, que não importa o quão irracional seja a visão — ainda possui verossimilhança.
Estou, portanto, bêbado — sou vulgar, repulsivo, mimado, desleixado, quero tudo do meu jeito, aborreço-me, dou sermões, bebo de mais e torno-me inconveniente, vejo as pessoas se afastarem de mim, o pavor nos olhos delas, como se eu fosse (e eu sou!) um monstro. Tudo isto ao lado de uma corrente de água a que chamam de Rio da Preguiça.
Publicado por P. R. Cunha / 17 de dezembro de 2021
Nisi Dominus, RV 608: «Cum dederit», Vivaldi, é a trilha sonora deste poema
Estou a mastigar
um minúsculo pedaço
da cronologia cósmica.
Por mais que eu sobreviva
80/90 anos
isto também seria
nada.
Presente transitório,
reunião caótica
de agoras fugazes.
Ruas feias,
casas feias,
festas tristes,
sempre a mesma melancolia.
Oh, beleza lunar,
envolta em seus trajes
cor de morte.
Publicado por P. R. Cunha / 10 de dezembro de 2021
Sentir-se infeliz, de vez em quando, absolutamente miserável, sumamente desprezível, no fundo do poço — como diria um antigo —, a experiência do abismo (outra vez)
Há qualquer coisa de anestesiante nisto de estar num café movimentado, e ninguém te importuna, e tu não importunas ninguém, cada um a lidar com os próprios demônios, etc. etc.
O desinteresse material, escreveu Pavese, conduz ao isolamento — ao egoísmo. Não me apetece estar em situações sociais durante muito tempo. Até consigo aguentar o peso da máscara de ferro por algumas horas. Depois disso, a situação e eu nos tornamos insuportáveis.
Agorafobia (ágora + fobia): estado patológico caracterizado pelo medo de atravessar espaços públicos. Cenofobia.
Ocorre que quando não se consegue participar das coisas que a maioria participa, fica-se à margem. Inadequado. Perde-se logo o interesse.
Ao que parece, já nascemos com uma quantidade estabelecida de batimentos cardíacos. Números regulados pelo material genético. O coração bombeará sangue «X» vezes antes de se esgotar — como as baterias.
Assim que a vida útil da bateria acaba, jogamos a carcaça no lixo, aterramos — como os seres humanos.
A diferença é que, com as pessoas, colocamos toda a sorte de identificações (cruz, lápide, estátua, obelisco) para mostrar o sítio exato do descarte: aqui jaz Fulano de Tal.
Passam-se alguns meses e ninguém mais visita os restos de Fulano de Tal. Eis que, finalmente, igualam-se os destinos dos humanos e das baterias.
Na volta para casa, encontrei na rua um professor dos tempos de colégio. Fitara-me com uns olhos vazios e disse: estou morrendo. Simplesmente disse isso, estou morrendo, e continuou andando para sabe-se lá onde.
Publicado por P. R. Cunha / 9 de dezembro de 2021
Sonambulismo, mágoas congeladas
Rabiscar num transe espontâneo. Ideia central que leva a outras ideias, mas a via precisa de ser percorrida automaticamente.
Tormentos interiores. Caráter temperamental, inconsistente, como um navio errante que nunca para em porto algum.
Talvez o capitão esteja bêbado, não se sabe.
Schubert: Nachtgesang (cantos noturnos) / Winterreise (viagem de inverno). Schubert teve apenas 31 anos de planeta Terra. Escreveu mais de mil obras. Compositor extraordinário.
Gosto mais da versão «escritor-ausente-discreto-&-sem-alardes». Prefiro cair esquecido na neve, como sucedera com Walser, do que ser dissecado em domínio público.
Por que diabos alguns intelectuais ainda colocam a mão no queixo na hora de tirar retratos?
Aversões ao compartilhamento literário enquanto evento formal (e.g.: pessoas que se vestem para falar de livros publicamente [plateia, câmeras, tablado, a grossa cortina vermelha]). As poses que adotam, a erudição artificial, arrogância (já li mais obras, já resenhei Proust, minha tese foi sobre Thomas Mann), disputas, competitividade desacerbada, pedantismo, frases emprestadas.
Sei que essas coisas divertem (e inflam o ego de) imensa gente. A mim, causam náuseas.
Publicado por P. R. Cunha / 8 de dezembro de 2021
Floresta negra (Café Wittgenstein [muito provavelmente o último do ano])
As formigas criaram casa de barro na relva. Alguém chega e pisoteia a casa. As formigas, desesperadas, saem correndo em busca de refúgio. Eu sou uma dessas formigas.
Sebald diz assim, Bernhard disse aquilo, Adorno fala de tal forma, Nietzsche garantiu isto — e eu, o que digo?, o que garanto?, o que afirmo?
Árvores alheias oferecem sombras. Pode-se deitar sob aqueles galhos enormes e fazer a sesta. Mas não significa que não preciso de cultivar as minhas próprias folhas.
Gostava de dormir na minha árvore.
I.e.: fazer meu o que aprendo, sem estar dependente dos outros, etc. [vou pela estrada antiga, porém se descubro outra mais curta e melhor, escolho esta nova].
Não há aqui mecanismos nenhuns. O que é que se passa na cabeça quando quero escrever a respeito de certos assuntos? Discorro sobre as estrelas sem nada saber de astronomia. Cito Olavo Bilac sem conhecê-lo. Slowdive nos auscultadores.
Podem passar memórias construídas, algumas legítimas — lembranças emprestadas, como quando assistimos a determinado filme que nos marca imenso, e tomamos posse daquelas imagens, chegamos mesmo a recontá-las aos mínimos detalhes, como se tudo tivesse se passado connosco.
Conjunto de representações indefinidas? Pode ser.
Publicado por P. R. Cunha / 7 de dezembro de 2021
O labirinto de Niterói (quinta parte [até o apagar da velha chama])
João Gilberto era o músico favorito do meu pai. Lembro-me das longas viagens de carro entre Brasília e Rio de Janeiro (quinze horas de estrada) em que só escutávamos a fita K7 do Chega de saudade. Orgulhoso, papai também fazia questão de ressaltar a inovadora tecnologia do novo rádio, que trocava os lados da fita sem que fosse preciso retirá-la do aparelho — uma função há muito negligenciada nesta nossa era de repeat e shuffle digitais.
Assim que cheguei ao apartamento de Niterói, invadido por uma tenra sensação de nostalgia, procurei músicas do João Gilberto no YouTube. O algoritmo sugeriu lista aleatória de apresentações e o que mais me chamou a atenção foi um vídeo cujo título era «João Gilberto vaiado, não canta e vai embora».
Trata-se de um corte com menos de dois minutos de um concerto gravado pela TV Bandeirantes, provavelmente na década de 1980.
O vídeo começa com uma mixórdia de vaias, assobios e aplausos. Vemos a figura curvada de João Gilberto sentado num banco alto a segurar o violão no colo. Ele às vezes se reclina e faz umas caretas, como se tentasse compreender o que significavam aqueles ruídos. Numa altura, o rosto dele fica imóvel, pisca os olhos, atormentado por pensamentos invisíveis. Até que ele acorda do transe, ergue a palma da mão esquerda, a pedir para a plateia esperar. João Gilberto sabe direitinho o que se passa. Mesmo assim, ele ajeita o microfone unidirecional que parece uma batuta de maestro e pergunta:
— Espera aí, desculpa, é vaia, é aplauso ou o quê?
As vaias continuam. A câmera enquadra novamente o rosto impassível de João Gilberto, que sem dizer mais nada levanta e vai-se embora, carregando consigo o instrumento.
Pouco depois, um homem que fazia parte da organização do evento aparece para tirar satisfações. Vocês estão de parabéns, ele diz, conseguiram desrespeitar o maior patrimônio da cultura brasileira. As vaias aumentam, o homem prossegue, visivelmente indignado: vocês conseguem destruir todos os grandes valores que estão neste país. A câmera vira para a plateia. Alguns mostram o dedo do meio. O homem continua: os senhores foram convidados para ver um grande espetáculo da música popular brasileira, os senhores não foram convidados para assistir a um show qualquer. Mais vaias. O homem então finaliza com estas palavras:
— Os senhores precisam se preparar…, o relógio…, os senhores vão passar e ele vai ficar.
O vídeo termina. A cena toda é um bocado constrangedora.
Fico matutando sobre essa última frase: os senhores vão passar e ele vai ficar. Surgem algumas perguntas retóricas. João Gilberto ficou?, não estaria também à beira do esquecimento?, quem hoje em dia escuta as músicas dele?
Olho para a varanda do apartamento, que está coberta por uma fina camada de areia enegrecida. Abro o meu Spotify e coloco para tocar o álbum João Gilberto. No repeat, obviamente.
Publicado por P. R. Cunha / 6 de dezembro de 2021
O labirinto de Niterói (quarta parte [insensato quem receia o que nunca há-de sentir])
Eu li alguns livros. Eu sento, as ideias surgem. Eu tento traduzir essas ideias, passá-las para o papel. E isso é tudo.
Estou constantemente colidindo com a realidade, apesar de não querer colidir com nada (nem com ninguém).
Eu vou à praia, fico vermelho e depois preciso de escutar os sermões do costume: bem que eu te avisei, etc.
Sou um edifício em ruínas — calculadamente autodepreciativo.
Tenho pavor de ser interrompido enquanto escrevo. Regra geral, quando isso acontece, tenho um pequeno ataque de pânico/ira. Depois, fico me sentindo culpado (monstro, insensível) por ter sido estúpido com a pessoa que, sem qualquer maldade, me interrompera. É por isso que tranco a porta. E nunca carrego comigo o telemóvel.
O fogo que carece de alimento, como já disseram, apaga-se de forma espontânea.
É certinho que a solidão não depende da quantidade de seres humanos em redor. Certas multidões acentuam o isolamento do desamparado.
Praia de Camboinhas. Coco verde — quente e intragável — sobre a mesinha amarela com marca de cerveja ao centro. Dentro do meu coração: terra inóspita, sem árvores.
Publicado por P. R. Cunha / 4 de dezembro de 2021
O labirinto de Niterói (terceira parte)
Deitado numa espreguiçadeira na praia de Camboinhas me vêm estas constatações:
Reconheço que sou temperamental, difícil de conviver, individualista, conflituoso, insatisfeito, exigente, antissocial, mimado, controlador, que nem mesmo o clima marítimo consegue amenizar minha simpatia pelo abismo — reconheço que muito provavelmente irei envelhecer sozinho, e que morrerei esquecido (num asilo de alienados, se calhar).
Desisti de reaver o passado, só escrevo para compreendê-lo. Ou melhor: para me situar. Reconstruo o mundo à volta de acordo com os princípios imaginativos. Fantasia.
Por vezes, quando as ondas trazem uma quantidade absurda de lixo, a celebração se transforma em lamentações.
Publicado por P. R. Cunha / 3 de dezembro de 2021
O labirinto de Niterói (segunda parte [a vulnerável insignificância do indivíduo perdido entre os infinitos])
Talvez seja necessário escrever de outro modo, experimentar novas fórmulas, perder-se noutras trilhas, tateando o caminho em busca de um estilo mais adequado.
Niterói — cemitério de lembranças. Ainda sinto o fantasma do meu pai em toda a parte, por mais que eu tente não pensar no assunto. Meu querido filho, tu me convidaste para o pequeno-almoço e eu cheguei.
Mescla de conflito e fascínio, principalmente quando estou perto do mar e percebo o gosto de sal na boca. Uma eterna criança, um menino homem que por acaso escreve literatura e não consegue (talvez nunca consiga) enterrar o próprio pai.
Este arquétipo de amor e saudades.
Niterói como uma cidade à moda Calvino — representa memória, desejos, brigas familiares por motivos tolos, recomeços, sinais, conforto, absurdo e caos. A liberdade dos lugares distantes de «casa», por mais incompreensível que este conceito seja para mim.
A tristeza peculiar das regiões praianas em dias de chuva. O acúmulo do cinza do céu com o cinza das ondas. Faz pensar que Niterói é uma cidade amena, mas triste.
Eu, definitivamente, não sei ser uma pessoa boa/suportável quando não estou escrevendo. Se estou algures, longe da escrivaninha, percebo — tal e qual Francesco de Grisogono, o melancólico — que minha vocação (na falta de melhor termo) está destinada a arder em absoluto segredo, e amiúde preciso de impedir que a amargura dos reveses e do isolamento degenere o que sobrara da minha sanidade.
Um eterno confinamento, dir-se-ia, sem ter qualquer interlocutor, a minha triste figura tomando cuidados para não ser afogada pelos devaneios esquisitos, etc., sem, também, e este é provavelmente o ponto crucial, sem me vitimizar com aquela patética postura de quem acredita ser uma espécie de «artista incompreendido» que será lido (i.e.: valorizado) num futuro distante, quando o corpo do realizador de obras fúteis há muito já virara abrigo para os germes.
A verdade é que a cada vez que visito Niterói invento uma nova Niterói: é sempre outra cidade, porque eu também não sou o mesmo.
Publicado por P. R. Cunha / 2 de dezembro de 2021
O labirinto de Niterói (primeira parte)
A mim me parece que os relatos de viagem têm qualquer coisa de sonho — quando tentamos recordar, sempre falta algum detalhe, ou amplificamos pormenores aparentemente insignificantes, contradizemos, negligenciamos pessoas importantes para a jornada, lembramos de cenas que nunca aconteceram.
Memória prega peças.
Niterói é a cidade dos meus pais e onde passei boa parte das minhas férias de juventude. A família se reunia, papai ficava pensativo a recordar os tempos em que a vida era mais fácil, mamãe contava as mesmas histórias dos próprios namoricos.
Nostalgia infantil, certa estabilidade geográfica antes da chamada «perda da inocência». Niterói representava um conforto passageiro, a trégua. Até voltarmos para Brasília e entrarmos na rotina da praxe.
Brasília: cidade fragmentada, jovem demais para ter desenvolvido mitos & tragédias. Em Niterói, tínhamos o mar, a vista das montanhas, a sombra do Rio de Janeiro, a voz distante do meu pai a dizer: não se preocupe, vai ficar tudo bem.
Quando eu andava na praia com o meu avô, por vezes ele parava, agachava-se, caçava um tatuí na areia e colocava o bicho na boca. Meu avô era esse herói silvestre, sem frescura, brincalhão, carioca, sociável, mas em casa gostava de ficar sozinho, isolava-se de todos e lia, lia muito.
Brasília: um pássaro sempre a migrar. Niterói: maresia que nunca foi minha. Ambivalências que se arrastariam até aos dias de hoje, enquanto escrevo este despretensioso diário de viagem. Jamais me senti verdadeiramente à vontade em sítio algum. A terra em que estou é sempre de alguma outra pessoa.
Chego a Niterói com aquele desconforto do invasor. Como se eu entrasse na casa de alguém sem ser convidado, e remexesse as gavetas, e abrisse a geladeira, e tomasse uma lata de cerveja.
Bagagens de lembranças familiares: a praia de Icaraí, o calçadão com pedras portuguesas, o museu com formato de disco voador, as lanchonetes, bancas de jornais, o amolador de facas a tocar os hinos dos clubes de futebol do Rio de Janeiro, frutos do mar.
Todas as vezes em que venho a Niterói tento descrever o que significa estar aqui. Mas nunca me vejo totalmente satisfeito com o resultado. Ainda procuro as palavras certas, o tom certo, a melhor maneira de expressar o que se passa aqui dentro.
Porque uma coisa é se interessar por determinadas cidades outra é conseguir representá-las.
Publicado por P. R. Cunha / 1º de dezembro de 2021
Alucinações e o absurdo das coisas naturais
Às vezes, quando passeio pelas ruas estreitas do vilarejo e me deparo com algum detalhe que eu não havia percebido antes, ou quando observo alguma formação rochosa fora de lugar, ou uma árvore decrépita que se inclina para o precipício em busca de luz, ou quando o guardião do alojamento soletra o meu nome — pergunto-me se estou a ter essas experiências de facto ou se num estado imaginário, numa alucinação.
Piso com força o solo da montanha, averiguo do que se trata: algumas pedras miúdas ficam presas na bota.
Num átimo, aquilo que nos deixava em êxtase pode se transformar num estorvo incontornável. Uma música, uma paisagem, um outro ser humano. Amamos e odiamos com a mesma facilidade.
Um pequeno desconforto, uma noite mal dormida, as moscas que interrompem um pensamento, uma dor que não existia.
O que era leve
e prazeroso —
quanta turbulência.
Não se vê gente no vilarejo, os pássaros como que desapareceram. Silêncio sepulcral que faz questionar a própria sanidade. Esqueço a chávena sobre a escrivaninha e fecho os olhos.
Publicado por P. R. Cunha / 26 de novembro de 2021
Nenhures
Esqueci de fechar a janela antes de dormir. Quando acordei, o quarto já tinha sido completamente tomado pela neblina gelada. Tomei o chá e lá fora estava tão escuro que pareceu-me que a manhã não chegaria.
Em breve espaço de tempo, um período de calma e outro de tempestade furiosa se revezam como dois gladiadores embriagados. Numa altura o corpo se mostra apto e disposto, para logo mais adotar esta compleição débil e enfermiça.
Não apetece sair da cama.
Depois de um prolongado estupor, levantei-me para a caminhada da praxe.
Confusas
as pernas se movem
em parte nenhuma.
Na montanha encontra-se, mas também se perde. E nunca estamos tão distante quanto gostaríamos.
Publicado por P. R. Cunha / 25 de novembro de 2021
Escaladas inexoráveis
Convalescença. Na cidade, estava sempre a fazer alguma coisa — preenchendo as horas vagas com toda a sorte de absurdos.
Imagem idílica: sala de estar do apartamento dos meus avós, deitado no tapete escutando Jake Holmes [Chase your eyes], vovô a ler o jornal, vovó a preparar torta de frutas vermelhas. Eu devia ter uns cinco ou seis anos.
O que é a vida senão esta bruma de nostalgias e insustentável corrente de pesares?
Tudo o que vejo e aproveito momentaneamente em breve se transformará e deixará de existir — sobram os sabores fugidios da torta, o solo lamentoso de uma guitarra elétrica.
Quando eu deixar esta montanha
nunca mais a verei…
exceto em sonhos.
Publicado por P. R. Cunha / 24 de novembro de 2021
Inúmeras mudanças que já presenciei
Sou um amontoado de átomos que se juntaram para formar aquilo que costumo chamar de eu. Em breve, essa cadeia improvável também irá se desfazer e deixarei de sê-lo.
Talvez descobrir o que penso, ou melhor, o que acho deste eu momentâneo, seja uma das razões para retirar-me constantemente. E a solidão controlada sempre me foi indispensável para conseguir lidar com todo o resto.
Observo o guardião do alojamento a subir a torre central para tocar o sino. Algo de notável sucedeu, mas ainda não sei do que se trata.
O número de pessoas que nasceram, desejaram, lutaram, perderam, feriram-se, morreram e foram enterradas. O quão rapidamente todos nós somos esquecidos, a despeito das nossas ilusões, dos nossos esforços para deixarmos um legado [o abismo da eternidade que nos engole a todos; o vazio das mãos que nos aplaudem e que em breve serão apenas ossos despedaçados].
No jardim
alguém chora —
lágrimas de tristeza.
Publicado por P. R. Cunha / 23 de novembro de 2021
Perpétuo, desalento
O dia é uma amostra paga da vida — o entusiasmo explosivo das primeiras horas, a inércia da tarde, a fadiga e o alívio da noite.
Os dias se sucedem
e não se chega
a lugar algum.
Pobre habitante terrestre afundando passo a passo, lutando para recuperar-se, e afundando novamente. A marcha fúnebre de uma alma condenada. Movimentos circulares, a lembrança dolorosa de momentos aprazíveis, a insistência neurótica nos finais catastróficos, etc.
Durante a minha caminhada — desnorteado e consumido por um profundo sentimento de culpa — notei que os pássaros de súbito pararam de cantar. Sombrio presságio.
Todas as histórias acabam, inclusive a triste ária de um rouxinol.
Publicado por P. R. Cunha / 22 de novembro de 2021
Quem vai esperar por nós ao crepúsculo?
Durante os meus trinta e seis anos de vida fabriquei esta imagem sintética de mim mesmo, um jarro de argila que funciona bem enquanto estou sozinho, mas que começa a apresentar rachaduras se fico muito tempo sob escrutínio público. De aí retiro-me novamente, para fazer os reparos necessários, antes que o jarro se despedace.
Há muito que a palavra «participar» enche-me das mais diversas inquietações.
O guardião do alojamento deixara à porta uma folha de papel com preceitos estoicos. Li antes de dormir.
[…]
ANIMAL HUMANO / CARACTERÍSTICAS GERAIS
Duração: momentânea
Natureza: em constante mudança
Percepção: débil
Interior: num turbilhão
Destino: imprevisível
Memória que perdura: incerta
A vida é como água corrente, um sonho nebuloso, uma guerra, uma viagem longe de casa, e a fama resulta no esquecimento. Somente a filosofia poderá guiar-nos, escreveu ainda o guardião — citando Marco Aurélio.
Publicado por P. R. Cunha / 21 de novembro de 2021
Mergulho vertical no lago do desespero
O caráter implacável da neve sugere que as tentativas de fuga são vãs. Reminiscências de uma antiga prática. Depois da tempestade, pousou um corvo.
O primeiro beijo, o prelúdio
das desgraças, o primeiro amor,
microcosmos de todas as dores —
tendência decisiva para baixo
jornada ao mundo subterrâneo:
sons de abatimento
verbos de tristeza
sangue derramado
de um exausto coração.
Publicado por P. R. Cunha / 20 de novembro de 2021
Distorções de realidade
Uma vida inteira inclinada para o caos — existência de velocidades, atrasos, fracassos, prazos a cumprir. Não seria uma breve temporada ao cimo da montanha que faria tudo isso desaparecer.
Aprende-se, antes, a lidar com os próprios demônios, a domesticá-los. Pois a angústia, que durante décadas torturou, apenas hiberna, como um grande urso siberiano ao inverno.
Nas raras tardes em que o céu não está completamente coberto pela manta de nuvens pálidas, gosto de observar o Sol se escondendo atrás da noite. O tipo correto de fuga, dir-se-ia: lenta, sem alardes. Penso nos planos, nos objetivos, nas promessas, nos desejos de reconhecimento, penso nas estruturas artificiais que se sustentam no ar, penso em como o meu complexo e contraditório edifício sempre se apoiou no nada.
Adormecer
ausência indefinida
— folhas mortas na janela.
Publicado por P. R. Cunha / 19 de novembro de 2021
Variantes
Pela manhã, rajada de vento derrubou as peças de xadrez. Rainhas, reis e súditos jogados ao chão, como depois de uma catástrofe. O tabuleiro vazio, como disse alguém, condiz com a morte, com o inimaginável nada que sucede a uma vida de vicissitudes, de erros e quedas.
Lá fora: frio devastador que consome aos poucos, tal como a hera abraça o carvalho, até arrancar-lhe o coração. As intempéries confirmam a indiferença, o caráter transitório de todas as coisas. Não importa o tanto que nos sintamos bem em determinado sítio, tudo isto é passageiro.
Mesmo esta montanha — que existia muito antes e seguirá existindo muito depois de mim — um dia também desmorona.
Publicado por P. R. Cunha / 18 de novembro de 2021
Tempos verbais (pretérito imperfeito)
Não há regras estabelecidas na montanha — nenhuma doutrina, nem cultos, ninguém a ditar dogmas. Cada um decide por si mesmo o que fazer com o tempo disponível. Não nos forçamos a obedecer a nenhum preceito, não ostentamos símbolos, não beijamos o pé de ninguém.
Não fiz voto de silêncio, pronuncio poucas e discretas palavras porque, por decisão própria, estou constantemente só.
Ao lado da torre central fica a casa de música do vilarejo. Gosto de ir lá. Pratico alguns instrumentos e falo com os meus botões. Tenho pouca habilidade, mas não me incomodo, toco apenas para o meu divertimento, sem me preocupar com plateia. Toco para, como se costuma dizer, dar sustento ao meu coração.
Quando o nevoeiro abraça por completo a montanha e não conseguimos enxergar nada a um palmo de distância: tudo o que escutamos é o leve deitar da chuva ou da neve aos telhados — penso em como estou longe de tudo e de todos. A beleza desta pedra gigantesca não possui proprietário: qualquer um está convidado a contemplá-la.
Antes de dormir, jogo de xadrez sobre a mesinha de bambu. Arranjo as peças no tabuleiro e tomo notas do que deixei para trás: 1) inadequação, fadiga, aborrecimentos diversos, frustrações, vícios; 2) os mesmos erros da praxe, raiva, desilusões, arrependimentos, angústia, remorso; 3) isolado, deslocado, desamparado, uma eterna sensação de não pertencer.
Abandonado ao acaso da montanha, sem ressentir-me.
Nuvem preguiçosa
flutua no céu —
existência errante.
Quando minha mente está cansada, deito-me e descanso. O xadrez não vai a parte alguma.
Publicado por P. R. Cunha / 17 de novembro de 2021
Retornável
Acordei e vi flores em redor — minha cama parecia um sepulcro. O chá, desta vez, foi servido ao jardim. Simples existência: amigo da Lua e do gelo, por vezes triste, por vezes profusamente alegre.
Os dias passam
pereço a pouco
e pouco.
Sinto-me um idoso por dentro enquanto o corpo ainda demonstra certas proezas, como se diz, joviais. Há muito que noto tal disparidade: mente e pernas não se sincronizam de todo. Condenado, portanto, a ser um eterno menino-velho.
Refugio-me dentro de mim mesmo (treinamento), para quando eu precisar de estar novamente no meio das multidões.
As nuvens que cobriam o desfiladeiro se dissipam. É um cenário em constante transformação. E nunca volto ao alojamento o mesmo.
Publicado por P. R. Cunha / 16 de novembro de 2021
A dinâmica das nuvens
Outra típica manhã glaciar: neblina e frio tomam conta de tudo. Devaneios. Nebulosa de Órion. Atrás da bruma condensada — fortes turbulências no movimento de partículas. Formações estelares.
Perguntei ao guardião do alojamento o que era sentir-se em casa, pois nunca me senti assim em parte alguma. O guardião fitou-me com aqueles olhos de gelo. Não há casa, ele disse.
Infância se foi,
juventude também
— tempo irrecuperável.
Corpo mortal, exposto a mil dores, desconforto dos nervos. Imagino-me nascido na montanha.
Publicado por P. R. Cunha / 15 de novembro de 2021
Impulsos
De início, acreditei que a fuga seria um desejo de escapar a pessoas maçadoras, irritantes, importunas. Mas, na verdade, sempre estive a fugir de mim mesmo, daquele que aos poucos me tornava. Evadir-me, portanto, antes que fosse tarde demais.
Acusamos os outros de loucura, de sandice, e somos os mais desvairados nós mesmos. Um constante desapontamento, demasiadamente exposto, a dizer palavras além do necessário.
Em alguns lugares:
sofremos um delírio coletivo
e não se vê.
Foram as minhas escolhas que me trouxeram a este estado. Sou o único responsável.
Publicado por P. R. Cunha / 14 de novembro de 2021
A poeira do mundo flutuante
Fui convidado pelo guardião do alojamento para conhecer o cemitério do vilarejo. Após uma breve caminhada, o guardião parou bem perto do precipício e disse: este é o cemitério do vilarejo.
Durante o entardecer, removi minhas sandálias e fiquei sentado sobre um travesseiro de grama, sem saber ao certo se aqueles sons vinham do cair da neve ou se eram vozes noturnas que cantavam ao abismo.
Publicado por P. R. Cunha / 13 de novembro de 2021
Impermanente
A chuva cai no telhado do alojamento — tamborilar de uma sinfonia que ameniza inquietações.
Tomar notas, remover desejos, caminhadas vespertinas, meditações particulares (sem regras), disciplina mental, permanecer desprovido de apegos, e por aí adiante.
Montanhas sofrem erosão, rios mudam de curso, monumentos desabam, árvores envelhecem e são consumidas pela terra. Os rastos do passado, como escreveu um antigo poeta, são instáveis.
Acumulamos experiências e quase nada permanece na nossa memória. Apenas vestígios do que foi, do que fomos, fragmentos, espectros.
Há quantos anos eu andava a adiar esta fuga, quantas oportunidades não tive para me retirar e não o fiz por cobardice e/ou incompetência. Concordo que a alma deve preparar-se para as intempéries durante os períodos de bom clima, mas isso não me foi possível. Estou sempre improvisando sob as tempestades.
Existe um limite no tempo que me foi concedido, carrego esta bomba-relógio desde o dia do meu nascimento: «tic-tac-tic-tac-tic-tac» a repetir que tenho apenas esta vida, que ela acaba e nunca mais voltará [uma existência longa ou curta vai dar ao mesmo resultado].
Um processo de mudanças, destinos incertos, trilha sinuosa, e todas as coisas são passageiras: inclusive eu.
Alguém me acorda no meio da tarde para dizer que é hora do chá, coloca a chávena sobre a escrivaninha e sai silenciosamente. Eu bebo o chá: ervas da montanha.
Publicado por P. R. Cunha / 12 de novembro de 2021
Autorretratos
Baixa temperatura, ventos fortes, o céu ecoa um som que já se tornara familiar: nevasca que me faz refletir novamente sobre a possibilidade de desaparecer neste cenário exorbitante e perigoso, com vales profundos, onde um mero passo em falso pode ser a diferença entre estar vivo e não mais.
Tudo aqui sugere significado e estrutura. A própria arquitetura do vilarejo — que nunca compete com a paisagem natural, antes se insere nela, numa agradável metamorfose —, como que encoraja os habitantes a prestar respeitos à montanha.
Preocupam-se em estar bem; ignoram a duração desta vida, pois sabem que a ceifa é imprevisível.
A morte é, portanto, um futuro incerto que oblitera e apaga o animal humano. Esta é a única existência, a única certeza, depois não sobra nada. Na montanha vive-se momento a momento, num constante presente.
Não estou em busca de grandes feitos, privações, sacrifícios, revelações: apenas quis me afastar dos ruídos artificiais, das inutilidades, das exigências absurdas, a ver se conseguiria escutar o tom dos meus pensamentos — mesmo que me chegassem desafinados.
De 15 mil escritores que tentam ser publicados, apenas nove (se muito!) serão recordados pela história: e depois de um tempo esses nomes também se apagam, toda a batalha é esquecida, como diria um antigo, graças e aplausos que nunca duram, pois a fama é só relâmpago. Era isto o que eu estava querendo explicar na entrada anterior deste diário.
Publicado por P. R. Cunha / 11 de novembro de 2021
A mutabilidade deste mundo e como ele dá voltas
Quantos humores estranhos ainda há em mim — mesmo numa montanha longínqua, mesmo sem perseguir as coisas supérfluas e inúteis que nada me traziam além de aflições, aborrecimentos, insônia, ansiedades.
Rastos, efeito Doppler, memórias automáticas, ninguém se salva de um naufrágio com a bagagem às costas, como diria um antigo.

Apaziguava meus desconfortos imaginando que estava a deixar marcas, um legado — do qual, após a morte, não serei mais o dono. Eis o absurdo da empreitada. Escritores que escrevem a vida inteira e não recebem um tostão de reconhecimento. Até serem descobertos séculos depois, quando já nem os ossos sobraram. Engolem o barro da terra enquanto algum acadêmico debruça-se sobre os textos do fantasma.
Pode ser que algum curioso ainda consiga seguir as minhas pegadas fúnebres por um tempo, mas tudo isso também é passageiro. Estamos agora a viajar numa nave geoide que gira ao redor de uma esfera de plasma a 108 mil quilômetros por hora. Mas, daqui a oito bilhões de anos, o Sol entrará em colapso, consumindo gradativamente o nosso planeta, até perder todo o calor para o vácuo do espaço e se despedir do palco cósmico como uma estrela insignificante, gelada, sombria.
Publicado por P. R. Cunha / 10 de novembro de 2021
Planetas, galáxias, sistemas solares, buracos negros
Finalmente pude conhecer o guardião do alojamento: senhor grisalho que cuida dos jardins do vilarejo e por vezes sobe ao topo da torre central para anunciar com o sino algum evento notável. Ele me ofereceu copo d’água e deu-me as boas-vindas à maneira da montanha, ou seja, com um silêncio discreto e indiferente.
O guardião do alojamento possui também uma outra característica que eu já havia reparado nos nativos — certo ar satisfeito de quem não pretende ir a lugar nenhum.
Apesar da aparente simplicidade que emana da montanha, todos aqui, à nossa própria maneira e sem regras estabelecidas (dir-se-ia: sem intervenções místicas), passamos por um complexo processo de reconhecimento. Somos impelidos por uma consciência que pode nos levar aos confins do tecido espaço-tempo, para, logo depois, nos prender novamente ao solo rochoso.
Voltamos a este corpo que se deteriora com a certeza de que desapareceremos, de que vamos ser apagados pela terra, esquecidos, descartados. Aceitamos a finitude e seguimos em frente sem a anestesia das negações.
A montanha oferece ainda a possibilidade de nos tornarmos invisíveis. Não há dedos apontando na nossa direção a dizer que precisamos de fazer isto ou aquilo, que devemos seguir este ou aquele caminho, não estamos no radar de ninguém, não devemos nada a ninguém.
Publicado por P. R. Cunha / 9 de novembro de 2021
Senso de desordem
Pensamentos com tão pouca ligação, exames atmosféricos, a viver com o mínimo indispensável (roupa, comida, livros, água, etc.), abandono das ocupações sociais, estar à margem, não ser notado, manter rotinas e não alterar meus hábitos diários.
A impressão que me dá o conjunto de todas estas reflexões desconjuntadas. Não tenho controle de nada, procuro apenas manter a concordância entre as palavras que escrevo e meus atos.
Na cidade, conduzia a minha vida com alguma ideia de quem eu era: as coisas que queria, o que defendia, como se mostrava o mundo exterior, como via os outros. Até deparar-me com os demônios da montanha, com a verdadeira opinião que tenho de mim mesmo.
Alguns fecham a janela, outros deixam-na aberta — apesar do frio que, de início, corta a nossa pele qual navalha afiada.
Durante anos, acreditamos ser alguém e subitamente temos de aceitar que tudo não passara de miragem. Pergunto-me: quem é este?, e escuto uma voz (a minha própria voz) a dizer que sou uma colcha de retalhos, conjunto de palavras e símbolos imaginários.
Sou, em suma, uma construção erguida com tijolos quebradiços. De longe, pareço estável, até que alguma coisa acontece e tudo muda. Um simples desvio destrói toda a concepção artificial daquilo que eu achava que compreendia.
O acidente com o automóvel do meu pai mergulhou-me num delírio que durou mais de dez anos — e mesmo hoje, no alto desta pedra glaciar, ainda consigo sentir o gosto amargo do desespero que me arrebatara quando o agente rodoviário me telefonara e dissera: sinto muito, o seu pais está morto.
Publicado por P. R. Cunha / 8 de novembro de 2021
Roteiros semelhantes
Este silêncio que conforta, alivia, que esvazia, que permite novas possibilidades, mas que também resgata tudo aquilo que fiz à toa, todos os erros, os fracassos, todos os relacionamentos que acumulei durante os anos, tudo o que artificialmente me identificava, nada mais do que memórias que desaparecerão assim que eu pensar o último pensamento, pois a ceifa da morte (ela sempre chega) corta os caules — prepara a terra aos que vêm depois.
Nas pequenas brechas do gelo, uma flor se estica em busca dos pálidos raios de sol, a neve continua a cair, pássaros da montanha seguem esta ou aquela direção: sem propósito, sem significado, sem destino, sem valor.
Um inseto curioso escala a parede do meu dormitório. Sobe, escorrega um bocadinho, torna a continuar a subida. E isto é tudo para ele.
Numa das gavetas da minha escrivaninha, encontro pedaço de papel com as seguintes anotações: se estás com vontade de comer, come; se estás cansado, dorme; se caminhas, caminha; se queres sentar, senta. Eis que o silêncio volta a fazer sentido.
Publicado por P. R. Cunha / 7 de novembro de 2021
Sobre a natureza transitória do gelo
Agora estou sozinho na montanha — desligado de tudo e de todos. Há mais de uma semana que não pronuncio uma palavra sequer. Passo o dia comigo mesmo a tomar notas mentais do que vejo, do passado, da infância, separado do mundo, rodeado de neve e vegetação rasteira, como se num planeta imaginário a vagar sem rumo pelo cosmos. Não raro, a memória do que deixei para trás me segue durante as caminhadas; memória que não permite esquecer, recordações que assombram, inquietam. Pergunto-me se alguma vez na vida fui feliz, digo, realmente feliz, sem ressalva — e não apenas aquela alegria passageira que, tal cauda amorfa dos cometas, dissipa-se tão rapidamente quanto surgira. Lembranças que intensificam a urgente necessidade de me isolar, enquanto continuo levantando as barreiras que me defendem dos outros. E nisto a geografia montanhosa, esta fachada de pedra e gelo, serve-me à perfeição.
Publicado por P. R. Cunha / 6 de novembro de 2021
Via Láctea (galáxia espiral)
Durante toda a madrugada, tempestade de neve.
Estou sem qualquer instrumento para medir o tempo — acho até que os relógios são tacitamente proibidos por aqui. Se perguntamos a hora para alguém, a pessoa simplesmente olha para o céu e diz: é dia; ou é noite; por vezes acrescenta ainda algum pormenor meteorológico como: faz sol, faz chuva, faz neve, etc. A ausência de medidores temporais mecânicos sem dúvida ameniza o vilarejo, e sentimos uma serena disponibilidade para esquecer o mundo quando bem desejarmos, certa indiferença aprazível no «morrer numa parte remota do planeta», sem que ninguém percebesse a nossa ausência.
Perto do desfiladeiro há um banquinho de madeira. Sento-me ali e analiso as formações nebulosas. A montanha é tão alta que constantemente estamos muito acima das nuvens.
Tudo em câmera lenta, como se transportado para dentro de uma fotografia idílica.
Alerto que também sou falhado, contraditório, irresponsável, enganoso, frívolo, imaginativo, que recorro à ficção quando a realidade não satisfaz os meus propósitos. Gosto de conversar quando há poucas pessoas à mesa, e gosto mais ainda de ser deixado em paz depois. Não sou um aventureiro, não publiquei vários livros, nunca tive muitos leitores, não acumulei riquezas. Faço minhas caminhadas pela montanha, retiro-me sem alarde, flerto com a Lua prateada que timidamente aparece enquanto o Sol se despede.
Observo com cuidado o domo lácteo e me recordo das plêiades, as sete filhas de Atlas, que, segundo a lenda, foram perseguidas pelo caçador Órion, até serem elevadas aos céus por Júpiter e transformadas em estrelas para sempre.
Publicado por P. R. Cunha / 5 de novembro de 2021
Rascunho
A montanha é coberta por densa floresta de coníferas. Generosas camadas de neve sugerem que nestas elevações o inverno nunca acaba. Uma única e estreita trilha leva o andarilho até ao ponto culminante, onde se encontra o vilarejo no qual me refugiarei nos próximos meses. Depois de cinco horas de exaustiva caminhada, passo por um nativo solitário e, com modos, pergunto a ele se falta muito para chegar ao cimo. O homem sorri sem mostrar os dentes, nada diz, continua descendo na direção do vale. Mais adiante, enquanto limpava a neve das botas, questionei-me se o nativo fantasmagórico não teria sido apenas alucinação, consequência do ar rarefeito da própria montanha, que, segundo me disseram, ultrapassa «com sobras» os três mil metros.
Determinadas preferências de almas intranquilas por sítios isolados: Heidegger a fugir para a Floresta Negra, Nietzsche aos Alpes suíços, Wittgenstein constrói cabana num fiorde norueguês. Parece-me agora, a poucos passos do meu novo lar, que o velho adágio, segundo o qual o pensamento encontra melhor tradução nas alturas e nas florestas, possui certa justificativa.
Meu quarto fica num pequeno alojamento virado para o precipício. Abro a janela e uma rajada noturna invade o cômodo espartano (tenho uma cama, uma escrivaninha, uma cadeira e o armário). A vista é ao mesmo tempo magnífica e assustadora, como se eu estivesse a desabar num abismo cósmico, ou dentro de um submarino à deriva. Tiro o bloco-notas da mochila e começo a escrever os primeiros esboços da minha fuga.
Publicado por P. R. Cunha / 4 de novembro de 2021
Cosmologias
Existe a possibilidade de este ser apenas um de incontáveis universos, de eu estar em vários deles, a viver vidas paralelas, tomando diferentes decisões que terão consequências particulares de acordo com a realidade específica dos meus doppelgängers. Cada escolha que preciso de fazer, cada sim, cada não, cada palavra maldita, cada dúvida, cada sorriso, cada tarde soalheira, cada oportunidade perdida, cada objetivo alcançado, cada dor, cada insônia, cada desespero — tudo infinitamente possível e reproduzível. Num determinado universo estou no alto de um arranha-céu ajudando a construí-lo; no outro posso estar no centro cirúrgico operando algum moribundo; ou no meio da rua a pedir esmola; cozinheiro de restaurante marroquino; astronauta; filósofo; jogador de futebol; traficante de entorpecentes; etc. Mas neste, a única narrativa que posso de facto presenciar, escrevo absurdos cósmicos enquanto tomo suco de laranja com Gin Tanqueray.
Neste universo, preparo-me para a fuga — se é que se pode sugerir uma palavra tão sincera.
Faz tempo que me mostro teimoso, não quero ir à cidade ou a qualquer canto habitado, um mero encontro com outro ser humano me enche de angústias [sair sempre é culpa nossa]. Fico alheado, tento sorrir, tento participar, não logro êxito, nada funciona. Tornei-me iroso, dizem, ébrio, mordaz, cheio de delírios, descontente, medroso, triste, louco, aflito, um monstro para muitos.
Numa determinada altura, como já escreveram, percebemos que a vida, para ser um pouco menos insuportável, tem de ser esvaziada de todo o estorvo. Refugiar-se algures para se ter controle das próprias ações/reações, não magoar as pessoas [basta um deslize, um lapso, um instante de instabilidade para arruinar semanas, meses, anos inteiros de dedicação a outrem], manter-se íntegro.
Fuga como consequência lógica, fuga refletida, planejada, ensaiada: até ser finalmente colocada em prática [eu bem vos dizia que o carnaval não havia de durar para sempre], é imprescindível persistir, robustecer num esforço permanente diante das intempéries, das horas melancólicas em que não se quer fazer nada, absolutamente prostrado, debilitado, como que morto — para tomar o exemplo mais à mão —, arrastado por uma inclinação natural, permanecer em silêncio, a ler Burton, Montaigne, Sêneca, Magris, Tranströmer, Wittgenstein, Bernhard, Sebald [sempre os mesmos], ausência de receios, de arrependimentos, transportado ao cume de uma montanha onde se pode observar os tumultos deste mundo incompreensível, e rir-se.
(Arvores dançam ao sabor do vento —
nuvens de chuva se aproximam
coração sereno.)
Conjunto hipotético de universos possíveis, teoria das cordas, multiplicidades sem fim: no grande esquema probabilístico, nossas opiniões são também infinitamente fugazes, nossos erros rapidamente esquecidos — assim como todas as vezes em que impressionamos.
Publicado por P. R. Cunha / 3 de novembro de 2021
Calar sempre é seguro (Café Wittgenstein)
¶ O viajante distraído que entra na estalagem e pede um copo de água ao velho homem curvado atrás do balcão. O viajante olha em redor e percebe duas portas fechadas. Ele bebe o copo d’água e pergunta: o que são aquelas portas? Ao que o velho estalajadeiro responde: prosa e poesia.
¶ Dizem que toda a recusa possui uma grandeza própria. Numa conferência, o palestrante diz algo duvidoso e pede para que a plateia levante a mão caso concorde com ele. Todos levantam a mão, menos um — é esse personagem que mais me interessa, é sobre ele que eu gostava de escrever.
¶ As coisas mudam, estabelecimentos fecham, shoppings são esquecidos, prédios abandonados, casas em ruínas tomadas pelo mato, portões que não abrem mais, um carro com pneus vazios apodrece no estacionamento, os destroços da complexidade industrial. Escutamos o barulho da cidade, das sirenes, outros seres humanos ocupados nos próprios afazeres: mas não conseguimos vê-los. Sentimos uma antecipação confusa, como se esperássemos por alguém que nunca chegará.
Publicado por P. R. Cunha / 2 de novembro de 2021
Interferência oscilatória
Ser escritor, ou melhor, trabalhar com qualquer atividade criativa pode ser horrível, principalmente quando é-se atacado por toda a parte, e não se tem nenhum apoio, muitos [a imensa maioria] não entendem o que se fica a fazer num confinamento tão solitário, em silêncio, por que não se está fora — como toda a gente, a fazer barulhos, etc. — e tudo isso, de certeza, não é muito agradável, pode-se ficar um bocado mal diante de tais circunstâncias. E quando se termina a obra — um livro, à guisa de exemplo — julgam fácil o que está feito, nem pensam nos terrenos ásperos onde se fez a estrada, nas angústias, nos períodos tenebrosos, depressão, desespero, ansiedade, incontáveis questionamentos [será que presta, será que presto, etc.], nas noites insones, relacionamentos arruinados, abandonos, como se o livro fosse apenas um objeto de decoração [olham o jarro, e não o que está dentro]. De aí que, com a maturidade, o sujeito criativo começa a construir para si toda a sorte de defesa: muros, castelos, esconderijos subterrâneos, defende-se da indiferença que o aflige e o abate [tal como no mar o marujo esquiva as ondas irascíveis], não se inquieta mais com a opinião alheia, nem com os temores que carregavam-no de apreensões. O que um admira, outro repele como absurdo e ridículo, como já disseram, retiremo-nos com precaução de todas as frentes, de todos os conflitos, porque, a despeito do mundo, sabemos que estamos a fazer a coisa certa, que não prejudicamos vivalma. Temos a convicção de que a criatura foi feita ao nosso gosto [saiu de dentro de mim, obra de minhas mãos] — mesmo que falhada, são as nossas falhas, e isto ninguém nos tira.
Publicado por P. R. Cunha / 1º de novembro de 2021
Remorso
Madrugada —
acordas a sós
ensimesmado
tateias em busca
dos óculos
bichos noturnos
rodeiam o poste de luz:
tu te arrependes
mas é tarde.
Publicado por P. R. Cunha / 31 de outubro de 2021
Manuscrito em andamento
Depois de muitos anos a trabalhar somente pela manhã (recomendação médica), aos poucos, e por tua conta e risco, redescobres o prazer da literatura à noite. O silêncio da biblioteca, os teus autores preferidos sobre a escrivaninha, bloco-notas aberto, o conjunto de canetas, a casa como que suspensa — todos dormem. Recitas para as prateleiras, declaras para a luminária, até a tua sombra representa companhia aprazível, reconfortante. Escreve, porque o livrinho não se demora.
Publicado por P. R. Cunha / 30 de outubro de 2021
Vagantes — ou o atributo dos arruinados
O início da jornada, preparação para o desaparecimento momentâneo a respeito do qual muito se escreveu: viajar sem objetivo, apenas para ir-se, fuga pela fuga, mesmo que o esconderijo esteja dentro do próprio viajante. Afastar-se dos problemas e dos tumultos do mundo, excluir-se das relações de interesse, continuar a fazer o que o coração permite sem se preocupar com a opinião alheia [aquele que nada faz sempre sentirá inveja, mesmo que velada, daquele que está sempre a construir algo]. Mantém a tua integridade pois és o melhor conhecedor de ti mesmo, como já disseram, e a virtude autêntica ganha novas forças de cada vez que sofre um golpe. Vemos o lutador de boxe a correr para o canto do ringue e recuperar o fôlego, o mesmo faz aquele que pretende livrar-se dos excessos sociais, recolhendo-se numa morada isolada. Largado na nova existência solitária, o viajante-pugilista não se importa mais com os rumores regulares de conflitos, caos, guerras biológicas, incêndios, desmoronamentos, roubos, maremotos, homicídios, meteoros, minerações lunares, fantasmas, greves, corridas de automóvel, foguetes, naufrágios, assaltos, batalhas celestes, novas opiniões, paradoxos, vive-se à parte de tudo isso, controvérsias, cismas, casórios, batizados, Prêmio Nobel, torneios esportivos, derrocadas, traições, medalhas [está-se mesmo nas tintas], vilanias, debates políticos, tentativas de convencimento, tendências modais, seguidores, bajuladores, óbitos, sutilezas, patifarias, etc. Deixas a janela aberta enquanto alivias a mente pela escrita, lá fora há o mato e a floresta [és irrelevante, um nada, pouco aspiras, pouco esperas — deixas os outros em paz e desejas a mesma cortesia].
Publicado por P. R. Cunha / 29 de outubro de 2021
Costumes sentimentais
O ser literário deve tentar escolher escritores de bem como modelos, preferencialmente escritores mortos, tê-los sempre diante da escrivaninha, de modo a escrever como se eles o observassem, a proceder como se eles também pudessem ler o manuscrito sobre a mesa [riscos tortos só se corrigem com a régua], alguém por cujo caráter procuremos afinar o nosso, como diria um antigo, e lá estaria a imagem de um Bernhard, ou Sebald, talvez Pavese a instruir «tem cuidado, vivente, toma bem atenção no que escreves». O que pode fascinar B, mata Y de tédio, o amor literário seria uma inclinação levada à loucura [e o que amamos senão a representatividade — símbolos, ilusões de objetos, miragens de pessoas: fantasmas], um tipo de loucura sem febre, disse alguém, ter como companheiros o temor, a tristeza que aparece sem nenhum motivo aparente [medo, covardia, ódio, preguiça, crueldade, com tudo isso temos de lidar, etc.], entardeceres azuis, à noite, no céu, o ponto distante é Saturno, «o rei da melancolia». Quando lemos livros estamos a lê-los com a nossa bagagem, nossos olhos, nosso contexto, distorcemos o tecido das palavras de acordo com a nossa biografia — o mesmo ocorre quando lemos os sinais de outros seres humanos. Estamos a passear e encontramos um velho conhecido no café, iremos responder ao aceno dele de acordo com o nosso temperamento naquela manhã específica [contemporizador, contido, afável, irascível]. Acontece de, às vezes, escolhermos não dizer nada, simplesmente não respondemos ao aceno.
Publicado por P. R. Cunha / 28 de outubro de 2021
Estar na presença de si próprio
Faço minhas as palavras do filósofo estoico Átalo, que certa vez dissera que é agradável fazer, nem tanto possuir o objeto finalizado — tal como ao pintor é mais prazeroso pintar do que terminar a obra. Dedicamo-nos a determinados projetos criativos e o processo nos basta, um motivo para levantarmos da cama, etc. Entretanto, como é bom poder também sumir, mesmo que durante um curto período de tempo, ao finalizarmos o trabalho, com a cabeça tranquila e aquela tenra sensação de dever cumprido.
Publicado por P. R. Cunha / 27 de outubro de 2021
Público maior
Um escritor de São Francisco, município de Niterói, que tinha poucos porém assíduos leitores, motivado por uma patifaria, decidiu correr atrás de, como se costuma dizer, «público maior». Para atingir esse objetivo, o escritor de São Francisco agora dá palestras motivacionais, participa de comícios políticos em troca de influências, faz trabalhos comunitários, passou a ser membro do Clube dos Escritores de Niterói, e tem colaborado com dois programas televisivos que apresentam temas superficialmente literários. Sabe-se que o escritor de São Francisco de facto ganhara muitos leitores, mas, como precisa de sempre estar fora para manter o «público maior», não lhe sobra tempo nem inspiração para escrever algo que preste.
Publicado por P. R. Cunha / 26 de outubro de 2021
Habituações preguiçosas
Estás a ter uma conversa com outra pessoa e de súbito percebes que o território fechado daquela ocasião reflete o que tu costumas encontrar externamente — senso de fatalidade, a consciência do nada, do desespero, um certo pessimismo inato, desgraças, sofrimentos, a certeza abatida de um mundo hostil. A outra pessoa levanta o copo de vinho e sorri.
Quando as relações mais estimadas não passam de um teatro de interesses. Quando não revelam nenhuma troca. Quando todos, cedo ou tarde, somos descartáveis. Tu pensas nessas coisas enquanto também levantas o teu copo de vinho: sem sorrires, porém.
Por mais afável e receptivo que possa parecer temporariamente, o ser humano não muda. É certo que tu só receberás atenção até ao ponto em que a pessoa que te oferece essa atenção achar conveniente. Tudo sempre se passou desta maneira — seria vazio e fútil colocares a culpa na sociedade de consumo, no sistema de trocas, no mercado financeiro, no que fosse.
O equilíbrio da balança pende para um lado, há os desgastes da praxe, as expectativas desacerbadas, acúmulos de erros, e, numa determinada altura, o que era para ser infinito chega ao fim.
Entretanto, num esforço incansável, como observa um valoroso filósofo nosso, adquirimos experiência na valsa da vida: acostumamo-nos a perder. Depois de determinado tempo, não batemos mais a porta com força — apenas nos retiramos, sem alarde, de madrugada, pelas traseiras da casa.
Publicado por P. R. Cunha / 25 de outubro de 2021
Até à vista
É insensato supor que os teus interesses vitais não sofrem alterações. E se falas (ou, neste caso, escreves) muito, pode suceder que se entenda o contrário daquilo que pretendias significar. Quando tentas explicar que estás em «atraso» aos homens da tua idade, que recebes inúmeros retratos de conhecidos da juventude, todos com filhos, emprego seguro, previdência privada, casa própria, há até um cão a fazer guarda enquanto a família se reúne na sala para assistir séries, e a mãe dirige um Volvo, o papai pratica o squash aos domingos. Mas precisas insistir nisto também: estavas quieto e confortável no teu canto, não pediste nada do mundo, mandam-te toda a sorte de informações a respeito das quais nunca deste a mínima, queres apenas ficar sossegado, com os teus livros, o teu café, o teu universo determinista, com as tuas caminhadas solitárias. Não aborreces os outros e não costumas pedir nada além de direitos iguais.
Publicado por P. R. Cunha / 24 de outubro de 2021
Recompensa
Todo o trabalho finalizado aumenta consideravelmente o nível de dopamina no cérebro. Mas é curto e passageiro o período de euforia, que logo é substituído por uma espécie de esgotamento, pelo estupor, pela inércia. Retirado para dentro de si, o animal humano então aguarda o reequilíbrio do sistema nervoso e vai-se em busca de outras obsessões para terminar.
Publicado por P. R. Cunha / 23 de outubro de 2021
Presságio
Uma terra devastada
paisagem lunar
trilha de dores
decepções
descartar pessoas
movimento das marés
destruir pontes
solidão que desaparece
nuvem com formato engraçado.
Publicado por P. R. Cunha / 22 de outubro de 2021
Forças dissipativas
No ano passado, ganhei de aniversário um pêndulo simples com massa puntiforme. É um dispositivo bonito. Às vezes o coloco na minha mesa e fico observando a oscilação da bolinha, o fio que depois de alguns segundos torna-se invisível, os movimentos alternados, pra-lá-pra-cá-pra-lá-pra-cá.
De diversas maneiras a minha existência é parecida com essa trajetória pendular. Períodos de retração, outros de expansão. Dentro, fora. Feliz, triste. Sair e buscar o alimento necessário, voltar ao buraco.
E à medida que os anos passam, o meu movimento oscilatório mostra-se cada vez mais desequilibrado. Se fico imenso tempo algures, costumo voltar transtornado, esmagado pela realidade, repreendo-me por ter sido tão irresponsável, onde eu estava com a cabeça, etc.
Esta corrida leva-nos para o abismo.
Acostumar-se demais com a grandeza filosófica, com os mundos sem limites da literatura, recolher-se de todos, fechar-se dentro dos versos, correndo o risco de alheamento — porque a vida lá fora há muito já não é o bastante.
Publicado por P. R. Cunha / 21 de outubro de 2021
Fantasmas
Conheces alguém e estão a se divertir — a fase inicial em que tudo é novidade, nenhuma carga de desapontamentos passados, uma tábula rasa, pura, imprevisível, encorajadora, descobres aos poucos o que a pessoa gosta de ler, a comida preferida, os países mais interessantes aos quais já foi, as músicas que costuma escutar. Até que numa determinada altura tu falas alguma coisa, não necessariamente algo ruim, talvez inquietante, talvez demasiado intrusivo, talvez tenha sido o tom que utilizaste, a referência desencontrada, e sentes a pessoa se afastar, não muito, mas o suficiente para notares o desconforto, e a pessoa, que antes se mostrava expansiva e à vontade, agora se retrai, dá respostas monossilábicas, esconde um bocejo, olha para o relógio, manuseia o telemóvel, a pessoa diz que precisa de atender um telefonema, levanta-se, mostra-se preocupada, teatralmente preocupada, a pessoa então volta, e pede imensas desculpas, diz que tem de ir, que é urgente, que depois liga, sim, de certeza, ou manda mensagem, claro, assim que puder. Observas o vulto da pessoa a se afastar, depois a desaparecer, e ficas com a mesma impressão da praxe: de que provavelmente nunca mais a verás.
Publicado por P. R. Cunha / 20 de outubro de 2021
Palestras mundiais
A polícia foi chamada ao local por volta das 21h e não demorou para reconhecer o corpo do famoso guru que ganhara notoriedade depois de dar uma série de palestras mundiais com o sugestivo título de Como ser completamente feliz e despreocupado, lotando todos os estádios em que se apresentava, inclusive o mítico Estádio de Wembley. Após não ter encontrado nenhum sinal, como se diz, «fora do comum» na mansão do guru — avaliada em 25 milhões de dólares —, e diante da pressão de alguns jornalistas mais alterados, a polícia divulgou a causa da morte: suicídio por enforcamento (hipóxia cerebral).
Publicado por P. R. Cunha / 19 de outubro de 2021
Legado impermanente
Muitas vezes fico pensando, escreve Francis, se esta atividade literária não me seria um estorvo a longo prazo, um sistema destinado a me proteger, mas que, ao fim e ao cabo, também será a foice da minha queda solitária. Na semana passada, continua Francis, morreu um tio, e enquanto recebia a notícia da morte dele tudo no que conseguia pensar era que eu perderia um dia de trabalho, que o velório fora marcado para o período da manhã, justamente o período em que estou mais produtivo, em que escrevo as melhores coisas, etc. A física quântica desenha espaço, tempo, matéria, luz, troca informações entre partículas diversas — mostra uma rede de eventos granulares orquestrada pela dinâmica probabilísitca. Perguntava-me, então, continua Francis, qual seria a probabilidade de o velório não acontecer, ou mesmo de meu tio não ter morrido, de tudo não ter passado de um grande mal-entendido. Nunca se sabe. Eu me sento confortavelmente diante da escrivaninha, uso papel, lápis, canetas e procuro criar narrativas que sobreviverão à minha derrocada. Hoje é meu tio que está sendo enterrado no campo dos mortos, amanhã pode ser a minha vez. Ideias manipuladas, (re)combinadas para revelar verdades ocultas, construções novas que têm a realidade como fonte primária, mas que não devem nada a ela. Ater-me demasiadamente à realidade, isso sim seria a verdadeira loucura, escreve Francis. O chamado medo diante da morte, o produto do destino de todos os indivíduos terrestres, faz com que o animal humano se meta nos buracos mais absurdos. Depois do meu fim inevitável, de incontáveis impulsos criativos, imagino um leitor debruçando-se sobre algum livro meu e a comentar: eis aqui um escritor de qualidade! Estarei nenhures já há muito tempo, preso num túmulo escuro e úmido com a lápide cinzenta a se despedaçar, mas esse leitor imaginário, esse leitor que talvez ainda nem tenha nascido, a me ler numa livraria do futuro, esse provável leitor como que conforta o meu coração. Era este o ponto que eu estava tentando demonstrar, escreve Francis.
Publicado por P. R. Cunha / 18 de outubro de 2021
Sobre fuga(s)
Na esperança de escapar ao vazio não só de si mas também da cidade em que se habita, pois há muito que as promessas urbanas já não suprem as chamadas «exigências da alma», busca-se uma anestesia geográfica no campo, na imagem de calma e ócio que, à laia de exemplo, as chácaras rurais transmitem. Um lugarejo longíquo ao qual se foge com alguns livros e certas vontades de tomar notas, de documentar, portanto, o processo de convalescença que o período à natureza, assim se espera, oferecerá. Amenizam-se ansiedades observando o amplo horizonte com vegetações variadas, o aproximar de uma coruja que levanta voo sem esforço, faz rasantes para depois mergulhar num buraco qualquer e finalmente desaparecer. Horas numa lenta tranquilidade campestre, o céu com nuvens que passam sem propósito dando provas da magnânima indiferença de todas as coisas. Como parece fácil levar o animal humano a uma fuga quando caem as cortinas das normas artificiais que, segundo dizem, mantêm o mundo minimamente civilizado. Fugas que também funcionariam como mecanismos de resistência, negação, ou seja, não compactuar, e, ao mesmo tempo, uma retirada sem conflito — pois sabe-se que, hoje em dia, até a simples tentativa de convencer alguém é de uma inutilidade canhestra.
Publicado por P. R. Cunha / 17 de outubro de 2021
A terra apagará o poema [três haikus]
1.
pingos de chuva
no espelho da piscina —
cantam as cigarras
2.
sob a varanda iluminada
duas andorinhas
contemplam o vazio
3.
é quase noite —
árvore seca no jardim
faz ninho para a lua
Publicado por P. R. Cunha / 16 de outubro de 2021
Passageiros
Na manhã do dia 15 de abril fui até à praia observar a gigantesca formação rochosa sobre a qual Corina havia me falado duas semanas antes de eu partir para aquela remota vila litorânea em que, segundo relatos locais, Maurice Blanchot costumava passar férias — provavelmente escrevendo numa cabana rústica com vistas para o Atlântico, a refletir sobre livros do futuro. Além da imponente parede de pedra — que de longe parece um dragão prestes a se lançar ao mar —, a total ausência de estruturas ditas modernas (antenas de televisão, prédios envidraçados, anúncios luminosos, fábricas barulhentas, automóveis, etc.) oferecia paisagem apropriada para vagarosas contemplações. A verdade é que ali se pode testar empiricamente a relatividade temporal proposta por Einstein, a lenta transição das coisas, as ondas que varrem e carregam, num eterno construir-e-destruir. Caminhei na direção do dragão de pedra, e era como se ele nunca chegasse, sempre um pouco mais ao longe, como aquelas galáxias distantes que se afastam de nós a velocidades impossíveis.
Publicado por P. R. Cunha / 15 de outubro de 2021
Outra volta em torno do Sol
Então estás a completar os 36 anos. Não és velho, mas estás longe de ser o jovem promissor que um dia acreditaram que tu eras. Curiosamente, escreveste algo parecido no teu último aniversário: «Não sou velho, tampouco jovem», etc. Ainda sentes como se estivesses num limbo, numa sala de espera, sem saberes ao certo quem ou o quê tu esperas. As incontáveis oportunidades que desperdiçaras te atormentam, que o futuro pode não ser assim tão generoso também te atormenta, que de muitas maneiras ainda és uma criança irresponsável te atormenta. Nesta altura, porém, já sabes que o mundo é sinistro, que as pessoas têm este insistente hábito de machucar os outros, sabes que não possuis direito a nada, que o universo não te deve nada, que estás mais próximo do fim do que do início — a lembrar que os homens da tua família vivem, em média, apenas até aos setenta. Copo metade vazio, dir-se-ia. Aprendeste que algumas feridas nunca se fecham, que a raiva é mais persistente do que qualquer serenidade, que os ídolos são falhados, e que a morte levou-leva-levará embora aqueles que tu amas. 36 anos e o corpo começa a dar os primeiros sinais de decaimento que tu costumavas perceber (e troçavas) quando, em criança, paravas diante dos teus avós. Os vales nas laterais dos olhos, a respiração ofegante, as dores musculares que não passam, a relutância para vencer os períodos de imobilidade, a tristeza que a cada ano que passa mistura-se com o teu caráter errático. 36 anos entre sonhador e brutal, guardando máscaras no átrio, todas disponíveis, à espera da melhor ocasião. Atrás dos disfarces, continuas a tentar esconder as ansiedades, os fantasmas da melancolia, a angústia de uma vida constantemente atraída para o abismo. Ainda és socialmente irregular, ausente, pouca maturidade emocional, tens um fraco para as explosões, para as fugas sem aviso prévio. 36 anos, em suma, a buscar uma paz improvável. É isto. Muitos parabéns!
Publicado por P. R. Cunha / 14 de outubro de 2021
Temporário
[…] na época trabalhávamos num restaurante tailandês o dono viu minhas mãos & disse para que eu ficasse na pia que eu me daria muito bem na pia daí eu olhei para as minhas mãos depois olhei para o dono & finalmente perguntei qual era a lógica pois eu não estava entendendo nada perguntei por que as minhas mãos me habilitavam para lavar os pratos ao que o dono deu uma risada tenebrosa os dois cozinheiros também riram o garçom riu & todos começaram a falar umas coisas loucas naquele idioma que nem o próprio diabo compreenderia & acontece que a pia ficava numa espécie de porão sem janela um verdadeiro bunker a pessoa que permanecesse ali mesmo que por alguns minutos logo perdia a noção do tempo & hoje percebo direitinho que aquela geografia era premeditada já que fazia com que o lavador de louças (i.e. eu) entrasse numa espécie de transe psicodélico & trabalhasse feito um condenado sem rumo & no fim do expediente o dono nos colocava em fileira como se fôssemos soldados inoperantes prestes a serem fuzilados & dava o famoso sermão da noite tudo em tailandês obviamente & sempre quando ele chegava perto de mim ele ria aquela risada tenebrosa & me batia com uma tábua de madeira que também era utilizada para cortar os legumes & assim se passava independentemente dos meus esforços digo da quantidade absurda de louça que eu tivesse lavado & das inúmeras ocasiões em que tive de limpar também o chão engordurado da cozinha porque algumas baratas mortas se aglomeravam perto das panelas & isto tudo durou uns quatro meses mais ou menos.
Publicado por P. R. Cunha / 13 de outubro de 2021
Reações típicas
Sentir-se como um personagem de ficção. Todas as coisas ganham este aspecto nebuloso, irreal. Impressão de que se está preso num sonho — prestes a se transformar em pesadelo.
O caso das tendências. Como nasce, por exemplo, uma tendência literária? Este ano determinado escritor é lido por milhares de pessoas, entra na lista dos mais vendidos, goza de certo prestígio entre os pares, dá entrevistas enfadonhas para canais televisivos que estão à beira da falência, pois há muito que o dinheiro publicitário migra para o YouTube.
Quererá isto dizer que esses escritores em evidência são bons escritores? Não necessariamente.
Livros que estão na moda hoje e depois somem das prateleiras como se nunca tivessem existido. Alguém pergunta: já leu Fulano? Ao que o outro responde: quem é Fulano?
Simplificam-se os termos desta maneira: lemos determinados livros e ficamos satisfeitos; com outros, não ficamos. Isto basta, independentemente das tendências. Uma leitura que fosse analisada de acordo com os sentimentos causados no próprio leitor — descontentamento, alegria, repugnância, regojizo, desconforto e por aí fora.
Dizemos para o livro: agora não quero ler, não tenho as vontades de ler. O livro não fica magoado, nem se falarmos com ele num tom de voz impaciente. Mas se pensarmos no que aconteceria numa relação humana análoga: brigamos, magoamos os sentimentos, criamos o caos.
Querer-se-ia dizer que os livros não buscam vingança, não mordem de volta. Os seres humanos sim.
Não é estranho? Muito estranho.
Publicado por P. R. Cunha / 12 de outubro de 2021
Iniciativa (& outros termos vagos)
Numa outra época em que eu tinha receio ou pior vergonha de dizer que escrevo ficção porque não achava algo digno de se mostrar sou escritor de ficção escrevo literatura &tc. as pessoas julgam olham torto ou querem saber de mais a respeito como eu escrevo como eu sobrevivo se tenho leitores essas coisas & há muita curiosidade tu tens de tomar os cuidados do contrário tu não escreves nada ficas só a responder a essas curiosidades horas a responder mexericos intrigas maledicências & acontece de o escritor ficar um bocadinho carente & alguma atenção alheia por mais prejudicial pode aquecer temporariamente o coração do escritor mas como falei precisas de tomar providências saciar o voyeurismo dos outros não é o teu trabalho necessitas em boa verdade eliminar o que estorva o teu trabalho criar ambiente adequado para a tua escrita alimentá-la com os chamados nutrientes da vida de forma que se a fotografia te inspira ótimo se o cinema te traz novas ideias ótimo se um passeio no parque te acalma os ânimos ótimo também faz tudo isso & joga fora os elementos contaminados & esses métodos ajudam imenso na hora de sentares à escrivaninha para compartilhar o banquete que cozinhavas dentro das fornalhas do teu cérebro.
Publicado por P. R. Cunha / 11 de outubro de 2021
Evidências apagadas
Estou parado à porta da casa daquele que durante muitos anos foi o meu, como se diz, mentor literário. Observo o jardim, os loureiros lusitanos, o muro de pinheiros ao fundo, a janela com a cortina fechada, penso se estou a fazer a coisa certa, se aquela visita era mesmo necessária, ou se tudo não passaria de um terrível acerto de contas, um fardo, peso na consciência por eu ter desaparecido, por nunca sequer ter dado um simples telefonema para perguntar como ele estava, se Francisca precisava de ajuda com os medicamentos dele, quatro, cinco, oito anos de total ausência de minha parte, de total ingratidão, justo com aquele que, durante o meu período de formação, foi-me crucial, imprescindível. Estamos à deriva, alguém por livre e espontânea vontade resolve nos ajudar, e de facto nos tira do fundo do poço, e depois seguimos em frente, como um trator desgovernado, sem olhar para trás, sem reconhecer que alguém nos ajudara, ou melhor, que alguém nos salvara, que alguém nos livrara do suicídio, isto tudo sou obrigado a dizer por questão de honestidade. Décadas de ausência enquanto o meu mentor literário se perdia, se desorientava, com alterações terríveis de humor, desinteressava-se por si próprio, sem conseguir ler, sem conseguir escrever, a tratar Francisca como se fosse uma estranha. Alzheimer talvez seja mesmo a doença mais agressiva de todas, manifestando-se lentamente, a devorar o cérebro, apagando aquilo que gostamos, aqueles que amamos, a interferir, a destruir tudo o que nos define. Meu mentor, que um dia me ensinara a respeito dos lampejos de Nabokov, a arte de formar padrões subitamente harmoniosos a partir de laços separados, meu mentor, que um dia me dissera que os artistas são criaturas atazanadas por demônios, meu mentor, que um dia explicara sobre as unidades dessemelhantes que são apreendidas de uma vez só, o verdadeiro surgimento de uma obra de fôlego, como uma explosão estelar na mente, meu mentor agora passava as tardes balançando-se numa cadeira de palha, alheado, sem formar padrões, nem construir imagens, nem ser atazanado por demônios, apenas esperando, perdendo os últimos vestígios de memória. À medida que as sinapses começam a falhar e os neurônios morrem, surgem padrões anormais de atividade. Até que o cérebro não consegue mais processar e armazenar informações adequadamente. O que era um simples e despreocupado lapso, torna-se perda significativa, a pessoa esquece o nome da esposa, ou mesmo que ainda é casado, os filhos se tornam vultos amorfos, o corpo perde o controle das funções motoras. Ainda estou parado à porta da casa do meu mentor literário. Um cachorro começa a latir no outro lado da rua em declive. Aperto a campainha e escuto a voz distante de alguém perguntando quem era.
Publicado por P. R. Cunha / 10 de outubro de 2021
The man-machine
Escrever porque tenho pressa, o horário fixo para entregar o texto, o modo de funcionar das fábricas, deadline, a jornada de trabalho, o relógio, uma certa adrenalina, o gosto agridoce do possível fracasso, o escritor-operário.
Laboratórios começam a desenvolver órgãos com a ajuda de impressoras 3D (prototipagem rápida). Obras de arte-&-ciência feitas por robôs, têm a textura de tecidos orgânicos, a aparência de um pedaço humano, mas são modelos artificiais criados por sucessivas camadas de material sintético.
Os primeiros resultados, ainda que provisórios, demonstram que os órgãos robóticos funcionam melhor (e duram mais) do que os órgãos biológicos que carregamos dentro de nós.
Cérebros com interface de computador, nanotecnologia a monitorar a quantidade de insulina liberada no organismo, um coração sem data de validade, pernas mais resistentes, ossos de titânio, pele que nunca envelhece.
Nascer biológico, mas talvez morrer como máquina.
Publicado por P. R. Cunha / 9 de outubro de 2021
Encadear-se
Os inícios são sempre mais planejados, cenas que ensaiamos várias vezes em pensamento, ou mesmo em situações corriqueiras como: levantar da cama, preparar o pequeno-almoço, sair de casa, começar a leitura que há muito adiamos, ir ao concerto de cordas, etc. Mas os regressos são imprevisíveis. Dizemos que vamos fazer uma viagem ao estrangeiro, na altura sabemos como estamos partindo — meio de transporte, estado de ânimo, bagagens, hospedagem — porém, o retorno é incerto, e se calhar pode até não acontecer. Narrativas românticas insistem na qualidade edificante das jornadas. O ser humano que parte para aventuras algures e volta um outro alguém, melhor, mais vivido, consciente. No entanto, nem todos os retornos são gloriosos. Alguns voltam marcados pelas intempéries, um vestígio de desgraças, desilusões, promessas não concretizadas. Retornos falsos. A fuga que falhara não por causa da geografia, mas antes por conta do caráter deslumbrado do próprio viajante.
Publicado por P. R. Cunha / 8 de outubro de 2021
Mosquito
Depois de um dia particularmente difícil, deito na rede para ler o meu livrinho e logo vem um mosquito louco para me azucrinar da forma mais despudorada possível. O mosquito faz manobras rasantes nas minhas orelhas, pousa na lombada do livro, às vezes o mosquito tenta entrar no meu nariz, ou na minha boca, sempre com aquele zumbido agudo, insuportável, voa, dá a volta, torna a fazer o mesmo trajeto. Torturado, levanto-me da rede, abatido, ou melhor, humilhado por um inseto insignificante.
Publicado por P. R. Cunha / 7 de outubro de 2021
Maresia
Eles estavam perto da gruta. Um vento salgado e pesado veio do mar. Ela se protegeu com as mãos e ele tentou ajeitar os cabelos dela. O sol do fim de tarde se escondia atrás de nuvens cinzas. Ela pegou no braço dele. Os dois entraram na gruta enquanto a ventania golpeava-lhes as costas. O guincho de uma gaivota ecoara dentro da caverna escura. Procuraram um local seguro e sentaram-se. As ondas se chocavam de encontro às pedras e quando atingiam a falésia lá fora faziam um barulho estrondoso, como se fossem bombas que caíam do céu. Ela o agarrou pelo pescoço e o beijou. Ele sentiu um arrepio nas pernas. Tiraram a roupa e deitaram numa rocha, cuja superfície plana era o resultado de séculos de erosão marítima. Na manhã seguinte, os pássaros gritavam, ergueram-se, pareciam uma parede móvel e monstruosa. Ele acordou com o gosto alcalino de maresia na boca. Olhou em volta à procura dela. Tateou a rocha, ainda a se acostumar com a claridade. Sentiu algo curvado, mole, pegajoso. Era a barbatana de um golfinho sem cabeça.
Publicado por P. R. Cunha / 6 de outubro de 2021
Análise filosófica dos penhascos (terceira parte [Café Wittgenstein])
O caráter confuso de quem procura narrar uns pensamentos sem entendê-los de todo.
Os danos causados por estimulantes e narcóticos. Uma hora a tua cabeça para de funcionar e tu vais ver.
Propenso à irritabilidade e ao desespero.
Há alguém ao volante? Não.
Porém, como sabemos, a anomalia de hoje pode virar moda amanhã — e muito mais loucos fora do que dentro do hospício.
Descobertas científicas mudam de semana a semana. Vinho tinto é ruim, ovos fazem mal à saúde, de aí vinho tinto é bom, ovos também são bons, até que voltam a ser ruins, mas por razões diferentes. Determinados medicamentos salvam vidas, depois não salvam, depois salvam de novo. Ninguém sabe em quem confiar, não se tem um guia em comum, todos constantemente à procura, encolhidos no canto de uma geleira que derrete.
Alguns pulam da geleira, mesmo sabendo que a água gelada causa hipotermia. Pretendem fugir dos alaridos políticos, das incontáveis vozes televisivas que nunca se encaixam, das sirenes policiais, fogem também dos anúncios, dos barulhos das motocicletas, fogem de si mesmos.
Talvez encontrem abrigo numa caverna submarina, e agora, com tempo, percorrem a longa lista daqueles que sentiram raiva, que, como se diz, perderam a cabeça, que mataram, que sofreram por amor, que brigaram: os mais famosos, os mais infelizes, os mais odiados, não importa. E, dentro da caverna submarina, também perguntam: onde está tudo isso, onde estão todas essas pessoas? Fumaça, poeira, adubo da terra, lendas, mitos. E como são triviais, e provisórias, e passageiras as coisas que um dia desejamos com tanta paixão.
Publicado por P. R. Cunha / 5 de outubro de 2021
Análise filosófica dos penhascos (segunda parte [Café Wittgenstein])
Numa determinada altura, quando se fica com a impressão de que o mundo exterior não tem muito mais a oferecer, e se esconde num quartinho simples, apenas com o necessário para perder-se em prolongadas leituras, e de súbito percebe-se que a realidade de papel, como as traças, tomam conta dos próprios pensamentos, das próprias atitudes, corroem, mastigam, é bem a adoção de «falsas memórias» produzidas por incontáveis horas diante dos livros, enquanto a personalidade orgânica confunde-se com as ficções de celulose, e agora já não se sabe ao certo se aquilo em que se pensa aconteceu realmente ou se tudo não passava de meras repetições de cenas lidas antes de dormir.
Leitura salteada, parcial, episódica, suspensa — a prática instável de se buscar, depois de uma noite agitada, as migalhas de um qualquer pensamento.
Vestígios que desvanecem, como pegadas na areia que se perdem à medida que o sujeito humano adentra o próprio deserto.
Metamorfoses fundadas nas semelhanças e nas substituições. Infinda racionalização de um mesmo tema: obsessivo.
Cinematógrafo, streaming, complexidades, bitcoins, criptografia, mercado, e-mail, valores, pornografia, ética, ficção, brutalismo, real, imagens, e-money, ateísmo, inorgânicos, números, florestas, macrobióticos, loucura, edifícios, multimídia, replicantes, androides, sexo, niilismo, bebidas, trocas, vídeos, simuladores, violência, ovelhas, virtualismo, paranoia, demonismo, guerras, telecomunicações, internet, machine learning, matriz, música techno, database, textos, fotografias, imaginário, sabotagem, compra & venda.
Lyotard, Baudrillard, Debord, Deleuze, Guattari, Derrida — o rapaz está sentado no comboio do metropolitano e não presta atenção em nada, apenas no ecrã luminoso do próprio telemóvel.
Você, portanto, não é mais o que faz (escritor, médico, alpinista, advogado, engenheiro, piloto de aeronave, etc.), você é aquilo que consome. Ser definido pela música que se escuta, os filmes aos quais assiste, os videojogos que adquire, tendências globais, acessório, roupas, seguidores no Instagram, tênis da moda, viagens ao estrangeiro.
Que tipo de academia de ginástica você frequenta?
Publicado por P. R. Cunha / 4 de outubro de 2021
Entremez ou preenchimento de intervalo
Enquanto houver diálogo com o leitor, o livro é realidade — tudo o que se passa dentro do livro (independentemente do gênero) é verdadeiro, sério, digno de nota.
Todo o aspecto do livro sugerirá artificialidades: o papel, a tinta da capa, a margem, a tipologia, o nome de quem o escreveu. Detalhes que de certeza podem contribuir para que o leitor considere o livro um mero objeto de espetáculo portátil, um divertimento passageiro, fetiche intelectual. No entanto, lá está o mesmo leitor a rir, a chorar, a sentir as raivas, a gritar impropérios, a ter compaixões diante das páginas literárias.
Quando o livro enfia as garras dentro do nosso coração, às vezes só conseguimos nos livrar delas se chegarmos ao ponto final — e, mesmo assim, ainda sentimos a ponta afiada que deixara cicatriz no lado esquerdo do peito.
Publicado por P. R. Cunha / 3 de outubro de 2021
Análise filosófica dos penhascos (primeira parte [Café Wittgenstein])
Quando se luta contra monstros, é preciso de ter cautela para não se transformar num deles. Nietzsche. Se tu olhares demasiado tempo para o abismo, calha de o abismo também olhar para dentro de ti.
O desafio seria justamente estabelecer essa distância segura, pois o precipício, sabemos, possui estranho magnetismo que atrai a atenção dos curiosos que se aproximam.
Aguardar o mínimo deslize e devorar com indiferença. Desfiladeiros têm todo o tempo do mundo.
Tais observações — ou melhor, análises filosóficas do penhasco — são tecidas com as linhas existenciais do próprio observador. O grande buraco de escuridão é, portanto, um espelho do que aconteceu e/ou está para acontecer, o anúncio de uma mudança aterradora, talvez a confirmação de feridas que insistem em não cicatrizar.
Lembranças remotas, obscuras, experiências que julgávamos ter desaparecido voltam com a carga explosiva de uma reação nuclear. Robert Oppenheimer, «o pai da bomba atômica», certa vez dissera que os seres humanos são como usinas termonucleares, alguns conseguem manter os materiais radioativos sob controle, outros liberam quantidades absurdas de energia, gerando uma destruidora reação em cadeia.
Não à toa a biografia de Nietzsche escrita por Sue Prideaux chama-se Eu sou dinamite.
Por vezes é necessário exilar-se duplamente, ou seja, recolher a mente & o corpo, mostrar-se longe por completo. Pensemos neste encontro de família: tu estás num canto a observar os convidados, e percebes uma inquietação interior, como se os teus familiares se transformassem em verdadeiros desconhecidos, não consegues ligar-te a nenhum deles, tu te tornas irascível, nervoso, queres ir embora dali ligeiro.
Visões que te distanciam, que te permitem refletir sobre memória, morte, o passado, um fracasso, o sentido (a falta de sentido) da vida. Mas precisas de estar sozinho para fazê-lo.
Publicado por P. R. Cunha / 2 de outubro de 2021
Reverência
Um escritor brasileiro recebe o Prêmio Camões, participa de grande festa em Lisboa na qual o primeiro-ministro português confessara que o achava «o maior escritor brasileiro de sempre», volta para o Brasil na manhã seguinte, e, ao chegar em casa, suicida-se com um tiro na têmpora.
Publicado por P. R. Cunha / 1º de outubro de 2021
Cometas com caudas de pólvora
Por conta de negligências (das quais não sinto qualquer orgulho) ando um bocadinho afastado da natação. A vida, como se diz, tem várias maneiras de nos afastar daquilo — e daqueles — que amamos.
James Joyce, preocupado com a saúde mental da filha, procurou Jung e mostrara ao psicanalista alguns textos escritos pela menina: minha filha escreve as mesmas coisas que eu. Jung analisara o caso com particular ternura (admirava a obra de Joyce) antes de dar o taciturno parecer: sim, meu caro amigo irlandês, escrevem as mesmas coisas, mas onde você navega, ela se afoga.
Ricardo Piglia de forma muito sagaz comparou a literatura com a natação — atividades que procuram manter à tona pessoas que estão sempre fazendo força para afundar.
Um artista aquático seria, portanto, aquele que já nadou, que permanece momentaneamente à superfície, mas que não sabe ao certo se conseguirá nadar durante o próximo mergulho.
Quando me vejo longe das piscinas (reais & imaginárias) sinto imensa falta dessas vertigens imprevisíveis.
Publicado por P. R. Cunha / 30 de setembro de 2021
Teoria abreviada da angústia
Escritor está sentado sozinho à mesa do café. Escritor talentoso, prosa notável, sem rodeios, estilo que capta a indiferença, o cambiar despropositado das coisas, a dor intrínseca de um entardecer alaranjado. Alguém observa o escritor, reconhece o escritor & gostava de ir conversar com ele, mas apenas observa. [O café: paisagem apropriada à desolação, à nostalgia. Quantas lágrimas já não caíram num estabelecimento como este?] Escritor — apartado & discreto — escondido naquele pequeno mundo cafeeiro a tomar o cappuccino, sabe que alguém está observando, leva a chávena até aos lábios, sente o líquido aquecer a garganta. A vida se desmantela no creme do cappuccino, &tc. Obsessões, fobias, rituais, neuroses, culpa, escritor monta para si um verdadeiro labirinto de defesa. Dir-se-ia que ele está ali fisicamente, mas os pensamentos andam longe, nenhures, impenetrável, protegido por dentro. O café, como diria Mendes Campos, é o leme do poeta.
Publicado por P. R. Cunha / 29 de setembro de 2021
Caminhos da eternidade
Lemos em Schopenhauer que é humano sentir inveja, mas algo diabólico deleitar-se com o infortúnio das outras pessoas. Richard Trench nos próprios estudos linguísticos escrevera sobre a perversidade de se imaginar que um idioma possuísse palavra que expressasse o prazer que o homem sente diante da calamidade alheia.
Schadenfreude, que em alemão significa alegria ao dano, sarcasmo perante a desventura sofrida por um terceiro — «o mais belo regojizo», segundo um ditado popular, «pois vem do coração».
Certas inclinações para ruínas, um prédio destruído pelas intempéries, o mau tempo, as catástrofes. Versão violenta e caótica daquilo que se espera estar retilíneo, organizado, com bases estabelecidas, mas mostra-se prestes a desabar. A destruição que não deixa de ser arquitetura, uma desconstrução que segue regras, a arte de se decompor.
Como aquelas fábricas de automóveis em Detroit que um dia encheram os olhos de imensas gentes, e hoje não passam de titãs abandonados à margem do caminho da eternidade. A entropia, sabemos, é presságio de resultados ruins.
Andarilho observa toda essa balbúrdia do decaimento. Pensa que, enquanto alguma coisa se perde no processo, esconderijos esquecidos também sobem à superfície. Uma casa que noutras épocas era bonita, que servia de lar para alguma família suburbana, despedaça-se, sem porta.
Satisfeito por recolher tantos estragos, o andarilho torna a partir às pressas para nunca mais voltar.
Publicado por P. R. Cunha / 28 de setembro de 2021
Arte de se repetir
A premissa é esta: ao perceber que a realidade não é o bastante, ser humano busca maneiras de amplificá-la (com as próprias mãos [pinta quadros, escreve livros, compõe canções…]; ou com o auxílio do navio alheio [consume a criatividade dos outros, etc.]).
Tomo cá estas notas avulsas e passam pela minha cabeça incontáveis possibilidades, muito mais do que o mundo, como se diz, «físico» poderia me oferecer.
O desconforto: quando encontro nestas aventuras supostamente libertadoras o mesmo tédio paralisante do qual acreditava ter me desprendido ao fugir de casa.
Publicado por P. R. Cunha / 27 de setembro de 2021
Trânsito nos dois sentidos
É claro que por vezes penso: e se amanhã não me surgir nada, nenhuma ideia, e se a aventura terminou, de aí vou-me completamente abaixo, porque eu só sei escrever, ou melhor, é a única atividade que realmente me importa. Mas então o amanhã chega, e me aparece qualquer coisa, um estímulo, um assunto e lá estou eu escrevendo de novo. Ao que parece isto passa-se com toda a gente. Nós nos dedicamos a determinado ofício, e gostamos imenso desse ofício, até que numa tarde deitamo-nos no sofá, e nos perguntamos o que aconteceria se de súbito não tivéssemos mais esse ofício. É bem como se uma nuvem cinza estacionasse sobre o nosso sofá, e chovesse sobre o nosso sofá, e molhasse o sofá, e, obviamente, ficamos aborrecidos. Bernhard estava certo quando disse que a pessoa tem de construir algo por si mesma, de fora não vem nada. Construir para si as devidas compensações, pois olhamos pela janela e tudo não passa de um grande disparate — políticos falam parvoíces, seres humanos aluados, catástrofes e tragédias que são consumidas como se vivêssemos dentro de um enorme picadeiro. Agora, não precisa de ser assim tão mau, bastaria nos revoltarmos, porque (ainda é Bernhard) algo de interessante sempre resulta do caos. Outro dia mesmo saí com este amigo dos tempos de faculdade, um amigo com quem na altura eu tinha muito em comum, e enquanto ele falava, enquanto ele discorria sobre uma série de assuntos tediosos, enquanto ele comentava a respeito disto e daquilo, fiquei a pensar como aquela amizade teria sido possível. Numa época temos um grupo de amigos, acreditamos haver uma afinidade, uma intersecção, até nos afastarmos e percebermos que ali não havia nada. Deitamos fora as pessoas que numa fase, como se diz, importante da nossa vida eram tudo para nós, e essas pessoas também nos deitam fora — é uma via com dois sentidos.
Publicado por P. R. Cunha / 24 de setembro de 2021
Aos pares
Fico a pensar na quantidade de escritores anônimos que, assim como eu, acordam, tomam café, escrevem sem esperar muita coisa do mundo em redor, um par de leitores, algum comentário aprazível sobre o que escrevemos, ou mesmo nos escritores que um dia desfrutaram de certa fama, mas hoje ninguém se lembra, porque desapareceram — não só o corpo, também os livros, que foram retirados das prateleiras.
Publicado por P. R. Cunha / 23 de setembro de 2021
Na luta entre ele e o livro, venceu o livro
Posso ter uma semana repleta de azedumes, decepções, noites assoladas pela insônia, dias despropositados, a inutilidade das tarefas humanas, lembranças dolorosas (e se eu não tivesse feito aquilo, e se eu não tivesse me atrasado, e se eu tivesse dito outra coisa…), porém, mesmo para este coração taciturno, a âncora literária — que, como as ruínas dos navios naufragados, também virou casa para incontáveis organismos, fortalecera-se no fundo do mar —, o refúgio literário que se destaca do caos em geral reinante no meu cotidiano, as angústias imprevisíveis das minhas fobias (reais & imaginárias), e se de súbito sou um corpo à deriva ao sabor da correnteza que leva ao precipício, eis que avisto a minha ilha literária, meu lugar-geográfico indiscutível onde posso criar-recriar-descartar-respirar, onde não devo nada a ninguém, onde me sinto um primata livre & desimpedido, um tronco de madeira polida a fazer as vezes de mesa, à qual me sento a obedecer de bom grado a uma necessidade férrea, imperativo categórico, uma máquina que me teletransporta: não para o passado, nem para o futuro, mas, antes, para fora do tempo.
Publicado por P. R. Cunha / 22 de setembro de 2021
Dizem as bocas pequenas
Sentamos na cadeira do dentista e não sabemos ao certo o que vai nos acontecer. O holofote amarelo no nosso rosto, o barulho metálico das ferramentas pontiagudas, o canudo de plástico a sugar saliva. O consultório odontológico possui aquela atmosfera anônima e repetitiva dos não-lugares — sítios em que sempre se está de passagem, como os quartos de hotel, ou um aeroporto onde também se trata da higiene bucal. O dentista se aproxima: seguro firme na cadeira, e fecho as pálpebras com imensa força, porque, como diria um antigo filósofo, o que os olhos não veem, o dente não sente.
Publicado por P. R. Cunha / 21 de setembro de 2021
Discurso do rei
Era quase meia-noite, Heleno estava inclinado, com as mãos imóveis sobre as teclas do computador, a tela azulada a iluminar o rosto sonolento. Ele amaldiçoava a si mesmo, claramente arrependido por ter aceitado o convite da firma para ser o maldito orador da festa de confraternização que aconteceria no dia seguinte.
Página do Word centralizada, a barrinha vertical a piscar, o texto mostrava-se ainda um amontoado de lugares-comuns, gírias desconexas, os elogios da praxe, citando os nomes dos superiores com admiração e louvor.
Heleno abriu o Google: pesquisara uma série de discursos famosos, Churchill, Mandela, Martin Luther King, Lincoln, cartas de artistas consagrados, verbetes da Encyclopædia Britannica, tomou notas, copiou trechos, parafraseou intervenções espirituosas.
Às cinco da manhã, ele finalmente imprimiu o próprio discurso (Helvetica, corpo 12, espaçamento 1,5) e deitara-se para cochilar antes de ir ao ponto de ônibus. Até que não ficou assim tão mau, Heleno balbuciou enquanto as pestanas dos olhos se fechavam.
O barulho do despertador do telemóvel é agudo, estridente: irrita.
Heleno levantou-se para tomar banho e saiu com o ânimo renovado. Releu várias vezes o discurso dentro do autocarro, imaginou as reações entusiasmadas dos colegas, os tapinhas de aprovação dos líderes da empresa, os aplausos, uma possível mudança de cargo, quem sabe um posto de chefia, sala particular, mesa de mogno, cadeiras estofadas, máquina de café, sumo de laranja à vontade.
O sol atravessava a janela do autocarro e aquecia brandamente o ombro esquerdo de Heleno. Fazia um dia bonito. Ele estava feliz.
Quando chegou à firma, a confraternização de fim de ano já havia começado. Uns poucos funcionários perambulavam por aqui e por ali, como se fossem múmias ressuscitadas contra a própria vontade. A luz de hospital das lâmpadas incandescentes deixavam a atmosfera ainda mais lúgubre, sinistra. A secretária atrás do parapeito da recepção tivera a ideia de colocar som ambiente: Exit music (for a film), dos Radiohead.
Para Heleno, estava claro que ele caíra novamente na mesma armadilha. Criara expectativas desacerbadas, impossíveis de serem atingidas. Fantasiara um contexto completamente fora da realidade. Em suma: iludira-se. Mas, mesmo assim, ele não daria o braço a torcer. Mostrava-se disposto a ir até ao final, às últimas consequências: escrevera um discurso, e leria esse discurso, custasse o que custasse.
Os outros funcionários chegavam e sentavam-se aleatoriamente à mesa mais próxima. Permaneciam com a cabeça baixa. Ninguém sorria, ninguém contava histórias mirabolantes, nenhuma piada. Vestiam a pior máscara, atrás da qual faces abatidas pelas décadas de trabalho monótono se escondiam. Num coquetel de fim de ano oferecido pela firma, homens e mulheres são todos iguais.
A secretária, que pelos vistos estava mesmo a fazer o papel de cerimonialista, pegou o microfone e dissera que daria início às chamadas solenidades do evento. Um homem sentado ao fundo com camisa desabotoada bocejou. Heleno prestava imensa atenção. A secretária tirou do bolso da calça um papel amarrotado: êhm, gostaria de convidar o… o senhor…, vejamos aqui, vejamos aqui, o senhor… Heleno, isto!, Heleno, por gentileza.
Desajeitado, Heleno recebeu o microfone, que parecia um sorvete derretendo numa tarde de verão: «Olá, senhoras e senhoras», mas nenhum convidado deu-se ao trabalho de responder. Heleno sorriu sem mostrar os dentes.
Depois de alguns segundos de silêncio constrangedor, ouviu-se um grito. A secretária-cerimonialista levou as mãos ao pescoço, os olhos esbugalhados, a pele vermelha, ela apontava também para a boca, tentando dizer que se engasgara com alguma coisa, um salgadinho talvez, e de repente as pessoas começaram a rodear a secretária-cerimonialista, sem saber ao certo como agir, batiam com força nas costas dela, apertavam-na na barriga, e a secretária-cerimonialista estava a ter convulsões, toda a gente preocupada, gritavam para chamar uma ambulância, imediatamente!, perguntavam se havia algum médico por ali, ou enfermeiro, muitos começaram a se desesperar.
Heleno, no entanto, segurou o microfone com confiança redobrada, fixara-se num ponto de fuga invisível, ajeitou a gravata, respirou fundo e continuou a ler o discurso — palavra por palavra, linha após linha.
Publicado por P. R. Cunha / 20 de setembro de 2021
Para ontem
Depois que se passa pelo período de ingenuidade, quando ainda se acredita que existe um plano lá fora, uma tarefa a ser cumprida, um objetivo atingível, e que sé é dono do próprio destino, que se pode controlar as rédeas da situação, um complexo de herói, busca desacerbada por protagonismo, quando se passa, ou melhor, quando se atravessa a fronteira da fantasia à indiferença, do controle ao descontrole, da navegação ao naufrágio, e a vida não hesita em compartilhar todo um complexo repertório de amarguras, sempre arruma um jeito de, como se diz, pôr o animal humano no seu devido lugar, e eis a existência — impiedosa — cobrando as dívidas com juros, hoje é uma dor nas costas que não some, amanhã um dente que ameaça a cair, depois são as enxaquecas terríveis que causam insônia, o coração bate diferente, algum familiar querido morre, os pulmões vacilam, e se entra numa espiral de urgência, um imediatismo, a certeza de que nunca resta muito tempo, e se a pessoa tiver sangue frio o bastante, se ela não perder as estribeiras, se ela, portanto, manter-se focada, talvez consiga canalizar essas perturbações para algo construtivo, e, quem sabe, até abandone o marasmo da procrastinação e termine de escrever o livro sobre o qual ela tanto fala, mas ao qual tão pouco se dedica.
Publicado por P. R. Cunha / 18 de setembro de 2021
Distanciamentos
Por vezes, depois de uma prolongada discussão, sentir-se mal, porque, no fim de contas, nada realmente importa. Brigamos com alguém, falamos bobagens, gritam-se impropérios e para quê? Ecos que se perdem na grande indiferença do universo. No dia seguinte, sentamos para discorrer sobre isso, como se buscássemos justificativas. Tecemos numa folha de papel o cenário de uma realidade dolorosa, grotesca, as inúteis virtudes (e defeitos) de um tecido cósmico que se expande numa escala perturbadora. Acontece que o que estamos a sentir por dentro nem sempre/quase nunca é o reflexo do que estamos a fazer cá fora. Como aquele sorridente funcionário do café que nos tratava com tanto esmero até que um dia não o vimos mais — na madrugada anterior, com mágoas indizíveis, dera-se um tiro na têmpora. De aí a importância de se manter discreto, de não se mostrar em demasia, pois corremos o risco de sermos tachados de charlatães. Agir como um fantasma que passa pelo mundo e toma notas. Um vulto que parece provir de outro planeta. Em suma, não chamar a atenção de ninguém, retirar-se sem alarde, contemplar o caos sem compromisso.
Publicado por P. R. Cunha / 16 de setembro de 2021
Atrações gravitacionais e o problema dos três corpos
Uma das hipóteses mais aceitas sobre a formação da Lua é que, há bilhões de anos, um corpo celeste aproximadamente do tamanho de Marte teria se chocado contra uma Terra ainda a se estabelecer. A colisão ejetara grande quantidade de material para a órbita do planeta, que outra vez se transformaria numa esfera incandescente. Ainda segundo esta hipótese, boa parte dos destroços caiu de volta à superfície, enquanto a gravidade aos poucos aglomerava as rochas espaciais até formar o satélite natural que se conhece hoje.
Desde então, a Terra e a Lua dançam regularmente sob forças constantes. Porém, se um terceiro corpo com massa parecida fosse adicionado ao baile, perceber-se-ia uma drástica mudança no atual equilíbrio. Imagina-se que a Lua seria expulsa pela nova influência gravitacional, apenas a observar o intruso a estabelecer fortes vínculos orbitais com o planeta que um dia lhe oferecera abrigo e estabilidade.
Da mesma forma, dois seres humanos que se dão muito bem podem ver a própria relação arruinar-se com o surgimento de uma terceira pessoa.
Nico estava a esperar Ariadna à portaria. Ela desceu e ajeitou os cabelos: estou pronta. Nico deu um beijo na testa dela e os dois entraram no carro. Ariadna ficou a tamborilar sobre o encosto de braço: espero que dê tudo certo, ela disse. Nico permaneceu com os olhos no trânsito: bom, ele disse, estamos juntos há quase seis anos, não acredito que alguém se surpreenderá. Mesmo assim, ela disse, mesmo assim. Nico deu a seta à esquerda.
Tocaram o interfone do prédio. Uma voz rouca e metálica perguntou quem era. Ariadna aproximou-se do aparelho: sou eu, mamãe. O portão se abriu.
Chegaram ao apartamento. A sala estava cheia. Nico sussurrou aos ouvidos de Ariadna que não se lembrava de terem combinado aquilo. A mãe pediu para que se sentassem. Percebendo a perplexidade no rosto do genro tratou de se explicar: é Damián, meu afilhado volta hoje do estrangeiro, vocês sabiam disso, certo?
Não, não sabiam.
Enquanto Ariadna conversava com os convidados, Nico levantou-se para ir até à cozinha servir-se de alguma bebida forte. Inspecionou brevemente os rótulos das garrafas e decidiu-se pelo Jack Daniel’s. Uma escolha conservadora, Nico pensou enquanto enchia o copo.
Ao voltar para a sala, percebeu que todos estavam de pé e falavam com muita empolgação. Damián havia chegado. Nico manteve-se distante, a observar a cena, e, principalmente, a analisar o novo protagonista.
Damián tinha aquele aspecto desajustado de quem passara várias horas dentro de uma aeronave. Parecia uma fera acuada e trazia nos olhos a consciência do cansaço. Deixou a bagagem marrom sobre o tapete, mas permaneceu segurando uma maleta a abarrotar de folhas e livros. Todos queriam saber sobre a viagem, sobre a experiência de ter vencido um prêmio literário no exterior, sobre os futuros projetos.
As mulheres olhavam para Damián com um misto de admiração e desejo. Ariadna também o fitava assim — Nico não pôde deixar de notar.
Publicado por P. R. Cunha / 15 de setembro de 2021
Camino de la Floresta
Num contexto em que há uma quantidade absurda de estímulos, acervos informacionais humanamente impossíveis de digerir, Nico entregava-se à ingênua fantasia de que poderia escrever longe de tudo isso, à parte do mundo, invisível para a maioria das pessoas. Alugara um modesto apartamento em Vélez Sarsfield e passara a adotar rotina monástica. Nico pensava que ser um estranho — isto é: alienígena na própria cidade natal, um fantasma — era mesmo uma forma de loucura. De súbito, tudo o que lhe era familiar foi removido. Até o próprio reflexo ao escovar os dentes tinha um aspecto irreal. Nico então batia forte nas bochechas, averiguando se ainda estava vivo ou o quê.
Publicado por P. R. Cunha / 14 de setembro de 2021
Escritor à boulangerie
Então, como eu estava a dizer, sou uma espécie de padeiro, faço os pães com a massa que acumulo durante a minha existência, e de certeza que tenho prazer nisto, do contrário eu não faria tantos pães, e comecei a fazê-los como uma forma de experimentação, a juntar estes e aqueles ingredientes, a ver se os pães ficavam mais encorpados, e hoje é para isso que vivo, para melhorar meus pães, tento prepará-los cada vez melhor, e podem tirar todos os equipamentos da cozinha, podem jogar a farinha de rosca sobre a minha cabeça, despejar baldes de suco de laranja em cima de mim, podem bater as panelas, e o teto da cozinha pode cair, entra um vendaval pela janela, e continuo a fazer os pães, etc.
Publicado por P. R. Cunha / 13 de setembro de 2021
Padaria
Com o meu livro é diferente, não consigo ter a mesma continuidade. Fico semanas inteiras sem trabalhar nele, sem escrevê-lo de facto. Mas acho também que aprendi a encarar isso como uma falsa procrastinação, porque, mesmo longe, alguma coisa se vai juntando. Passo por ocasiões inesperadas, escuto uma frase ao mercado, deparo-me com um céu impossível ao voltar a casa pedalando a minha bicicleta, e a massa cresce. É uma massa pegajosa, amorfa, sem coesão. Ainda assim, uma massa. De aí, quando sento-me para escrever, tenho já esse material reunido e faço lá os meus pães.
Publicado por P. R. Cunha / 11 de setembro de 2021
Rupturas
E é claro que não se pode querer tudo. Participar e não participar, estar cá dentro e estar lá fora, conviver e ser deixado em paz. Tudo uma questão de escolha. E cada escolha envolve algum tipo de responsabilidade, um preço que se paga à vista. O sujeito mete-se no próprio esconderijo e durante um tempo acha isto um máximo, até que a solidão o assola, e de repente quer sair com os outros, mesmo sabendo que, no momento em que atravessar a porta de casa, ou seja, assim que pisa na rua, já se apercebe de que está cometendo um grande erro. Larga os livros, a música, o piano, a escrivaninha, o refúgio, larga tudo por carência — esta é que é a indecorosa verdade. Porque tem medo de morrer sozinho, etc. Mas mesmo que não morra sozinho, mesmo que o chamado funeral se mostre abarrotado de gentes, o que significaria? As pessoas vão lembrar de si durante um par de anos, até que aos poucos elas também se esquecem: das canções que você compôs, das toneladas de palavras que você botara no papel, das fotografias que você tirou, dos verbos que tanto magoaram alguém, dos relacionamentos fracassados, das angústias, das fobias. E será como se nada tivesse realmente acontecido.
Publicado por P. R. Cunha / 10 de setembro de 2021
Cafeterias modernas bolem-me com os nervos
A verdade é que minhas idas aos cafés têm sido cada vez mais raras porque o público que agora frequenta esses estabelecimentos é-me absurdamente odioso. Fico a observar a jovem a pedir o macchiato, ela leva consigo algum livro terrível do Paulo Coelho, deixa o livro estrategicamente posicionado num canto da mesa, de forma que as outras pessoas possam ver o livro, e talvez digam: eis aqui uma rapariga culta!, e chega o macchiato, a jovem levanta o telemóvel com a mão direita enquanto a mão esquerda segura o macchiato, ela fica a tirar selfies com o livro horroroso do Paulo Coelho ao fundo, dá mais alguns tragos no macchiato, paga a conta, sai sem ter lido uma folha sequer do livro. E o que falar daqueles homens de negócios que chegam ao café como se entrassem numa bolsa de valores em tempos de crise, e não ligam a mínima para os outros clientes, e fazem questão de deixar todas as notificações eletrônicas no volume máximo, e riem alto, e flertam da maneira mais tosca e despudorada com as baristas, e gritam «puta-que-pariu, Monteiro, que notícia maravilhosa», e assobiam alguma música techno dos anos 1990 enquanto mandam mensagens para o grupo do WhatsApp com algum título patético do tipo: BATALHAR SEMPRE DESISTIR NUNCA. É impossível aproveitar o café quando essa gente ali vai, impossível.
Publicado por P. R. Cunha / 9 de setembro de 2021
Representações ligeiras
Vives numa constante gangorra, numa adaptação simplificada do eterno retorno de Nietzsche: apareces, desapareces, apareces, desapareces.
Ao perceberes que os elementos do mundo estão te sufocando, e interferem no teu trabalho literário, e não consegues mais segurar um livrinho sem que pensamentos atrozes invadam o teu sossego; eis que voltas à cave e não te apetece ver as gentes.
É frio e insensível dizer isto, mas ficas longe para desintoxicares. Do contrário, seria insuportável estar ao teu lado.
A verdade é que tu sentes um aprazível conforto quando foges, com a tua caneca de café, e os teus livros do Bernhard, e o estojo com canetas diversificadas, a tua escrivaninha, o teu silêncio.
À noite, antes de dormires, gim-tônica com duas rodelas de limão.
Publicado por P. R. Cunha / 8 de setembro de 2021
Determinados alicerces não são assim tão seguros quanto parecem à primeira vista
Manhã de terça-feira: antes de sentar-se à mesa para escrever, Nico acende um cigarro de palha, aproveita os minutos de relativa paz e revisa algumas convicções.
Um reflexo distorcido da própria solidão, anseio nostálgico que amiúde invade os pensamentos enquanto a fumaça se dissipa pelo escritório.
Nico nasce em Buenos Aires ao dia 15 de outubro de 1979, tem infância acolhedora, pais amorosos, passa as férias em Montevidéu, visita as praias do Rio de Janeiro. Na adolescência, perde o avô, que suicidara-se na garagem do prédio, dentro de um Volkswagen.
Ao funeral do avô, é confrontado pela primeira vez com a fria realidade da morte. Seres humanos que estudam, trabalham, bebem, comem, fazem sexo, que buscam significados, que constroem para si toda a sorte de fantasia para conseguirem levantar da cama, mas não importa o quanto procurem, não importa o método que utilizem: o universo nunca oferece resposta.
Cansado de criar ficções para sobreviver, o avô decidira que era altura de retirar-se do palco. Suicídio que leva o jovem Nico aos cumes do desespero, onde ele constrói casa e começa a tomar as primeiras notas introspectivas.
Uma desajeitada estrutura aforística a ganhar muros à medida que os anos passam. Glaciar de isolamento e angústia silenciosa. Se tudo não passa de uma empreitada sem propósito, e nada realmente importa, se acabamos todos engolindo sete palmos de terra, ou a respirar monóxido de carbono, então Nico decide que não precisa de crescer, de aceitar responsabilidades, muito menos cultivar narrativas inventadas que servem apenas para ignorar a incômoda inutilidade de todas as coisas.
Nico: um adulto-criança, introvertido, desconfortável em situações sociais, sabe que, depois de abrir os segredos mais sombrios da condição humana, esta porta jamais poderá ser fechada novamente.
Publicado por P. R. Cunha / 7 de setembro de 2021
Fim de semana soalheiro
A alma acumula esta substância cinza e pegajosa, o sujeito intoxicado acha que vai endoidecer com tanto marasmo em redor. Eis que ele compreende que chegara o momento de ir-se algures à procura de sol.
Algumas situações, no entanto, ainda te enchem de uma jocosa ansiedade quando estás num hotel de alto padrão.
Ao pequeno-almoço, utilizas aquelas máquinas gigantes de café, e outros hóspedes ficam atrás de ti para 1) pegar-te como exemplo, pois também não sabem mexer na geringonça; 2) esnobarem da tua total falta de desenvoltura ao operares a máquina — ambas as situações deixam a tua cabeça à roda, e acabas apertando o botão errado, e te vem o cappuccino quando em verdade querias apenas o café duplo.
Trazes comida de fora escondida na tua mochila, mesmo que a cartilha do hotel de alto padrão tenha deixado bem claro, a letras garrafais, que «É EXPRESSAMENTE PROIBIDO TRAZER COMIDA DE FORA», e invariavelmente acabas sentindo-te um criminoso.
Esperas o elevador ao lado de hóspedes ruidosos (via de regra algum miúdo irascível fica a berrar no teu ouvido) que fizeram o check-in há pouco, e estão abarrotados de bagagens como se fossem passar uma pequena eternidade no hotel e não um par de dias fugidios.
Ficas um bom tempo com cara de imbecil diante do complexo sistema hidráulico do duche, e começas a pensar que talvez seja necessário frequentar um curso de Harvard para tomares um simples banho quentinho.
Publicado por P. R. Cunha / 6 de setembro de 2021
Peregrinações
Quem entrar no parque ecológico Dom Bosco tem em frente uma pirâmide em alvenaria construída para o padre italiano S. João que, em 1883, teria tido um sonho profético a anunciar o surgimento de uma terra prometida entre os paralelos 15 e 20 do hemisfério sul — onde hoje se encontra a capital do Brasil. O andarilho com mais disposição pode também optar pela trilha que fica à direita do monumento, caminhos de terra e pedra que atravessam vegetações distorcidas do cerrado. Em julho, ao sol da tarde, percorri a trilha com o intuito de homenagear a memória do meu pai. Cheguei a uma área aberta com bela vista para a silhueta arquitetônica de Brasília, e pensei no acidente automobilístico, nas saudades, no vazio. Pareceu-me correto o velho adágio segundo o qual só conhecemos a verdadeira dor depois de perdermos alguém de suma importância. O fardo da melancolia, que pode ser abrandado, mas nunca desaparece por completo. Os sobreviventes que ficam e lembram os mortos queridos, uma destruição além da própria capacidade de descrever. É compreensível, quem sabe até inevitável, que o trauma se expresse de maneiras que simplesmente não conseguimos explicar. Por algum motivo despropositado, senti a presença glacial do meu pai enquanto eu retornava para a entrada do parque. Ciente de que, por vezes, os fantasmas são mais toleráveis do que o abismo criado pela morte.
Publicado por P. R. Cunha / 3 de setembro de 2021
Menu indigesto (Café Wittgenstein)
¶ Nos meus anos 20 eu me permitia ler qualquer coisa que me caísse no colo, de forma que ingeri muita bobagem desnecessária. Porém, ao fim e ao cabo, só sabemos de que comida gostamos mais depois de termos experimentado também os dissabores que embrulham o estômago.
¶ A pessoa que não tem nada para compartilhar e não pensa por si mesma tende a se aborrecer com aqueles que têm algo a compartilhar e pensam por si mesmos.
¶ Uma mudança brusca de cenário — viagens, trocas de endereço, novo trabalho — permite analisar o estado em que nos encontramos de uma perspectiva diferente. Pelo menos é o que muita gente espera quando se propõe a realizar tais empreitadas. Contudo, calha também de o tiro sair pela culatra.
¶ Na juventude estávamos sempre rodeados de pessoas: nossos pais, nossos avós que nos levavam para passear, os amigos do parquinho, as crianças da escola, os alunos da universidade. Depois, gradativamente, a convivência social começa a encolher, e passamos a ficar mais com o nosso eu do que com qualquer outro ser humano.
¶ O sujeito encontra-se de súbito num café vazio em terras estrangeiras, o vento gelado do início da manhã invade-lhe os ossos, e ele percebe que, a despeito da fuga, da paisagem alienígena, do Frank Sinatra a cantar no sistema de som do café, nada mudara: os mesmos pensamentos atrozes a atormentá-lo.
¶ Voltando para o hotel num autocarro urbano, olha pela janela e o mundo nunca lhe parecera tão fantasmagórico. O peso da existência continua insuportável — esta sua obsessão doentia pelo sofrimento. Inexplicavelmente, você sorri.
Publicado por P. R. Cunha / 2 de setembro de 2021
Superstições
Uma das maiores vantagens da literatura dos mortos é, sem dúvida, o fato de não ser mais possível conhecer os autores fora dos limites estabelecidos pelo livro. Os fantasmas não dão entrevistas ridículas, não se metem em debates políticos enfadonhos, não publicam disparates nas redes sociais. Nunca aparecer, mas deixar mensagens por escrito atrás de si — as religiões se aproveitam da força mitológica deste ato há séculos.
Publicado por P. R. Cunha / 1º de setembro de 2021
Confraria
Três senhores grisalhos costumam caminhar na rua onde eu pratico a natação. Eles se vestem praticamente da mesma maneira: casacos de lã, calças de moletom, tênis desportivos que já tiveram melhores dias. Andam com calma, passos comedidos, conversam aos sussurros, como se não quisessem perturbar a tranquilidade das primeiras horas da manhã. Talvez sejam amigos de infância, talvez tenham se conhecido no trabalho, talvez façam parte de algum clube do livro, talvez estejam a ler Montaigne, talvez cultivem o hábito de jogar xadrez aos domingos. Depois de duas semanas sem conseguir nadar, hoje voltei aos treinos. Enquanto tirava meu equipamento aquático do automóvel, vi os velhinhos se aproximarem. Percebi, no entanto, que um deles não estava.
Publicado por P. R. Cunha / 31 de agosto de 2021
Flagelos
Quantas vezes eu tive de me destruir/prostituir em toda a sorte de trabalhos avulsos (fotografia, diagramação, trilhas sonoras, publicidade, instrutor de xadrez, etc., etc.) só para poder continuar alimentando este indecoroso vício de escrever?
Publicado por P. R. Cunha / 30 de agosto de 2021
Rio da Prata
Depois de passar a noite aos cafés bebendo e discutindo a literatura de Alan Pauls, David Foster Wallace e Rodolfo Walsh com os amigos, Nico costumava dirigir sem rumo pelas ruas de Buenos Aires. Numa dessas perambulações, calhou de reconhecer uma amiga de faculdade que caminhava sozinha na calçada empedrada. Nico diminuiu a velocidade do carro e disse: Catalina, meu deus…, quanto tempo!, para onde vais a esta hora? Catalina respondeu que estava a caminho do rio da Prata, pois pretendia suicidar-se. Nico abriu a porta e ela entrou. Não trocaram palavra durante o trajeto. Pararam num hotel perto do Teatro Colón e despiram-se como se tudo aquilo fizesse parte de algum enredo invisível estabelecido por softwares de computador. Na manhã seguinte, Nico virara-se para ver se Catalina ainda dormia, mas ela já não estava lá.
Publicado por P. R. Cunha / 29 de agosto de 2021
Enfrentamentos circunstanciais
Quando Nico se recolhe para a chácara que um dia pertencera aos avós, ele gosta de ir, um pouco antes do pôr-do-sol, às margens do lago. Nico deita na grama e espera o céu ser preenchido pela enxurrada de pontinhos espaciais. Ele não se cansa de admirar as estrelas. A luz que viajara imensas distâncias antes de chegar neste planeta aquático com habitantes bípedes — que podem justamente olhar para o cosmos e tirar conclusões (mesmo que muitas vezes disparatadas) a respeito do destino luminoso daqueles incontáveis corpos celestes. Observa um pedaço do universo com amena reverência, o Nico. Sem esperar grandes revelações, nem promessas de salvação, nenhuma resposta. Contempla o domo galático enquanto o barulho da noite toma conta dos arredores da chácara. Nico testemunha o interminável que se expande em todas as direções, compreende — e aceita — a fria indiferença do abismo. Permanece deitado com os braços entrelaçados, a cantiga lacrimosa dos grilos, as estrelas que se afastam sem se despedir. Perto do lago, com a imensidão cósmica sobre a própria cabeça, Nico, enfim, consegue sentir um qualquer vestígio de suficiência.
Publicado por P. R. Cunha / 28 de agosto de 2021
Imprevisibilidades do fim
Não é a morte que me atormenta, escreve Nico numa folha de papel cor latte macchiato, não é a escuridão apática, o sono eterno sem sonhos, mas o ato em si, os possíveis segundos de pavor que antecedem a morte: a forma, portanto, que vou morrer. A angústia repreendida — quando todos os receios são jogados embaixo do tapete —, é superada por esse terror destrutivo, que, a despeito do acúmulo de entretenimento, sempre consegue superar as paredes da alienação, reflete Nico. Alguém pode dizer que desde o momento do nascimento a vida já é um processo de morte. Mas essa convicção livresca é absolutamente inútil quando percebemos a faca afiada do criminoso a caminho do nosso peito desprotegido.
Publicado por P. R. Cunha / 27 de agosto de 2021
Comodismo
A casa dos Magalhães foi construída na encosta de uma colina afastada dos tumultos da cidade. Era uma estrutura moderna e imponente que harmonizava com a vegetação em redor. A garagem com portão basculante ficava na parte de trás, de forma que, para se chegar até ela, você precisava subir a ladeira da rua principal e virar à direita. A pessoa que não quisesse esperar muito podia apertar o controle da garagem antes de virar à direita: ou seja, sem ver o portão propriamente. O filho mais novo dos Magalhães — que pendurava a própria bicicleta na garagem — tinha o hábito de apertar o botão do controle remoto bem antes, enquanto ainda pedalava na subida da rua principal. Certa vez, o pai estava distraído tirando as compras do bagageiro quando o menino montado na bicicleta e longe da entrada pressionou o controle. Por pouco o portão não estraçalhara a traseira do automóvel. Durante o jantar, o pai comentou sobre o ocorrido e disse que, por questões de segurança, a prática de apertar o controle da garagem sem ver o portão estava expressamente proibida. Mas, como costuma acontecer com as novas regras, esta também precisava de tempo para ser assimilada. Na semana seguinte, a vovó Magalhães deixou o portão basculante aberto para cuidar da horta. Ela se ajoelhou e começou a colher os tomates. Era quase hora do almoço, de forma que o filho mais novo, como de costume, estava a voltar da escola de bicicleta. Pedalava distraído na ladeira da rua principal, e, sem perceber que a avó não conseguiria se afastar do portão a tempo, apertou o controle da garagem.
Publicado por P. R. Cunha / 26 de agosto de 2021
Bajuladores
Os antigos diziam que a inspiração literária era uma musa a ser cortejada. Lembremos brevemente das sereias descritas por Blanchot, que cantavam para mostrar em que direção se abriam as verdadeiras felicidades. Mas o mesmo canto (inumano, à margem da natureza) também despertava o desejo de cair. A musa, que antes estimulava grandes feitos livrescos, pode, numa altura imprevisível, ignorar por completo as súplicas do romântico — que agora passa a se questionar «por que cargas estou sentado aqui, a escrever estas bobagens para ninguém». Surgem as dúvidas, a insônia, a angústia do abandono, a ansiedade torna a apertar o coração, o escritor tranca tudo: janelas, portas, tranca-se até a si mesmo, num grande sufoco voltado para dentro. No entanto, essas reações não deixam de ter uma pitada de rancor ingênuo. As sereias não prometem nada, apenas orientam. O escriba que ultrapassa os limites corre o risco de se entregar a um amor platônico. Escrevo e ofereço algo que está realmente além do meu controle, esforço-me para que dê certo, comprometo-me totalmente com a escrita, mas, tal como acontece num relacionamento humano, nada disso é garantia de que a minha devoção será correspondida.
Publicado por P. R. Cunha / 25 de agosto de 2021
Ilha dos mortos
Por mais que Eusébio se esforçasse para manter a calma, para portar-se, como se diz, civilizadamente, ele já não dava conta de disfarçar o desconforto quando ficava — pelo motivo que fosse — impossibilitado de escrever.
O mesmo acontecia com o padrinho de Eusébio, o sr. Schulz: pianista.
Bastavam dois ou três dias longe do piano, e o sr. Schulz olhava para um horizonte infinito, como que atônito pela aproximação de uma terrível tempestade que os outros ainda não conseguiam perceber. Sentia os sintomas da praxe: irritabilidade, estado de grande tristeza, desinteresse, falta de propósito. Ficava afastado do mundo dos vivos, o sr. Schulz. Não conversava, não sorria, não comia.
Eventualmente, Eusébio e o sr. Schulz entornavam generosos porres (Eusébio em Brasília, sr. Schulz na Baviera [às margens do Königssee]), bebedeiras que não raro arrastam para o fundo do precipício.
Distraíam-se por algumas horas, atravessavam a noite intranquila, acordavam com o mesmo sentimento de vazio, esmigalhados pela crise de abstinência.
A calma só se restabelecia quando ambos, finalmente, voltavam a praticar o próprio ofício: Eusébio agarrado à escrivaninha, sr. Schulz ao piano, como dois náufragos que não se importam mais com o afogamento.
Publicado por P. R. Cunha / 24 de agosto de 2021
Despedir-se temporariamente da realidade
Quando estou a pedalar a minha bicicleta, é como se eu me encontrasse num cenário produzido por Tarkovsky. Zona: espaço não-geográfico em que as leis normais da natureza tornam-se irreconhecíveis e/ou obsoletas. Meus pés e minhas mãos operam a bicicleta de acordo com os princípios físicos recorrentes: gravidade, inércia, dinâmica, ação-e-reação, forças resultantes. Mas, dentro da cabeça, a lógica é outra. Um abandono temporário do mundo, das preocupações fugazes; de mim mesmo, dir-se-ia. Pedalo a bicicleta e enterro fantasmas, arrependimentos, fracassos assustadores, memórias que me consomem aos bocados.
Publicado por P. R. Cunha / 20 de agosto de 2021
Sobre a maleabilidade do cérebro
A cena é clássica: alguém acorda de manhã, levanta para escovar os dentes e se depara com o próprio reflexo no espelho. Esse alguém, então, identifica-se com a imagem invertida, analisa os contornos, diz para si mesmo que, sim, somos a mesma pessoa, bate no rosto à laia de credibilidade, as bochechas ficam com um tom avermelhado, etc. Acontece que essa relação, digamos, «permanente» não passa de miragem. As fotografias antigas revelam a inconstância de maneira nítida. Além disso, numa abordagem mais abstrata, o cérebro ainda se comporta como uma esponja em constante desenvolvimento. Basta analisar os seres humanos com quem convivemos. Ciclano casa-se com Fulana e dali a alguns anos ninguém se reconhece. Fulana diz que Ciclano «é outro, nada parecido com aquele homem por quem ela se apaixonara no baile de formatura»; Ciclano diz que Fulana «modificara-se imenso depois da viagem que ela fizera para o Egito». Livros, filmes, um copo de gin à noite, olhares convincentes, passeios algures, o vento correto, a areia no pé depois de uma longa caminhada na praia. Um pequeno desvio na roda do leme e tudo se modifica.
Publicado por P. R. Cunha / 19 de agosto de 2021
Divagações ao Centro Clínico de Brasília (semiobscuridades)
¶ Contradigo-me e dou provas de que estou vivo: hoje penso de um jeito, amanhã de outro, aprendo, esqueço, relembro, acrescento, tiro, transmuto, demonstro que não me tornei um autômato previsível (ainda).
¶ Imensas vezes, quando me perguntam o que estou lendo — para não arruinar a minha experiência secreta —, eu digo que nada, não estou a ler nada.
¶ Um animal silvestre
que se sente ameaçado
encurrala-se no subterrâneo
a tremer de pavor
¶ A quantidade de informações que produzimos/consumimos: como se não houvesse algo que realmente me surpreendesse.
¶ E sempre acontece muito mais do que consigo absorver.
Publicado por P. R. Cunha / 18 de agosto de 2021
Continuo a exploração do absurdo de existir (enfrentamentos)
O processo de desfrutar a indiferença, a infinita capacidade de decepções que o mundo oferece a todos aqueles que caminham sobre este planeta de pedra e água.
Alguns encaram o abismo e fecham os olhos assim que o abismo os encara de volta. Não cair nesta armadilha. Permanecer flertando. Uma vez ali, à beira do precipício, a amnésia não deve mais ser uma via possível. Recordar dos mínimos detalhes, inclusive do sorriso canhestro do vazio.
Depois de uma tímida hesitação, abrir as comportas da represa, deixar-se inundar pelo rio de lama que arrasta tudo à volta.
É realmente possível adotar postura como essa a tempo inteiro e não enlouquecer? (Pergunta retórica.)
O shopping mall como microcosmos das angústias humanas. Analisar os outros membros da espécie a agir desta ou daquela maneira: andam para lá e para cá, estacionam-se diante das vitrinas, fitam os manequins, pessoas que de certeza estão a esconder alguma coisa, ou a bloquear algo, em silêncio, ou numa tagarelice sem fim à mesa da praça de alimentação, ou na fúria que descontam nas crianças travessas que insistem em pisar na faixa amarela da escada rolante.
Publicado por P. R. Cunha / 17 de agosto de 2021
Diferentemente do sucesso, que se dissipa ligeiro depois de uma breve euforia inicial, o fracasso permanece — como cicatriz que não se pode apagar
Jamais tive paciência para aqueles arcos narrativos tipo «mocinho-encontra-mocinha-superam-dificuldades: felizes para sempre». É uma literatura que me aborrece imenso, desde criança. Já me falaram que não tenho muitos leitores justamente por isso.
Acontece que compreendo cada vez mais que escrevo não para oferecer respostas, nem soluções, que meu forte nunca será a linearidade, a exposição detalhista, nem sei se sou capaz de construir enredo satisfatório.
Escrevo para mim mesmo, como forma de terapia, exorcismo, repelir os demônios que me assolam, ou, ao menos, fazer amizade com alguns deles, para amenizar insônias, e, principalmente, preparar-me às próximas crises melancólicas — que costumam surgir ali por volta das 15h/16h.
Em muitos aspectos, chamar-me de escritor chega a ser uma heresia. De aí eu evitar o termo a qualquer custo.
Sou, antes de tudo, uma farsa com caneta na mão.
Publicado por P. R. Cunha / 16 de agosto de 2021
Paisagem abissal ou antídoto paliativo contra a encarnação do esquecimento.
O feitiço da escrita faz com que o escritor esqueça-se de si mesmo e do mundo em redor. Não deixa de ser, também, uma cápsula do tempo: o relógio que se arrasta, dilata-se, agora estamos a correr, depois apetece-nos sentar numa falésia e ver o mar. Escrever, ao que parece, é um excelente exercício para o cérebro, esta maquininha gelatinosa que gera ideias magníficas, mas que por vezes não é lá muito eficiente na hora de armazená-las. A despeito do que disseram os socráticos, anotamos pensamentos no papel e de muitas formas dilatamos os limites da memória.
Publicado por P. R. Cunha / 13 de agosto de 2021
Sem nos afundarmos pela terra abaixo
A quantidade de vezes em que respondi a uma pergunta, como se diz, à queima-roupa e me senti um completo idiota depois — não só por achar que poderia ter dado uma resposta melhor, mas por absolutamente não concordar com nada que eu respondera, na verdade, repudiar tudo, cada vírgula do que eu dissera. Num momento achamos que estamos a dar a resposta mais eloquente, mais lúcida, mais cabível, para dali a pouco pensarmos melhor a respeito, e entramos em parafuso, porque a resposta foi ridícula, e alguns passam mesmo a questionar a própria sanidade, não é possível que eu pude dizer aquelas coisas, não é possível, não é possível…, etc.
Publicado por P. R. Cunha / 12 de agosto de 2021
Pista descendente
No alto de uma montanha suíça morava um homem que fabricava esquis. Ele era tão habilidoso e detalhista que os melhores esquiadores do mundo ignoravam as grandes marcas do ramo e iam lá comprar os equipamentos do recluso sujeito alpino. Depois, esses mesmos esquiadores venciam os campeonatos importantes, recebiam imensa quantidade de prêmios e levavam uma vida, como se diz, confortável. Certo dia, alguém comentou com o homem da montanha que ele podia até fabricar esquis primorosos, mas era pobre feito um cavalo doente. Ao que sugeriram que ele não só fabricasse os esquis, mas também competisse com eles e fosse recompensado da maneira que merecia. Após muitas recusas, o homem finalmente aceitou participar de um torneio profissional na Áustria. Como era esperado, o fabricante de esquis fez uma prova impecável, e, ao atravessar a linha de chegada, jogara-se na neve, talvez para comemorar o grande feito. Porém, quando o público extasiado tentou levantá-lo para levá-lo ao pódio, descobriram que o vencedor não estava respirando mais.
Publicado por P. R. Cunha / 11 de agosto de 2021
Repetição
Estava a fazer uma chamada de vídeo com um amigo quando a filha dele apareceu na câmera do telemóvel. Ela me reconheceu e disse: senhor P. R. Cunha, o senhor escreve coisas esquisitas.
Gostava de insistir um pouco na cena que publiquei ontem: Balduíno acorda e percebe que nada faz sentido. Situação corriqueira na vida de imensa gente.
Afinal, o que nos faz levantar da cama? Em quais narrativas nos agarramos para, como se diz, encarar o dia que mal começara?
Eu cá escrevo todas as manhãs, tomo café, vou à natação, cuido da minha plantinha (chama-se Sônia Miranda), respondo ao correio eletrônico, e por aí adiante.
Montaigne declarou certa vez que escrevia para aprender a morrer. A escrita, portanto, como vestibular, um curso preparatório para lidarmos com a nossa própria finitude.
Preenchem-se as horas com toda a sorte de miudezas porque seria um verdadeiro terror pensar a tempo inteiro na inevitabilidade do desaparecimento — a dor inútil, os acúmulos inúteis, caixas cheias de quinquilharias sem valor, e de repente a respiração cessa, o caixão está sendo carregado por alguns familiares vestidos de preto, o corpo fechado que desce à terra para servir de banquete às minhocas.
Há quem olhe para uma pessoa idosa e prefira virar para o outro lado.
Antigos filósofos costumavam ter alguma imagem de morte na própria escrivaninha — geralmente um crânio humano. Era um lembrete daquilo que os esperava. Hoje, tens a pele a cobrir-te; amanhã, serás apenas isto, uma caveira.
Enfrentar o terror do aniquilamento sem se agarrar em falsas âncoras, abandonando as frágeis promessas de continuidade. Lidar com o que sou agora, da maneira mais honesta e despudorada possível.
Publicado por P. R. Cunha / 10 de agosto de 2021
Balduíno, ou o Realismo (sobre a intranquilidade da alma)
É possível imaginar Balduíno a abrir os olhos pela manhã perguntando-se qual o propósito disto tudo, permanecer na cama ou levantar-se, o que estimula Balduíno, quais seriam as motivações, etc.
Não raro ele pensa que está preso numa armadilha; e não importa o que faça, será sempre um desperdício de tempo — futilidades.
É a condição humana, Balduíno diz para consigo mesmo, estar neste mundo defeituoso.
A despeito do criador que tu prefiras adorar, como podes defender que estamos numa bela obra de arte? Alguém que escolheu construir um cenário em que precisamos constantemente consumir outras vidas para permanecermos vivos. Analisa o teu prato de almoço.
Onde o sofrimento é parte crucial da nossa existência.
Criador malicioso. Somos, continua Balduíno, somos um projeto fracassado.
E cada um desenvolve (ou tenta desenvolver) para si um conjunto de fraudes à laia de anestesia. Fazem de tudo para esquecer dos absurdos, das dores, da falta de sentido. Fogem das instabilidades em religiões, filosofias, literaturas, músicas, viagens, gurus, auto-ajuda.
Ignoram que um dia teremos de morrer, comenta Balduíno ainda deitado na cama, e escondem esse fardo algures, em instalações distantes como cemitérios, hospitais, asilos, manicômios.
Balduíno gosta de organizar o próprio pensamento assim: em séries.
Doença, morte, incômodos diversos, coisas que só acontecem aos outros.
Então voltamos para casa e temos Netflix, as redes sociais, a nossa geladeira, a nossa sala mobiliada, o nosso quarto, o nosso chuveiro elétrico, o nosso livrinho de cabeceira… No entanto, os sentimentos de pavor e melancolia estão à espreita, nunca se dissipam completamente.
Não é possível se perder em negações a todo o momento. Isso só pode funcionar a curto prazo. Até a vida jogar outras tragédias no nosso caminho, reflete Balduíno.
Estamos constantemente editando a nossa imagem: devemos sorrir nas fotografias, precisamos de nos mostrar felizes com o que conquistamos, entusiasmo com o futuro. Acontece que essa curadoria externa não condiz com o que se passa no interior.
Basicamente, continua Balduíno enquanto boceja, o que acontece quando paramos de mentir, quando deixamos de correr, de nos reinventar? O que ouvimos quando não gritamos por respostas artificiais…?
Silêncio e vácuo, eis o que nos resta.
Publicado por P. R. Cunha / 9 de agosto de 2021
Correntezas
Lá se vai uma semana inteira a escrever apenas sobre fazendas literárias: nítido (e desavergonhado) exemplo da chamada «arte de procrastinar». Estou a trabalhar num livro, mas, em vez de escrevê-lo propriamente, venho aqui falar sobre o processo. Negligencio o livro entregando-me às miragens. É um bocado contraintuitivo.
Publicado por P. R. Cunha / 8 de agosto de 2021
Equações não-lineares
Peço licença à memória do senhor Richard Feynman para fazer este infame trocadilho: se você acha que entende literatura, é porque você não entende literatura.
À guisa de simplicidade, podemos definir literatura como um conjunto de obras e autores de uma determinada época. Dentro desse escopo haverá certamente uma série de subgêneros: científico, técnico, romanesco, etc., etc.
Para o nosso propósito, acredito que a literatura romanesca deva bastar.
Então, o que significa «entender» literatura?
Suponhamos que uma pessoa X leu tudo sobre James Joyce, dedicou imenso tempo para estudar os pormenores da obra deste que é considerado um dos mais importantes escritores irlandeses de sempre. Suponhamos também que a mesma pessoa X não saiba nada sobre Faulkner, nem Cervantes, nem Tomas Tranströmer. Pessoa X entende literatura?
Um professor universitário exige que os alunos leiam Lima Barreto, mas ignora completamente o espólio de Paulo Mendes Campos. É isto um curso de literatura?
Já se pode notar que estamos no campo minado da subjetividade, onde as vertiginosas opções de respostas plausíveis só demonstram que não há resposta alguma.
Como aquele turista que passa apenas três dias em Berlim e volta dizendo que conheceu toda a Alemanha.
Eu cá vos anuncio que admiro (de acordo com os meus contextos, os meus [pre]conceitos, as minhas possibilidades) muitíssimo os livros de Thomas Bernhard, mas desprezo a obra de Flaubert. E o que isso quer dizer sobre o meu entendimento (sic) literário?
Ao fim e ao cabo, se, tal como Feynman, ainda suspeitamos daqueles que garantem compreender a mecânica quântica, acredito que não seja absurdo agir com o mesmo ceticismo quando diante dos especialistas em literatura.
Publicado por P. R. Cunha / 7 de agosto de 2021
Utopias às escondidas
Desconfortável admiti-lo, mas muitos escritores possuem traços ditatoriais — no sentido de sair, olhar em volta e dizer: eu poderia construir uma sociedade melhor, ah!, poderia. De aí eles se isolam num sótão escuro qualquer, escrevem romances para implementar as próprias hipóteses mirabolantes. Tudo parece funcionar direitinho dentro dos muros livrescos. No entanto, não deixa de ser revelador o facto de que poucos escritores costumam se sair bem em cargos políticos. Talvez porque ali precisam de lidar com algo muito mais imprevisível e hostil do que uma folha de papel…, ou seja: a realidade humana.
Publicado por P. R. Cunha / 6 de agosto de 2021
Em caráter de urgência
Escrever é uma obsessão. O fanatismo sobre o qual Ernesto Sabato comentara certa vez: necessário ser um bocadinho neurótico para se criar algo importante, sacrificar qualquer coisa à escrita.
Como aquele jogador que promete nunca mais tocar num maço de baralho para dali a pouco se enfurnar num cassino fumacento a fazer apostas arriscadas no Blackjack.
Se tudo é caos, confusão, os vícios agem como distrações passageiras que amenizam os absurdos diários.
Poder-se-ia dizer o mesmo daqueles que acumulam obras de arte — o que pretendem demonstrar com tamanha extravagância?, que durante os imprestáveis 80/85 anos que andaram neste planeta conseguiram desenvolver «um gosto refinado»?
A verdade é que muitos milionários adquirem grande quantidade de obras alheias porque, a despeito da enorme fortuna, nunca conseguiriam criar arte com as próprias mãos: nem mesmo um bonequinho de palito no canto de um guardanapo sujo.
O universo, portanto, é mesmo caótico; a terra também, e, sobretudo, os humanos: fanáticos, contraditórios, desajustados.
Mas calha de estarmos aqui, neste século, neste ano, neste dia, nesta hora.
Ao passo que a escrita-automática (aquela que se faz sem pensar, sem rodeios, sem vaidade) torna-se um caminho alternativo para se fugir da estagnação que assola depois de determinadas investigações filosóficas.
Escrever apesar de sabermos que estamos a participar de um jogo inútil, nas palavras de McKenzie Wark, jogo vasto cujo objetivo não conhecemos e cujas regras não lembramos. Um jogo em que é impossível ganhar, e nem sequer percebemos quem está contando os pontos (se é que alguém está a contar os pontos).
Noutros termos: seguir em frente, lançar os dados, mesmo sabendo que a estrada do tabuleiro termina num abismo sem volta.
Publicado por P. R. Cunha / 5 de agosto de 2021
Fundamentos
É raro encontrar um escritor que não goste de conversar a respeito da própria fazenda literária: que tipo de caneta ele utiliza, se escreve no papel ou no computador, o estilo de música que escuta durante o trabalho, ou se prefere o silêncio do fim de noite, quando todos a dormir. Não se trata apenas de escrever, inventar mundos paralelos, misturar realidade com ficções — chegará a altura em que o escritor também se perguntará por quê?, como?, e (principalmente) para quê? O tal espelho no canto direito da escrivaninha. É quase uma justificativa, um pedido envergonhado de desculpa: guerras acontecem, colapsos financeiros, as pessoas estão sofrendo… e o escritor ali, segurando a lapiseira.
Publicado por P. R. Cunha / 4 de agosto de 2021
Ao revés
De início, havia todo o tempo do mundo, uma existência inteira pela frente, margem para erros. Tudo bem jogar videogame madrugada adentro, dormir até tarde, desperdiçar horas-e-horas deitado no sofá assistindo aos terríveis programas de televisão dos anos 1990. Tu podias ser quem quisesses, sonhar com incontáveis possibilidades, nenhum fracasso (um conceito amorfo, ainda em gestação) conseguiria te desanimar. Acontece que a vida tem um jeito indiferente de podar as nossas pretensões: ela afunila, descarta, subverte, anula. A vida passa. Não obstante a tua mania de grandeza, tu não podes ser astronauta, escritor, músico, jogador de futebol, corredor, desenhista, fotógrafo… Não tens cabeça para dares conta de tudo isso. Inclusive, podemos falar um bocadinho sobre essa tua cabeça, sobre a tua condição mental, a tua inconstância, os altos e os baixos (mais baixos do que altos), e como a bipolaridade ceifou/ceifa as tuas escolhas. As adaptações que tiveste de fazer, busca ardilosa por um qualquer equilíbrio, frágil harmonia que diante da menor interferência desmorona qual castelo de areia.
Publicado por P. R. Cunha / 3 de agosto de 2021
Não é mais como era
Há algo de definitivo no ato de escrever. Talvez seja o simbolismo excessivo que se coloca no ponto final. Durante imenso tempo, guardamos determinados episódios na cabeça, até que numa tarde de agosto transferimos tudo para uma folha de papel e eis o início do fim. Anotamos e esquecemos. Liberamos lotes para que novas ruínas sejam erguidas.
Publicado por P. R. Cunha / 2 de agosto de 2021
Literatura como floresta que será melhor aproveitada por aqueles que nela se percam
Não era mais apenas uma questão de divertimento, algo que surgisse durante um período de inspirações avulsas — a mesa adequada, o ambiente adequado, o tema adequado, a casa adequada, etc.
Fora a necessidade fisiológica (escrever agora é tão [ou mais] importante quanto comer e beber água), a escrita tornara-se também um hábito que definia aquilo que eu gostava de transparecer para as outras pessoas.
Uma atividade identificadora, portanto.
Que me olhassem e dissessem: P. R. Cunha escreve, isto é certinho, não há mais como separá-los, é algo intrínseco, uma associação automática.
Publicado por P. R. Cunha / 1º de agosto de 2021
Império
Tenho cá certa predileção pelo céu da noite, com aqueles pontinhos luminosos a percorrer distâncias cósmicas. Mas nem por isso deixo de admirar o majestoso domo diurno, cujo protagonista é a bola de fogo a que os povos andinos chamam de Rei.
Se um dia acordares com inclinações egocêntricas, achando que és o centro do mundo, que todos prestam imensa atenção em ti e nos teus atos, sugiro que abras a janela e lembra-te do Sol.
Para os propósitos humanos, o nosso planeta já se mostra absurdamente grande. Agora imagina uma estrutura dentro da qual poderíamos colocar 1,3 milhão de Terras?
Uma esfera incandescente transformando hidrogênio em hélio por meio do violento processo de fusão que ocorre nas entranhas do núcleo, a própria caldeira do inferno.
O Sol impõe respeito. Pode ser um monarca benevolente, provedor de vida, mas não hesitará em cuspir fogo se lhe der na telha fazê-lo. E, ao contrário da Lua — uma amante vaidosa que aceita o lisonjeio —, a estrela-dragão cegará aqueles que se entregarem às longas contemplações.
Publicado por P. R. Cunha / 31 de julho de 2021
W. decide que chegara a altura de buscar uma editora a sério
Nobres editores,
Quando comecei a escrever eu era um jovem, como se diz, promissor, e isso foi bem a minha pena de morte, pois acreditei ingenuamente no que as pessoas me disseram, nesse chamado potencial literário, deitei-me num conforto ilusório. Em suma, nunca corri atrás de nada — apenas esperava ser descoberto, que alguma casa de letras oferecesse abrigo a este coração exilado. Para consumar a tragédia, calhou de eu receber uns prêmios independentes, e a miragem se alastrara pela minha circulação sanguínea e cheguei mesmo a cometer a insensatez de declarar-me «escritor». Acontece que hoje não sou mais tão jovem. Meu nome é W., tenho 35 anos, e estou à procura de uma editora: razão pela qual escrevo aos senhores sentado aqui ao Jazz Café Buenos Aires, um estabelecimento aconchegante onde costumo ler os jornais e tomar o pequeno-almoço sem a necessidade de falar com vivalma. Sei — e compreendo — que a vossa empresa costuma publicar demasiados livros, e que estão amiúde ocupados a analisar as provas, os contratos, as edições comemorativas, as noites de autógrafo, etc., etc., mas se porventura lerem o manuscrito que estou a enviar juntamente com esta breve nota introdutória, perceberão como a minha leve & simpática escrita combina imenso com os títulos que foram publicados pelos senhores (obras magníficas, por sinal). Dito isso, aguardo ansiosamente para ver qual será a vossa reação diante do meu livrinho, e acredito que estamos aqui a começar uma parceria deveras enriquecedora.
De um vosso criado,
W.
Publicado por P. R. Cunha / 30 de julho de 2021
Não atirem no mensageiro
Se há um órgão absurdamente sobrecarregado no nosso sistema, este (elipse) é o cérebro. Ele precisa de receber, filtrar, reconstruir contextos, remanejar toda a complexa rede de informações provenientes dos sentidos (visão, paladar, olfato, audição, tato). E mesmo depois de um dia inteiro de disparates, de aguentar/digerir lixos diversos, de ouvir as piores músicas na volta a casa dentro de um autocarro lotado, de assistir aos vídeos mais ridículos nas redes sociais, ler todas as tragédias nos noticiários, o cérebro ainda precisa de prestar contas sobre os porquês de estarmos assim tão esgotados.
Enxaquecas, transtornos mentais, ataques de nervo e/ou pânico, burnout, perda de memória, comportamento irascível, descoordenação motora, alterações químicas, uma frase maldita ao jantar que dera início a um efeito dominó sem precedentes — tudo culpa do cérebro.
David Foster Wallace costumava dizer que não há a mínima coincidência no facto de os adultos que cometem suicídio com armas de fogo darem quase sempre um tiro na cabeça.
O alvo, o criminoso, o réu: o cérebro. Nossa placa-mãe, a via final comum, o mediador, uma estrutura gelatinosa que pesa menos de dois quilos, criador de pensamentos, sonhos, lembranças. Um espelho, afinal, daquilo que absorvemos.
Publicado por P. R. Cunha / 29 de julho de 2021
Ao ritmo do glaciar
Por vezes acontece de eu acordar e não saber ao certo sobre o que escreverei. Curiosa sensação de vertigem, ir-se às margens do precipício.
Há uma quantidade significativa de temas que orbitam em torno da minha cabeça — como as luas de Júpiter. Procuro permanecer na superfície, a filtrar os ruídos atmosféricos.
São-me cruciais esses momentos de aparente tédio. Um desligamento momentâneo para reorganizar o guarda-fato cerebral.
Robert Hall, que durante anos trabalhou como guia no monte Evereste, certa vez dissera que, com suficiente determinação, qualquer pessoa conseguiria subir esta montanha. O problema, continuou Hall, é voltar para baixo vivo.
Fico pensando se a mesma lógica serviria também às expedições literárias, escrever um livro (que não deixa de ser uma espécie de escalada), etc. — apesar de achar essa comparação um bocadinho pedante/elitista.
Vale lembrar que Robert Hall morreu no próprio Evereste, enquanto lutava para salvar um cliente que vacilara no gelo.
Publicado por P. R. Cunha / 28 de julho de 2021
Bob (Café Wittgenstein)
Na academia onde eu pratico natação há um boneco de pancada. Por algum motivo, chamam-no de Bob — talvez seja o nome dado pela fabricante. Bob é um busto tipo sparring instalado numa resistente torre de impacto. Ele não tem os braços e está sempre de cara amarrada. Bob fica perto do parque aquático, de forma que os nossos encontros são inevitáveis. Sempre que passo por ele fico com as vontades de dar bofetadas naquela horrorosa cabeça de borracha. Mas não o faço por 1) decoro e 2) certa timidez.
Robert Sapolsky escrevera que a maioria dos seres humanos carrega dentro de si um arranjo confuso de sentimentos e pensamentos sobre violência, agressividade e competição.
Um pacato funcionário do almoxarifado que depois do expediente entrega-se aos socos num ringue de boxe; o professor de geografia que aproveita as férias escolares para treinar para o próximo campeonato de slapfight; ou mesmo a violinista solo da orquestra que antes dos ensaios pratica a luta livre.
Enquanto olho para o boneco, contendo-me para não partir para cima dele, penso que a nossa preferência mostra-se de todas as espécies de maneira.
Pulo na piscina e digo a mim mesmo: desta vez tu te safaste, Bob.
Publicado por P. R. Cunha / 27 de julho de 2021
Esgotamento nas nuvens
As aeronaves modernas possuem um sofisticado computador de bordo que armazena tudo o que acontece dentro do avião: conversas entre os tripulantes, informações que vêm das torres de comando, mudanças de rota, temperaturas, panes, etc.
No entanto, por mais eficazes que pareçam, esses cérebros eletrônicos também apresentam limites físicos. Só conseguem guardar uma quantidade finita de dados.
Por exemplo, o computador interno do Boeing 787 Dreamliner — uma robusta aeronave de longas distâncias — precisa de ser reiniciado manualmente a cada 51 dias. Esse procedimento, conhecido como «ciclo de energia», é realizado para evitar que dados obsoletos transbordem o sistema do avião.
Sem esse descanso, os instrumentos digitais da aeronave podem transmitir informações enganosas aos pilotos, que não terão certeza se a velocidade do ar, altitude, e outros mecanismos cruciais foram computados corretamente.
Em alguns aviões, o sistema desligar-se-á de forma automática e imprevisível caso permaneça em funcionamento além da conta.
Publicado por P. R. Cunha / 26 de julho de 2021
Colecionadores
Há limites para a obsessão de uma pessoa? Acumulamos desgostos, fracassos, selos, diplomas, moedas comemorativas, acumulamos livros, bebidas, papel higiênico, lágrimas, gordura adiposa, acumulamos, também, saudades e despedidas inesperadas.
Publicado por P. R. Cunha / 25 de julho de 2021
Arte como empreendimento de saúde
Inventar explicações razoáveis e/ou pertinentes para os equívocos, os incontáveis desastres, um rastro de abandono, palavras malditas, meia-dúzia de corações feridos — o meu, inclusive.
Desintegração enquanto procuro, através da escrita, um álibi, respostas aos alvoroços sobre os quais tenho comentado nos últimos dias.
O colapso nervoso bifurca a estrada humana, que já se mostra sinuosa desde sempre. Não dirigimos em linha reta. Depois de um episódio neurótico, pode-se fazer as pazes com o mundo «tal como ele é» (absurdo, desprovido de sentido, indiferente, etc.) ou volta-se com ainda mais fúria para si mesmo, num torturante procedimento de autoflagelação.
E o que acontece quando a caneta me falha, quando não consigo escrever, quando perco a bússola e permaneço prostrado à escrivaninha qual um espantalho cujas pernas de palha não o permitem escapar?
Há uma certa romantização das doenças psiquiátricas quando se fala sobre arte. Que muitas pessoas criativas sofrem de perturbações mentais, e que esses desajustes seriam decisivos para gerar obras, como se diz vulgarmente, fora da curva.
Vincent van Gogh não pintava porque era maníaco-depressivo, mas sim apesar de sê-lo. As cartas ao irmão Theo demonstram claramente que os poucos momentos de relativa serenidade que Van Gogh teve ocorreram quando ele estava diante do cavalete.
Não é, portanto, a fazenda artística que acama, que gera psicoses, que zanga e trás loucuras, mas sim a quebra/interrupção dessa tarefa. Praticar as criatividades funciona como anestesia, de forma que, como tal, o artista é antes um médico de si mesmo.
Sentado no comboio e de súbito me dou conta de que não conseguirei escrever nos próximos dias, porque obrigações diversas. Eis o gatilho. Fico macambúzio, desinteressado. O comboio bem poderia saltar fora dos carris que eu me estaria nas tintas.
Publicado por P. R. Cunha / 24 de julho de 2021
À margem
Songs for an empty world, compilação da Cryo Chamber. Além de oportuno ruído branco, as músicas como que dialogam com os dissabores que vagueiam cá dentro da minha cabeça. Trilha sonora do egotismo.
Eis uma constatação banalizada pelo excesso: depois de certo período neste planeta atmosférico, o ser humano começa a compreender que existir é um constante conflito entre a vontade de vida e a vontade de morte.
Estar vs. desaparecer.
Quando não se é mais tão ingênuo para acreditar na imortalidade, e já se acumulou evidência o suficiente para aceitar (ou pelo menos para não negar) que viver é um processo de desmantelamento.
Hoje tu movimentas o próprio corpo com um bocado de desenvoltura. Até que tudo muda, e tu não sabes direito qual seria a fronteira desta mudança, apenas sentes umas dores, um desconforto que demora a passar.
Eu, que estou sempre mergulhando — cada vez mais fundo —, e retorno à superfície ofegante, quase que no limite, e existo com esta permanente ameaça de afogamento, alguém que não tem muito a perder, a construir uma realidade subaquática, dir-se-ia paralela.
Esta Atlântida cujos muros tenho levantado desde o dia em que contei para o meu pai que seria escritor. Este microcosmo que trás a ilusão de segurança — universo do qual sou rei & arquiteto & súdito.
O reino fantástico que se torna tão absurdamente eficaz até ao ponto de me engolfar, e é difícil sair, voltar à chamada normalidade, e estou distante das coisas externas, preso num hiato entre ficção-realidade.
FICÇÃO <- – – – [eu] – – – -> REALIDADE
Em outros termos: a escrita representa uma espécie de viagem, tentativa de sair (fugir/escapar) da consciência, permanecer justamente ali, no vale impreciso que divide o fantástico dos acontecimentos mundanos.
Produzir ficção para compensar os horrores da vida. E talvez eu não queira mesmo subir à superfície com tanta pressa.
Publicado por P. R. Cunha / 23 de julho de 2021
Fábrica de entropias
Quem cedeu uma vez ao prolongado estado taciturno, pode sempre ceder outra vez. A diferença é que, agora, as barricadas estão montadas, com infantaria atrás — aguardando.
A cada volta ao redor do Sol percebo-me ainda mais inclinado àquela milenar tradição filosófica, isto é: um fazedor de perguntas desconfortáveis que não necessariamente se dá ao trabalho de respondê-las.
Todas as atividades com as quais me comprometo — não apenas literárias — são-me analgésicos para conseguir lidar com o mundo. Medicamentos que oferecem alívio, permitem um qualquer propósito, mesmo que fugitivo.
Quando os efeitos se dissipam na circulação sanguínea, a angústia se desperta. Pergunto-me qual é, afinal, o ponto disto tudo, por que seguir em frente… Então sei que chegara a hora de reiniciar o ciclo.
Uma das grandes aflições da sociedade moderna parece ser que poucos se mostram dispostos a sacrificar o próprio conforto para um benefício, digamos, mais abrangente. Enquanto as ondas maltratarem a falésia alheia, está tudo bem.
Segundo estimativas moderadas, nossos contemporâneos produzem pelo menos 2.5 quintiliões de bytes por dia. Isso significa que, a cada dois dias, disponibilizamos mais dados do que todo o conjunto de informações produzidas pela raça humana dos tempos das cavernas até 2003. Aquele que navega nessa enxurrada, caso não leve consigo o colete salva-vidas adequado, corre o risco de envelhecer séculos num par de horas.
E em que altura é preciso dizer: pronto!, isso me basta, chega, por favor, chega, não quero, etc. (?) Numa determinada manhã de domingo alguém acorda, olha em volta e decide que já sofrera um bocado, mais informação/novidade do que consegue suportar.
Bombardeado por notícias, produtos, objetos inatingíveis, boletos e cupons; o sujeito, por fim, enlouquece.
Um estado de constante mudança, nenhuma âncora, nenhuma ilha para a qual se retirar. Apenas a maré irascível que arrasta todos às profundezas.
Publicado por P. R. Cunha / 22 de julho de 2021
Notas de rodapé
Cada livro que leio de outro autor é também o meu livro — com os meus (pré-)conceitos, com os meus contextos, as minhas desilusões. Reler a mesma obra depois de imenso tempo, dir-se-ia «com outros olhos», apenas reforça essa ideia.
Somos vários.
Criamos padrões neurais que mapeiam em forma de imagens aquilo que lemos, tomamos posse e se formos astutos o suficiente adotaremos esses conhecimentos: como se sempre tivessem feito parte da nossa índole.
O facto de não conseguirmos ver o que se passa na cabeça do escritor também intensifica o processo de apropriação. Pode-se analisar o corpo, as ações, as manias, o que (e como) responde a uma entrevista, estudamos o que ele escreve, fazemos suposições. Mas, no fim de contas, não podemos observar o cérebro dele.
Numa determinada altura da vida, depois de tantos livros assaltados, já sabemos do que gostamos de ler, mas isso nunca é o bastante; é necessário ultrapassar os limites, arriscar-se novamente, sentir a irresponsabilidade da primeira leitura, o terreno desconhecido, voltar a ser criança.
Publicado por P. R. Cunha / 21 de julho de 2021
Acrobáticos
Sempre achei o processo criativo uma empreitada digna de nota. O retirar-se para construir o que tem de ser construído, o desgaste, o desconforto, o acabamento, a outra fuga depois do fim: pois está-se completamente esgotado e agora é necessário renovar as fantasias, recuperar o fôlego.
Quando o astronauta precisa de sair ao vácuo, ele está a fazer um passeio espacial (spacewalk). Isso me faz pensar nas solitárias caminhadas de Thoreau, nas fugas de neve de Robert Walser, Montaigne a rodear o castelo, Voltaire perdendo-se no labirinto de algum jardim francês.
18 de março de 1965: o primeiro ser humano a passear no espaço foi o cosmonauta Alexei Leonov — que também era escritor. Durante 12 minutos e nove segundos, Leonov permaneceu em órbita enquanto uma corda de segurança, que parecia prestes a enforcá-lo, mantinha-no preso à capsula soviética.

Mínimo defeito na corda e Leonov flutuaria para o nada.
É um pouco como o artista do trapézio descrito por Kafka em Primeira dor. O trapezista, sem dúvida uma direta referência às atividades literárias, arriscando-se apenas com uma barra entre as mãos, a perceber a vida por um fio, a fragilidade de tudo, e, principalmente, a vulnerabilidade de si mesmo.
Artista do trapézio — «arte que se pratica no alto da cúpula dos grandes teatros de variedades» —, astronautas em orbita, escritores debruçados, certos abismos vertiginosos.
Depois do passeio no espaço, o caminhante retorna para o relativo conforto da nave através da câmara de descompressão.
Publicado por P. R. Cunha / 20 de julho de 2021
O pai de Tarantino (ou uma questão de termômetro interno [Café Wittgenstein])
Determinados verbos que de tão subjetivos necessitariam de um qualquer mecanismo de intensidade. Um dispositivo para as vistas.
Alguém diz: eu gosto de filmes. Um outro diz: e eu gosto do meu pai. Em ambas as situações a mesma palavra, alvos diferentes.
Embora alguns pais sejam terrivelmente tirânicos, espera-se que a pessoa goste mais do próprio pai (ter apreço, etc.) do que, por exemplo, do último filme do Tarantino.
Eu cá escrevo que gosto de ler Sebald e também gosto de ler Enrique Vila-Matas. Mas o meu «gostar de Sebald» não é igual ao meu «gostar de Vila-Matas» — apesar de despertarem em mim reações análogas.
Sugerir-se-ia o emprego de termos como: amar, adorar, venerar, e por aí adiante. Porém, quantas vezes dizemos que amamos determinada coisa quando em verdade só temos um interesse passageiro por ela?
Publicado por P. R. Cunha / 19 de julho de 2021
Perplexidade
Aqueles estranhos segundos que sucedem o despertar de um sono profundo, uma desorientação, o desassossego de não se sentir no controle das próprias faculdades, vertigem de ter acordado de uma quase-morte, simulação noturna de eutanásia, um espelho destroçado cujo reflexo não se percebe.
Publicado por P. R. Cunha / 18 de julho de 2021
Crimes menores (VIII)
O silêncio
indiferente —
a mais devastadora
das reações.
Publicado por P. R. Cunha / 17 de julho de 2021
Arquipélago, ou a importância da ausência
Não raro me pego a pensar no meu pai. No que restara dele, no caixão, no último terno que vestira — e que há muito já deve ter sido devorado pela terra. Paul Auster escrevera sobre a condição dos que ficam, e como é inquietante o desvanecimento.
Esquecemos aos bocadinhos: o cheiro, as mágoas, o sorriso, os livros que a pessoa gostava de ler, se preferia chá ou café. Lutamos para que a memória permaneça, para que o tempo não a desmantele por completo.
Eu cá também achava que meu pai era invencível, imune ao mundo, como se nada pudesse detê-lo. A tradicional imagem do pai-herói, acima de tudo e de todos.
Desde que meu pai morreu percebo também este desconforto — um desconforto comum aos exilados: sensação de perigo iminente, ameaças (reais e/ou imaginárias), não se sentir em casa em parte alguma, angústia que não passa, sempre à procura de não-se-sabe-ao-certo-o-quê.
(…)
A verdade é que os fantasmas retornam de diversas maneiras.
Publicado por P. R. Cunha / 16 de julho de 2021
Terminais — onde se conta o segredo de um náufrago argentino com pé na cova
Um escritor argentino bastante premiado está deitado no leito de morte. O editor chega para visitá-lo, ao que o moribundo pede para que o velho amigo se aproxime, pois pretende confessar-lhe algo antes de partir. Ofegante, o escritor então diz que nunca leu Jorge Luis Borges, jamais sequer segurara um livro de Borges, sim, Borges sempre fora um estranho, um fantasma, um fardo. Após balbuciar essas palavras, o escritor fechara os olhos e morreu. O editor — compreende-se a repulsa que experimentara — fazia conchas com as mãos, colocando-as perto das orelhas, como se não tivesse escutado o que o escritor confessara. Mas ele escutou. Escutou direitinho.
Publicado por P. R. Cunha / 15 de julho de 2021
Barco de papel — onde P. R. Cunha explica que depois de um tempo sereno e de grande calmaria, uma tempestade violenta maltratara o sossego de determinado escritor
Ai!, ai!, a minha biblioteca. Ai!, ai!, os meus livros naufragaram. Abismado, o escritor observa aquela quantidade absurda de obras encadernadas indo, como costuma dizer-se, por água abaixo.
Poderia ser um naufrágio simbólico, metafórico.
Em momentos de pouco entusiasmo, por vezes olhamos para a nossa biblioteca e não vemos sentindo no acúmulo desacerbado de ideias alheias.
Um pensamento indecoroso a fantasiar secretamente as ruínas desses objetos retangulares que metem caraminholas na cabeça.
Não obstante o imaginário melancólico: a dor, o desespero, mostra-se (e sente-se) real. Ainda mais quando dessa frota à deriva participam também os livros que o próprio escritor publicara — os tais filhotes.
A título de dramaticidade, se é que isto ainda se faz necessário, acrescento ao sabor da corrente as obras inacabadas do escritor, amontoados de papéis avulsos, frases incompletas que sempre dão para o nada.
Eis que sem aviso prévio, como é da praxe nestas circunstâncias, levantou-se uma terrível tempestade e o vento irascível soprando nenhures os manuscritos que jamais serão lidos por almas literárias.
O escritor atabalhoado debruça-se sobre a papelada, tentando salvar o que pode.
Publicado por P. R. Cunha / 14 de julho de 2021
Terreno rochoso
Estás deitado na caverna. Sentes-te seguro, poder-se-ia dizer até que aproveitas de uma qualquer felicidade. O distanciamento permite que tu baixes a guarda. Mas as feras continuam a vigilância.
Quanto tempo dura um refúgio?
Publicado por P. R. Cunha / 13 de julho de 2021
Sintaxe dos modos
A famosa fábula na qual observam a sra. Centopeia a caminhar com tamanha desenvoltura aquelas incontáveis patinhas, e numa altura perguntam: mas, sra. Centopeia, tem aí um bocado de patas, como consegue movê-las sem tropeçar? Ao que a sra. Centopeia, que nunca havia pensado nisso (ela apenas caminhava), agora não consegue fazê-lo, pois deixara de ser, como se diz, um movimento intrínseco, natural.
Pois eu cá acredito que os escritores também precisariam de ter imenso cuidado ao analisarem com profundidade a própria fazenda linguística. As regras gramaticais são as patinhas, e se tomam muita consciência delas: a caneta hesita, cambaleia, leva tombos.
Publicado por P. R. Cunha / 12 de julho de 2021
Retornar, é atroz
Semana passada, falaste demasiado.
Publicado por P. R. Cunha / 11 de julho de 2021
Os excessos de oscilação
¶ Concordas com o adágio que diz que só se escreve bem a respeito de determinadas cidades quando se está distante delas. Depois de quase doze anos, começas enfim a sentir vontade de escrever algo aproximadamente sério sobre quando viveste em São Petersburgo.
¶ O gigantismo russo (em música, literatura, artes visuais [etc.]) sempre te intimidou muitíssimo.
¶ À medida que o ser humano vai acumulando décadas neste planeta bonito — mas também um bocado hostil —, acaba por acreditar que sabe/compreende o que é o sofrimento. Acontece que há sempre uma nova dor escondida na floresta.
¶ Não sabes ao certo o que é mais inquietante: terminar de escrever o livro que se tornara o teu mundo, o teu analgésico diário, a tua rocha; ou o desespero de lidares com a ideia de que jamais conseguirás terminar o livro, não darás conta.
¶ Numa palavra: fracasso, outra vez.
¶ A Rússia te foi um momento extraordinário, e já naquela altura percebeste que não seria o bastante, que não poderias aproveitar tudo, e que num futuro te arrependerias amargamente justamente por não teres aproveitado tudo.
Publicado por P. R. Cunha / 10 de julho de 2021
O menino
Quando o menino nasceu, parece que a mãe não tinha condições de segurar o neném, de forma que foi o avô que colocara o pequeno ser humano no colo e disse: serás grande!, um artista! E todos sabem que o avô tem esta capacidade de persuasão, alimentada pela experiência, pelos anos de batalhas e sofrimentos: viu um bocado. As pessoas costumam — e querem — acreditar na chamada sabedoria dos mais velhos. O avô, em suma, deve saber o que diz. Não à toa, alimentavam imensas expectativas, achavam mesmo que o menino seria diferente, que se destacaria. Deram-lhe a melhor educação, colocaram-no em contato com a chamada literatura importante, o menino leu Montaigne, Nietzsche, Melville, Walter Benjamin, Canetti, Stendhal, visitou o Louvre, o Hermitage, o Rijksmuseum, o Tate, o menino aprendeu a pintar, a tocar piano, alfabetizou-se em inglês, falava russo fluentemente, citava os gregos de memória. O agora ex-menino recorda-se de tudo isso com certa dificuldade, como se fosse uma alucinação, uma história inventada, sentado no sofá verde da sala, abrindo garrafa de cerveja, o barulho estridente da tampinha a fazer ecos no apartamento vazio.
Publicado por P. R. Cunha / 9 de julho de 2021
Diabo à solta — mínimas & máximas
Para fugir algures, é necessário antes sentir-se encurralado, como num cativeiro. Se algo-e-ou-alguém não está perseguindo, ou melhor, caso não haja uma fonte concreta de ameaça, a fuga ganha contornos paranóicos.
É um pouco como a solidão, que só faz sentido àqueles que vivem com outras pessoas.
Descobrir — e, principalmente, aceitar — que nada tem importância, que nada precisa de ter explicação (ou a indiferença cósmica [niilismo à moda Lovecraft]).
Um sentimento tão banalizado e desgastado como, digamos, o «amor»…, já não parece possível amar sem levar em conta a influência das séries e do cinema. Fulano nunca será tão romântico quanto o personagem daquele filme, e a moça definitivamente não tem os cabelos ondulados da atriz Netflix.
Afogar-se numa doença séria ou perder alguém essencial para reajustar a bússola. Mas são poucos os que levam tais lições dolorosas ao convés; preferem enterrar tudo no porão do navio.
Aos olhos do tubarão, é o mergulhador a criatura esquisita.
Publicado por P. R. Cunha / 8 de julho de 2021
Locomotiva
Martinescu acorda de um sono intranquilo e sem trocar o pijama se arrasta até à cozinha, onde a esposa está sentada tomando o chá de camomila, segurando a chávena como se a porcelana fosse um amuleto aborígene que a recolocaria de volta aos trilhos. Ela observa a figura ausente do marido, um autômato avariado a passar geleia de framboesa no dorso do pão. A bem da verdade, ela tem observado há algum tempo o naufrágio daquele homem que um dia fôra charmoso e sedutor, uma grande promessa literária do país, chegaram mesmo a compará-lo com Carver, Maupassant, com os russos do século dezenove — Martinescu é o nosso Gógol —, mas que depois do sucesso do primeiro livro não conseguira escrever uma linha sequer. A lenta decadência do marido, ela pensa enquanto recoloca a chávena sobre a superfície porosa da mesa, uma obsessão, dir-se-ia, Martinescu a romper (se é que já não rompera todos) os últimos vínculos com o mundo real, entornado o pequeno-almoço às quatro e quinze da tarde.
Publicado por P. R. Cunha / 7 de julho de 2021
Jaula(s)
¶ O prazer de ler Thomas Bernhard, Cioran, Schopenhauer, Mencken, Karl Kraus… consiste em lidar com seres humanos tão rabugentos e desesperançosos quanto eu.
¶ Pessimismo alheio a servir de tônico.
¶ Percebo que algumas pessoas gostam da minha «poesia» justamente por eu não saber fazer poesia. Dizem-me que quebro certas expectativas, que nada é lá o que parece.
¶ Já escrevi algumas vezes sobre a violência da renúncia. Aqueles que participam a sentir ojeriza por quem decide não participar — e aqui poder-se-ia escolher a congregação de vossa preferência: religiões, partidos políticos, esportes, engajamentos sociais, etc. O renunciante incomoda porque traz à luz o germe inquieto da dúvida. «E se tudo isso em que acredito não passasse de uma ilusão?» Ou pior: de uma farsa.
¶ Quando alguém me chama para estar fora, minha consciência diz não, mas minha voz responde sim. É uma espécie de obstinação doentia: ir de encontro às minhas inclinações domésticas, sistematicamente.
¶ Afundar-me na lama, humilhar-me, explodir, arrepender-me, voltar ao interior da cave, catando as próprias migalhas, respirar, recompor-me — eis o ciclo vicioso.
Publicado por P. R. Cunha / 6 de julho de 2021
Diálogos avulsos ao pequeno-almoço
Café duplo, granola com leite sem lactose, bolo de milho, suco de laranja, suplemento vitamínico, copinho de água gaseificada.
Mantém-te calmo… // …o Instagram, à laia de exemplo. Costumo comparar o Instagram aos procedimentos de raios X, quando apontam uma máquina de Röntgen para o nosso próprio corpo. Se ficamos ali brevemente, a máquina pode ajudar a descobrir se existe algo de errado com as nossas entranhas. Os médicos apreciam muito esse tipo de auxílio, aquelas imagens esquisitas dos nossos ossos etc. etc. Mas, se passarmos dos limites, o ambiente se torna radioativo, os raios catódicos nos causam cancros e não só. Como a grávida de Céline. // Céline a comparar a fazenda da obra com uma grávida que precisa de passar pelos raios X? // Tu sabes do que estou falando. E para ele os corpos radioativos seriam as opiniões alheias, o escrutínio púbico, o veneno dos críticos. Não colocar o livro, a obra em gestação, dentro desses espaços tóxicos, porque faz um bocado mal ao bebezinho que está para nascer. // Ou as pessoas que utilizam o próprio Instagram para dizer o tanto que o Instagram é prejudicial… // Não sei o que pretendem com isso. // Como aqueles jovens anarquistas a lanchar ao McDonald’s, bebendo a Coca-Cola. // Vê lá este estranho mundo. // De momento isso é moderno. // Tudo muito difícil, complicado mesmo.
Publicado por P. R. Cunha / 5 de julho de 2021
Lúgubre, ou o Atormentado
Escrever não por prazer mas por causa dos dissabores, não para abrir a mente mas para cerrá-la, não para exorcizar mas para possessões. Reler algo que escrevi há muito, desassossegar-me e tirar proveito desta frustração. Ter grandes dores de cabeça, decepções, um certo desprezo por quem assobia pela manhã — a felicidade matutina, aliás, sempre me foi um mistério. Temperamento incerto, bipolaridades, inconstâncias (em todas as esferas da vida humana), uma grave carência de habilidade social, impaciente, sem nenhuma inclinação para fingir que gosto dos lugares (e das pessoas) que não gosto. Depressivo, hipersensibilidade, um medo irracional de besouros. Um tipo de nuvem cinza na margem do oceano que subitamente cresce até cobrir toda a praia. Paranoias, lapsos mentais («estou aqui num mundo de mentiras»), objetivo, totalmente compenetrado quando me proponho a fazer algo (beirando a obsessividade). Por vezes, um planeta demasiado independente para que possam aterrar nele; noutras vezes, divertido, expansivo, com a vista aguçada para os pormenores. Satisfeito quando isento das comunicações modernas, ciente de que, sim, a solidão faz acontecer coisas.*
* Os ataques de solidão aguda são parte essencial da escrita, como diria Kipling.
Publicado por P. R. Cunha / 4 de julho de 2021
Tesoura nas nuvens
Condição desconfortável esta de estar-se à procura de algo que falta dentro de si e nunca encontrar nada além de becos sem saída. Escrever, filosofar às paredes, tirar fotografias, compor canções que não serão escutadas, fugir um pouco de tudo nas profundezas de uma piscina a praticar a natação. Nenhuma diferença se o mundo existiu, ou se nada existira, se não passo de um algoritmo, se universo holográfico, teoria das cordas. Tornar-se zero, um zero absoluto: -273,15 ºC. Estou na rede a ler Ballard e sinto algo próximo de um contentamento (mesmo que o alívio permaneça por apenas alguns fugidios segundos). Uma arara com voz de barítono atravessa o céu vespertino, julgo que em busca dos filhotes — pois era assim que a minha mãe gritava quando eu me perdia no parque de diversões.
Publicado por P. R. Cunha / 3 de julho de 2021
Digestão
Isto te acontece desde miúdo. Há uma tarefa a ser feita, bastava que sentasses para começares e eventualmente terminare-la. Mas és um bocado teimoso e vais por aí metendo-te noutras coisas. Estás nas tintas para a tarefa.
A angústia em Kierkegaard: um desejo pelo que se teme. Certa necessidade «intrínseca» (da espécie humana, dir-se-ia) de fazer parte, estar presente, fazer marcas — no coração das pessoas, na superfície da terra, numa folha de papel, etc. Queres deixar pegadas, provas de que andastes por aqui, mesmo que a tentativa custe a tua sanidade e/ou o teu sossego.
Uma vida intensa nem sempre é uma experiência prolongada. Passa-se algo parecido com as estrelas — quanto mais maciças, mais rapidamente se consomem. As estrelas grandes e intensas duram pouco, deixam rastros fantasmagóricos de poeira e partículas elementares de energia luminosa. As pessoas grandes, também.
É necessário sair do próprio sítio para falar de outro sítio? (Angústia do pertencimento [ainda é Kierkegaard].) Agorafobia. Paul Theroux teria exposto desta maneira: é necessária uma longa viagem para a vividez da experiência?
Theroux se recorda também de que D. H. Lawrence passara dez dias com a mulher na Sardenha e escrevera um volumoso livro acerca disso. Marco Polo esteve vinte seis anos na China. Kipling umas poucas horinhas em Rangun, nunca foi a Mandalai.
Não é, portanto, o tempo em que passamos na estrada, mas como passamos por ela.
Publicado por P. R. Cunha / 2 de julho de 2021
Coisa que não deve ser sabida por outrem
Um segredo deixa de sê-lo a partir do momento em que é compartilhado com alguém — mesmo que seja alguém de, como se diz, confiança. Tu tens aí umas informações sigilosas, assuntos confidenciais, e não consegues sossegar o facho. Uma força/vontade maior faz com que tu abras a matraca (o que fazemos para receber as recompensas da praxe [é constrangedor]). Dali a pouco o teu «segredo» está em domínio público, tudo por água abaixo. Então tu te arrependes imenso, explicas que não tinhas a intensão, etc. Mas a verdade é que poderias ter ficado caladinho, na tua, mas não ficaste.
Publicado por P. R. Cunha / 1º de julho de 2021
Megalópoles
Levamos em consideração o que Kafka escrevia e percebemos que realidade de mais realmente sufoca. A sobredose informacional premeditada por McLuhan, Debord, Baudrillard et al. À noite, antes de dormir, tentas te desligar, mas a enxurrada de imagens e vozes prevalece. No dia seguinte, o ciclo recomeça e tu bem pareces aquelas cidades que nunca dormem. Precisamos (precisamos?) nos perguntar também se essas observações pessimistas adiantam alguma coisa para o juízo comum: o mundo lá fora continua a produzir (e a reproduzir-se); as máquinas de lavar, as televisões, os telemóveis, as aeronaves, as prateleiras dos supermercados continuam cheias. Participar do espetáculo — não como domador, mas antes como malabarista — pode querer dizer muito, ou pode não querer dizer nada.
Publicado por P. R. Cunha / 30 de junho de 2021
Tonificantes (para recuperar o apetite)
¶ E, então, eis que tu também te apegas às pequenas distrações para justificares o teu vazio. Como naquela citação de Pascal: que toda a miséria dos homens vem duma só coisa, que é não saberem permanecer em repouso, num quarto, sozinhos.
¶ Incapaz de encontrar novos inimigos, tu te voltas contra ti mesmo.
¶ Depois de algumas horas, deitas na cama, exausto, um bocado entediado, e perguntas se estás desperdiçando a própria vida ou o quê…
¶ Pode uma imagem ser bonita e atroz ao mesmo tempo?
¶ O cérebro tenta seguir os teus afazeres externos. Se estás a correr para todo o lado tal e qual barata tonta, o cérebro tropeça atrás. Ao que parece, o colapso ocorre quando um não consegue acompanhar o outro. Como dois bêbados a dançar uma valsa fora do tom.
¶ Não raro, tu gostavas de deitar o teu cérebro para a fogueira. Mas isso seria um disparate, obviamente.
Publicado por P. R. Cunha / 29 de junho de 2021
Confeitaria Peixinho

¶ Tens aí apenas um cérebro e incontáveis interesses. Precisas focar-te num único interesse, do contrário tu te perdes.
¶ Tornar-se mais adaptado ao mundo moderno é de certa forma flertar com o mundo moderno. À distância, sem nenhum elemento afetivo, utilizando o colete de salvação.
¶ Andar numa linha reta, do ponto A ao ponto B, sem percalços, sem os chamados «buracos na estrada»…, isto é geralmente impossível.
¶ São antes de tudo conjuntos de tentativas, sintonias finas, ajustes de botões. Revira o obturador até perceberes uma configuração adequada.
¶ Nunca é perfeito, apenas aceitável o bastante.
Publicado por P. R. Cunha / 28 de junho de 2021
Crimes menores (VII)
São as pequenas coisas,
sempre as pequenas coisas.
Publicado por P. R. Cunha / 25 de junho de 2021
Breve inventário de mim mesmo
35 anos e oito meses, um homem maldito, confuso, de humor estranho (cada escritor é um elenco de escritores), sonâmbulo, obcecado, dividido entre o estar e o não-estar, inconstante, feroz, taciturno, mais apegado aos projetos impossíveis do que aos viáveis, corrompido, uma vaga sensação de culpa, um vestígio de poderia-ter-feito-mais-e-não-fiz, músico falhado, fotógrafo falhado, ser humano falhado etc.
Publicado por P. R. Cunha / 24 de junho de 2021
Aquele que viveu através das palavras
De todas as personas que me propus a ser, a de escritor sempre me foi a mais prazerosa. A começar pela natureza da empreitada: inventiva, predominantemente solitária, reflectiva. É verdade que por vezes me sinto um bocadinho exausto e me retiro a uma, como se diz, inação monumental…, mas isso tem menos a ver com a escrita do que com as minhas instabilidades criativas/psiquiátricas. Dentro de um texto literário, pode-se agir como quiser, vestir máscaras, retirá-las quando necessário. E sentir-se demasiado poderoso ao perceber o demônio da literatura mergulhando no tinteiro: abraçá-lo, se calhar.
Publicado por P. R. Cunha / 22 de junho de 2021
Reconhecimento de padrões
5h20 da manhã;
inverno em Brasília —
tosta-mista
com café peruano.
Talvez a hora mais
misteriosa do mundo.
Há uma certa inclinação ao esquecimento — e um dos sedativos mais utilizados para este tipo de fuga é a própria bebida alcoólica. Basta uma despretensiosa dose num período, como costuma dizer-se, conturbado, o álcool anestesia enquanto o bicho da angústia (uma mistura de Kierkegaard, Heidegger e Sartre) dissolve-se dentro da substância etílica. Na noite seguinte, impelido por velhos e novos tédios, por outras faltas de rumo, enchemos o copo novamente até sentirmos o momentâneo efeito do analgésico. É como se, agora, somente a bebida fosse capaz de oferecer o brevíssimo átimo de alívio. Porém, permanece a certeza de que, cedo ou tarde, a avalanche de negações que se acumula dentro de si derrubará os frágeis muros do castelo, carregando tudo consigo, inclusive as árvores.
Publicado por P. R. Cunha / 21 de junho de 2021
A pedido do síndico, as escadas de incêndio foram recentemente pintadas de vermelho
Silas estava mergulhado na banheira quando ouviu as primeiras batidas na porta. Ele afundou a cabeça na água morna para se livrar da espuma que se agarrara às orelhas e levantou-se num só movimento para buscar a toalha. Mais duas ou três batidas na porta, desta vez eram batidas impacientes e o barulho ecoara pelo apartamento com pouca mobília. Silas amarrou a toalha na cintura, conferiu a barba no espelho embaçado e com voz calma, quase aos sussurros, disse que estava a caminho. De certa forma, já esperava por aquelas batidas, achava até que tinham demorado mais do que previra. Porém, quando finalmente girou a chave na fechadura e abriu a porta, Silas arregalara os olhos castanhos, incrédulo diante do que acabara de ver.
Publicado por P. R. Cunha / 19 de junho de 2021
Às vezes o poço é mais fundo do que parece
Achamos que conhecemos as pessoas, insiste Silas na sacada do apartamento, achamos que conhecemos nossos pais, nossos irmãos, aqueles com quem nos relacionamos, nossos melhores amigos, esposas, alimentamos ilusões a respeito dessas pessoas, dizemos que sabemos do que gostam, do que odeiam, a quais programas de TV preferem assistir, sentimo-nos à vontade perto delas, baixamos a guarda, despreocupados, até chegar o dia em que abrimos o jornal, ou lemos algo a respeito na internet, talvez num grupo de WhatsApp, até chegar o dia, portanto, em que descobrimos alguma atrocidade cometida por alguém que achávamos que conhecíamos, ou melhor, que tínhamos a certeza de que conhecíamos, um irmão criminoso, um grande amigo psicopata, uma ex-namorada que torturava animais domésticos, e todas essas coisas estavam a acontecer bem debaixo do nosso nariz, nunca havíamos suspeitado de nada, reflete Silas enquanto joga o paninho ensanguentado na lixeira coletiva do condomínio.
Publicado por P. R. Cunha / 18 de junho de 2021
Os elevadores que demoram a chegar causam angústias indizíveis
Olhamos para os outros moradores do condomínio e o que vemos? Que têm olhos, boca, que alguns começam a ficar calvos, mulheres com trajes desportivos, homens com meias que vão até aos joelhos. Mas nunca sabemos exatamente o que se passa dentro dessas pessoas — os segredos que guardam, as perversões, neuroses, raivas domesticadas ou mesmo uma sede de vingança que não fôra devidamente reprimida. Cada um procura manter vida sexual ativa, dedica-se a certas ocupações, divide os dias com pequenos hábitos excêntricos. Seres humanos com lacunas, rostos perplexos e vazios, poder-se-ia dizer, como se tivessem sido infectados pela atmosfera glaciar do prédio de apartamentos. Os moradores frequentam as áreas comuns do condomínio tentando manter as aparências. Desconfiados, por vezes na defensiva, como se a qualquer momento pudesse surgir um animal irascível para atacá-los. Nada é o que parece ser, reflete Silas enquanto limpa com um paninho molhado as manchas de sangue no parapeito da sacada do próprio apartamento. Os moradores voltam para o saguão de entrada, e enquanto esperam pelo elevador percebem que a existência deles não tem propósito algum, que o tédio, o abatimento, a ausência de realizações prevalecem. Procuram manter a calma, evitam transparecer qualquer angústia diante dessas constatações, fingem que está tudo bem, apertam o botão e sobem para os respectivos andares. Em suma, para o visitante distraído, este condomínio pode até sugerir um habitat pacato e convidativo. Porém, diz Silas para consigo mesmo enquanto torce o paninho ensanguentado perto do ralo, por trás dessa fachada de boa-vizinhança há sempre algo de muito sórdido acontecendo.
Publicado por P. R. Cunha / 17 de junho de 2021
Muitas glórias à estátua do fundador, boneco de bronze enferrujado
Agora que podaram a árvore, Silas consegue ver melhor a estátua do fundador do condomínio, uma escultura absolutamente grotesca. Silas sentado no sofá mastigando o pão com mortadela, a parte de trás da estátua roliça virada para o apartamento dele. Sorveu o café e foi até à sacada espreguiçar-se. Notou que, lá embaixo, dois homens de moletom apontavam os próprios telemóveis para as janelas do prédio. Silas levantou os braços, indignado, como quem dissesse: que porra vocês pensam que estão fazendo? O homem da direita abaixou o capuz, colocou o dedo do meio em riste e com cara de cavalo ergueu-o várias vezes para Silas. Continuaram filmando. Silas se esticou no parapeito para olhar os andares de cima, a ver se algum apartamento estava pegando fogo, ou mesmo se alguém não estaria prestes a pular. Os suicídios no condomínio, por mais que evitassem falar a respeito disso, eram incomodamente corriqueiros. Uma pomba modorrenta pousou na estátua do fundador e sem demonstrar qualquer constrangimento fizera as chamadas necessidades fisiológicas no ombro do grande boneco de bronze. A pomba fugiu depressa assim que ouviu os três tiros de espingarda.
Publicado por P. R. Cunha / 16 de junho de 2021
Crimes menores (VI)
Diante de absurdos,
dores intraduzíveis,
aprendemos a
ficar calados.
Publicado por P. R. Cunha / 15 de junho de 2021
Com o tempo, o barulho da fábrica se transforma num ruído branco e os moradores do condomínio conseguem dormir sem grandes aborrecimentos
O que Silas acha ou deixa de achar, o que ele pensa — mesmo que da forma mais discreta, sutil —, em suma: o que Silas tem a dizer sobre as regras do jogo, um jogo do qual ele decidira não participar (pelo menos não diretamente), em que os competidores documentam a si mesmos, cada passo dado, cada pedacinho de torta mastigada, o pôr-do-sol-mais-laranja, imagens com filtro sépia à guisa de maior dramaticidade. Três dias sem escrever, ele pensa, 72 horas sem tocar no papel etc., três dias que deveriam ter dado fôlego a Silas, um novo ânimo, mas o que se vê, ou melhor, o que se sente é uma profunda inquietação, uma espécie de deslocamento, como se alguma borracha gigantesca o apagasse aos poucos. Podaram a árvore que estava a obstruir a fachada do prédio. Os participantes do jogo, portanto, como diretores de filmes particulares, sempre a segurar uma câmera miúda, que cabe dentro do bolso, constantemente conectada à internet. Inclusive, uma das regras mais importantes é o estar-se acessível a tempo inteiro. Quando um participante não está apontando a câmera para este ou àquele lugar, ele deixa o aparelho muito perto de si, mesmo que seja o casamento do melhor amigo, ou o enterro da vovó Miranda, ou se alguma pessoa está a conversar com o participante num, digamos, jantar, a pessoa tenta manter contato visual com o participante, sem sucesso, pois o participante manuseia despudoradamente o próprio device em busca de estímulos mais gratificadores do que um jantar com outro ser humano. Cada participante é, como estávamos a dizer, um diretor de microfilmes particulares, cada um a achar que está a produzir o melhor microfilme, que interpreta o papel do melhor protagonista. Um microfilme mudo, para todos os efeitos, nenhum participante a prestar muita atenção no microfilme do outro — a não ser que seja conveniente, a não ser que exista algum interesse (implícito e/ou explícito). Interação parasitária. E, como era de se esperar, reflete Silas à janela com vista desobstruída, como era de se esperar, aquele que decide não fazer parte do jogo, não seguir as regras, não carregar consigo uma câmera de registros contínuos acaba por se meter numa quixotesca busca por realidade, qualquer que seja, uma simples, e crua, e espontânea realidade. Difícil encontrar o real, diz Silas enquanto diminui o volume da televisão, quando tudo ao redor não passa de re-construções manipuladas, uma cacofonia de idioletos. Silas a viver numa ilha, uma ilha vertical de quinze andares, com varandas voltadas para uma montadora de automóveis.
Publicado por P. R. Cunha / 14 de junho de 2021
A fumaça alongada da aeronave confunde-se com as nuvens numa manhã de céu azul
Aconteceram coisas: foram morar juntos, fizeram planos, acumularam lentas feridas, e, depois, como se tudo tivesse sido apenas uma farsa, nunca mais se viram. O de sempre. Televisão ligada à meia-altura. Silas segura a chávena de café perto da janela aberta. É a quinta aeronave que passa em menos de dois minutos. Se calhar, alteraram a rota dos voos, ele pensa, bebe um bocadinho do café. Aterragens, descolagens, sumir ao horizonte — os jatos e as pessoas operam de maneiras mais parecidas do que imaginamos. A cama desarrumada atrás de Silas, antigamente ele se importaria. Agora não faz sentido se importar. É só uma cama, com cobertores, travesseiros. Parece a cena de um crime. O barulho das turbinas a competir com a fuselagem do avião, corrida entre som e luz, efeito Doppler. No noticiário, repórter comenta sobre o fechamento de outro shopping mall nos Estados Unidos. Silas tateia em busca dos óculos. A repórter tem os cabelos amarelos. Uma crise sem precedentes, diz a repórter. J. G. Ballard escrevia que os shoppings eram a meca da modernidade. Também falara sobre hotéis abandonados, piscinas vazias, estacionamentos gigantescos, acidentes automobilísticos, corpos mutilados, sem propósitos. Ballard não viveu para contemplar as ruínas das igrejas do consumo, que estão a ser substituídas pelas megalojas virtuais, vitrines eletrônicas a um clique de distância. Silas tira os óculos, pressiona os olhos com o indicador e o polegar da mão direita.
Publicado por P. R. Cunha / 11 de junho de 2021
Crimes menores (V)
Produtos
feitos de imagens
— fragmentos
e o tempo,
sem exceção,
desbota-nos todos.
Publicado por P. R. Cunha / 10 de junho de 2021
Crimes menores (IV)

Um simples encontro ao café
nunca será somente um
simples encontro ao café
se observarmos com a devida atenção.
Eis aqui quatro figuras
estáticas, unidimensionais.
O cinzeiro Ricard mostra-se
repleto de guimbas,
a dizer que, no momento da fotografia,
a conversa já havia se adiantado.
As poças de licor sobre a mesa,
os copos preenchidos recentemente,
uma conversa calorosa, sem dúvida,
a garrafa que vai para o último terço,
os olhos baixos e assustados
dos dois rapazes ao meio,
a figura filosófica da moça
em primeiro plano.
O homem à direita, de óculos,
é Guy Debord.
Publicado por P. R. Cunha / 9 de junho de 2021
Crimes menores (III)
Ele diz: sai depressa do meu coração!
Ela diz: eu não…
Publicado por P. R. Cunha / 8 de junho de 2021
Crimes menores (II)
A mulher com luneta
no alto do farol desativado
aponta para o barco.
Um fantasma
que se afasta.
Talvez não passasse de um sonho.
Publicado por P. R. Cunha / 7 de junho de 2021
Crimes menores (I)
No parquinho das crianças —
sapo verde.
Apesar de não se mexer,
o sapo parece feliz.
Publicado por P. R. Cunha / 6 de junho de 2021
Crimes menores (introdução)
Algumas palavras geram
ideias que nos levam
sempre mais longe
do que esperamos —
nenhum escritor
consegue permanecer
estático por muito tempo
ou escreve
ou desaparece aos poucos
de forma que
a cada projeto finalizado
não demora muito e
lá está ele novamente
a começar algo novo
a meter-se em
como se diz
novas empreitadas.
Solitude:
condição necessária
para as fazendas criativas
mesmo que seja solitude
interna um isolamento
de dentro para fora.
Sozinho rodeado de pessoas.
Escrever & descrever &
reescrever o caráter efêmero
da vida
e não só.
Crimes menores.
Publicado por P. R. Cunha / 5 de junho de 2021
schopenhauer por um sonho (parte final)
terminemos este schopenhauer por um sonho com mais uma metáfora aquática pois como um judicioso antigo certa vez dissera só é boa aventura aquela em que nos abandonamos completamente sem a necessidade de formar vínculos nem de competir com os outros imaginemos portanto um homem ele escutou o barulho da campainha e pulou da cama alguém está na porta ele sussurrou para si mesmo e com olhos esbugalhados entreabriu as cortinas para ver quem estava lá fora o homem então fugiu pelas traseiras da casa e chegou às docas e você está sentado na balaustrada do cais lendo ricardo piglia enquanto observa o homem de pijamas correndo decididamente para a oceano havia barulho o rosto do homem se tornou turvo como quem teme se arrepender mas não era mesmo preciso tornar as coisas tão complicadas o homem saltou no mar e algumas bolhas vieram à superfície
Publicado por P. R. Cunha / 4 de junho de 2021
schopenhauer por um sonho (parte décima oitava)
à medida que você envelhece você nota um padrão uma tendência se assim se pode dizer você percebe que os mortos são desprezados muito rapidamente numa manhã ao cemitério familiares & amigos choram sobre o caixão fazem discursos sentimentais cantam homílias para dali a algumas semanas já nada se falar a respeito do defunto tudo volta ao normal como se o morto não tivesse existido será um teatro você se pergunta uma encenação uma convenção social e por que esquecemos os mortos tão depressa você também se pergunta talvez porque os mortos não sejam mais parte da engrenagem não trocam não movimentam a economia não cooperam não influenciam não acrescentam em suma não deixam marcas são como aqueles retratos que costumamos guardar no baú e que se desmantelam com as intempéries com o passar dos anos fotografias negligenciadas os mortos e o que fica é esta consciência de que ao fim e ao cabo somos todos esquecíveis numa altura achamos que somos imprescindíveis essenciais para logo depois nos depararmos com a indiferença com o menosprezo nunca fomos realmente imprescindíveis nunca fomos realmente essenciais e você se apercebeu disso depois de comparecer a incontáveis enterros a mesma ladainha de sempre as mesmas lágrimas a mesma indiferença e aqui não deixa de ser sintomática a constatação de que cada vez mais tratamos os vivos da forma como tratamos os mortos isto é abandonamos os vivos como abandonamos os mortos e não raro tratamos melhor as máquinas tecnológicas do que os próprios humanos basta analisar o que acontece quando alguém esquece o telemóvel em casa e a vida desse alguém como que perde o sentido e esse alguém quer voltar ou melhor precisa de voltar para casa antes que tenha um colapso nervoso ou quando vamos almoçar com alguém e esse alguém tira o telemóvel do bolso e nos sentimos sozinhos inúteis como se o alguém estivesse em outra dimensão e não é nenhuma coincidência que estejamos a falar das máquinas com termos cada vez mais humanizados como quando o computador não quer ligar e dizem que ele morreu os automóveis também se cansam e precisam de cuidados de um check-up ou quando levam os aparelhos ao hospital dos celulares porque o telemóvel está doente necessita de remédios precisa de ser ressuscitado caiu e se machucou pode até soar cômico mas é o que vemos acontecer por aí todos os dias e certamente você acha melhor enfrentar esses factos por mais perturbadores que sejam do que viver num estado de negação
Publicado por P. R. Cunha / 3 de junho de 2021
schopenhauer por um sonho (parte décima sétima)
o filósofo não deixa de ser também uma espécie de mergulhador um freediver então suponhamos que você esteja mesmo a bordo do navio e para ilustrar as suas ponderações você se joga ao mar sente o brando abraço inicial das ondas percebe o próprio corpo descer sem notar ainda o que essa queda significa visto que este mergulho como o mergulho filosófico que você costuma praticar este mergulho aquático lhe proporciona igualmente descobertas fascinantes ao mesmo tempo que lhe empurra para baixo o mergulho filosófico e o mergulho aquático portanto são formas perigosas de se comportar você pensa a respeito enquanto avança ao escuro abismal e toma consciência das ameaças e apesar do desassossego você se permite ir cada vez mais ao fundo sem nenhum localizador nenhum ponto de referência nenhuma corda para segurar e a sua cabeça se dilata tal e qual acontece quando você mergulha nas ruminações existenciais e seus pulmões se contorcem com a pressão claros indicadores dos riscos que esses mergulhos oferecem levando-no aos limites da sua resistência e agora uma modesta diferença de profundidade bastaria para marcar a separação irremediável entre vida & morte ao passo que você solta bolhas pelo nariz sacode os braços para manter o equilíbrio impulsiona violentamente o corpo para cima e retorna ao navio ofegante pensa que subir à superfície é tão arriscado quanto descer às profundezas pois cá em cima as coisas podem ser tão capciosas quanto lá no fundo pois uma simples confraternização ou um almoço em família um encontro de amigos são sempre ocasiões em que você não se faz entender completamente em que você joga para o alto toda aquela construção pessoal/artificial que desenvolvera no conforto da sua solidão todo o mito que montara para si mesmo e ao sair você perde o controle como já lhe falei diversas vezes mas você é teimoso você não me escuta você perde a autonomia fica à mercê da interpretação de cada um através da lente de cada um do contexto de cada um dos preconceitos de cada um e a imagem que você transmite não é bem aquela que você gostava de transmitir é antes uma simulação um produto do que as outras pessoas esperam ver em si e você não pode com esse caleidoscópio e a vontade que você tem é de voltar correndo ao esconderijo já falamos sobre isso também antes que cometa alguma bobagem você sabe que tem pavio curto que não é como aqueles sujeitos ponderados que conseguem manter a compostura você é uma granada prestes a explodir você leu schopenhauer de mais você leu nietzsche de mais você leu cioran de mais e teme aquele derradeiro limiar quando o filósofo cambaleia pela calçada abraça o cavalo que está sendo chicoteado pelo cocheiro chora abraçado ao cavalo diz para consigo coitadinho do cavalo pobre cavalinho um evento que marca enfim a transposição de fronteiras o filósofo que antes era tido apenas como um excêntrico ruminante agora será perseguido como um louco
Publicado por P. R. Cunha / 2 de junho de 2021
schopenhauer por um sonho (parte décima sexta)
a maior prova da confiabilidade de um navio é o modo como ele suporta águas irascíveis e da mesma maneira ao que parece só confiamos realmente em determinadas relações depois que ela sobrevive às tempestades esse é um pensamento interessante você diz para consigo e uma simples inspeção nos arquivos das suas travessias bem-sucedidas ou fracassadas algo minimamente consciente seria o bastante para você perceber que o universo jamais conspirara contra ou a seu favor que a bem da verdade o universo nunca lhe deu a mínima conquistas e derrotas marcadas apenas pelo cajado indiferente da aleatoriedade tudo não passara de meras circunstâncias de pura sorte e/ou azar e a partir do momento em que você acertara as contas com essas conjunturas em que você se rendera ao vai-e-vem imprevisível da sua embarcação você renunciara também às ambições à competitividade desacerbada à velocidade aos holofotes você se retirara ao porão do navio e foi quando até as pequenas coisas os pequenos detalhes ganharam características gigantescas e lhe proporcionam imenso regojizo este não exigir nada de ninguém nenhuma expectativa nenhuma decepção apenas uma liberdade um alívio dir-se-ia de estar deitado no assoalho náutico ser mais um observador do que um agente ser um substantivo e não um verbo uma elipse neutra extraindo detalhes das miudezas habitualmente esquecidas e você se pergunta se isso não é a própria felicidade então o que seria
Publicado por P. R. Cunha / 31 de maio de 2021
schopenhauer por um sonho (parte décima quinta)
há alguns assuntos ou melhor algumas pendências com as quais você ainda não se resolveu completamente se é que estas coisas podem ser resolvidas completamente ou apenas mitigadas abrandadas como à guisa de exemplo a morte do seu pai você está longe de se resolver com a morte do seu pai a despeito da quantidade absurda de vezes em que você tentara e se esforçara e se esgotara para falar-escrever-gritar-desabafar a respeito disso do acidente da ausência do vazio impenetrável da vertigem dos pesadelos das negações das justificativas toscas & artificiais que você tivera de inventar para seguir em frente dos inúmeros mecanismos de defesa alguns mais eficientes outros menos eficientes não à toa você passara a transmitir uma figura retraída de animal silvestre em constante ameaça e já que estamos a tratar sobre estes temas você também não se resolvera com as decepções amorosas está tudo interligado uma complexa rede de pequenas e grandes tragédias acumuladas seus relacionamentos falhados a extensa trilha de abandonos o receio quero dizer a certeza sim a certeza de que cedo ou tarde tudo se repetirá as mesmas cenas os mesmos enredos os mesmos pores-do-sol carregados de melancolia e tédio porque essa parece ser a ordem dos fatores o curto-circuito de equívocos de promessas quebradas vãs tentativas de se desculpar um labirinto de ruas sem saída isso eis a síntese da sua existência um labirinto que ao mesmo tempo não para de se expandir e até você o suposto criador do labirinto se perde dentro dele
Publicado por P. R. Cunha / 30 de maio de 2021
schopenhauer por um sonho (parte décima quarta)
costuma acontecer depois de um prolongado período de isolamento quando você passa imenso tempo inserido na sua obra dentro do espaço geográfico do livro um universo à parte sempre essa imagem de um lugar em construção alheado de tudo-e-de-todos com limites e regras que você estabeleceu com leis & consequências próprias você se acostuma a essas previsibilidades com o poder de decisão sabe que se determinadas personagens fizerem x ou y algo f ou j acontecerá você está no controle confortavelmente no controle até que algum imprevisto lhe puxa de volta à realidade humana e você como que acorda de um sono profundo já falamos inúmeras vezes sobre essa sensação você desperta e de súbito precisa de lidar com alguma complexidade que não lhe diz respeito e seu cérebro acostumado a ditar as regras tenta agir da mesma maneira mas lá fora é outra coisa outra dinâmica outros protagonistas você não tem autonomia nenhuma você também é apenas mais um mero passageiro deslocado um equilibrista sem rede de proteção um corpo em queda e você é invadido por aquele desespero a mesma necessidade de retornar ao seu reino do faz de conta você ainda é uma criança apesar das suas possibilidades intelectuais sim você ainda é apenas uma criança impotente cobarde assustada desiludida instável encerrada numa cápsula e enquanto tenta reabrir os portões do castelo diz para consigo que podem até tirar o escritor da literatura mas não podem tirar a literatura do escritor
Publicado por P. R. Cunha / 29 de maio de 2021
schopenhauer por um sonho (parte décima terceira)
o plano desde o início era adotar a equação literária sugerida por raymond carver ou seja 1/4 de autobiografia + 3/4 de invenções = schopenhauer por um sonho porque você é um sujeito que preza pela discrição tem horror de ser fotografado evita o escrutínio público já não tem lá muitas ambições a não ser este fraquinho por sossego por uma vida pacata longe do ruído humano um esconderijo sereno eis o que você gostaria vida sem complexidades partida de xadrez perto do córrego enquanto responde à pergunta quem sou eu despretensiosamente sem preocupações teóricas sem exigências acadêmicas autobiografia ficcional é o que você está tentando explicar com essa fórmula raymond carver pois um automóvel para ser econômico é preciso de ser guiado com certas habilidades não se pode pisar fundo no pedal do acelerador para não gastar todo o gasóleo é contraintuitivo conduzir dessa maneira de forma que você não espera mais nada do mundo não alimenta para si esperanças artificiais narrativas consoladoras de pertencimento você não é especial você não tem direito a nada o mundo não lhe deve nada esta é que é a verdade uma verdade com a qual você já se acostumara ou diz que já se acostumou porque você percebe também que criara para si uma série de antídotos contra as arbitrariedades uma série de analgésicos a que você chama de trabalho literário você escreve para esquecer-se como disseram para isolar-se ter o seu refúgio repito um bunker homem do subterrâneo e há aqueles dias em que você não dá conta não consegue escrever precisamos falar sobre isso sobre você travar sobre a sua paralisia tornando-se aos poucos refém ou náufrago chame-o como preferir dias em que você simplesmente toma uma aguda consciência do facto de que numa altura você não conseguirá mais escrever não contará mais com esta válvula de escape a única anestesia que faz com que você continue para diante que o coloca num estupor aprazível mesmo sabendo que ao longe o farol do fracasso do medo de estagnar-se completamente continua iluminando a sua embarcação à deriva cujo único tripulante agita-se até à costa onde as ondas irascíveis batem com força contra a falésia um muro de pedras de raiva e acima de tudo muro de cansaço você pensa em parar de escrever antes que as circunstâncias o obriguem a parar de escrever um exercício de antecipação portanto antes que alguém tente trancá-lo numa instituição psiquiátrica rotulando-lhe de louco neurótico péssima influência com esses discursos fatalistas sobre o sofrimento ser o padrão sobre o sofrimento durar mais que os prazeres que tudo é insuportável essas ruminações cinzas então você pensa mesmo em parar de escrever como se esse derradeiro sacrifício estivesse ali o tempo todo à espreita uma ideia corroendo o seu cérebro como um parasita às custas da sua sanidade onde já se viu um disparate desses um parasita invisível que altera os seus modos o seu humor a forma como você se enxerga ou como a sua identidade se manifesta para as outras pessoas e de repente você não sabe mais ao certo quem é no que você se tornou um estranho para si próprio quero dizer em constante mutação a viver num ofício de ilusões num planeta paralelo em que a realidade é distorcida sem verdades absolutas um arquipélago fantástico cuja língua oficial é o seu idioleto incompreensível a imagem que me vem à cabeça é você perdido numa ilhota desse arquipélago olhando para o nada um alucinado sob o efeito de algum entorpecente psicodélico e a única forma de lidar com esse destino inevitável é paradoxalmente continuar escrevendo faça chuva ou faça sol como se diz tornar-se personagem inseparável daquilo que se escreve imergir agarrar essa única boia de salvação porque quando você não escreve você se transforma numa semi-pessoa ausente protótipo de humano poderiam mesmo pensar que estivesse morto a julgar pela sua aparência pálida um icebergue humanoide ao passo que você contra todas as probabilidades apenas acorda abre a janela inclina-se sobre a mesa e escreve sentindo um fugaz regojizo por ainda conseguir fazer a caneta dançar
Publicado por P. R. Cunha / 28 de maio de 2021
schopenhauer por um sonho (parte décima segunda)
entardeceres perpétuos lua gigante a idêntica neutralidade do abismo um combate de esgrima disperso sem arquitetura você se questiona quais seriam os limites de um sistema aberto de um sistema que permite toda a sorte de substituições como papel estojo controle do ar condicionado chávena pequeno globo terrestre com oceanos negros relógio analógico vermelho ponteiros luminosos livros sobre astronomia ferramentas diversas pedaços de pedras de dois vulcões chilenos tênis para praticar o running ventilador de chão relógio de pulso da marca casio f-91w abajur adaptadores de tomada fitas k7 com sinfonias de john cage coletânea de entrevistas da paris review em quatro volumes cadernetas moleskine uma nota avulsa de 100 dinheiros você sabe que a coerência ou pelo menos algo que se aproxima de certa coerência vem do facto de você sempre falar sobre as mesmas coisas então de início alguém pode se sentir perdido com as vertigens como se no meio de um labirinto sem saída até que esse mesmo alguém começa a perceber um padrão e esse padrão é justamente o repetir-se o tratar dos mesmos assuntos e numa tarde de terça-feira depois do chá depois do pão com manteiga você sai e vê a sua esposa com um outro cara num café com decoração francesa ao que toda a gente coça a têmpora franze as sobrancelhas e se pergunta por mil demônios e agora em que sítio isto vai dar
Publicado por P. R. Cunha / 27 de maio de 2021
schopenhauer por um sonho (parte décima primeira)
nestas práticas de recordações você se reinventa à medida que o texto se desenrola porque necessário registrar tudo na cabeça inclusive o rasto trágico que temos de seguir quando recebemos a notícia do suicídio de alguém que durante anos lutou contra a verve a sombra da aniquilação contra uma vontade intrínseca para o desaparecimento homens e mulheres que um dia acordam um pouco mais indispostos do que o comum e levantam-se da cama sem qualquer tolerância e aqui talvez fosse o caso de lembrarmos o que albert camus dissera a respeito do suicídio este único assunto filosófico que realmente importa e camus escrevera que o culpado talvez fosse um amigo que o tratara com algum azedume ou palavras ríspidas de certo familiar em suma gatilhos emocionais insiste camus a gota que faltava para inundar o lago de dores do sujeito que sofre o ingrediente que sana a dúvida do ruminante que volta para casa desolado e decide finalmente matar-se mas esses seriam os agentes externos a influenciar uma decisão interna um ato que se calhar andava em banho-maria há umas duas/três décadas e quando você pensa nesse conjunto de influências nesses repito gatilhos vem logo à sua cabeça o suicídio de mark fisher que enquanto duelava com o anjo melancólico da depressão escrevia extensamente sobre o mal-estar contemporâneo sobre a indústria de consumo em que se faz necessário caso queiramos manter a nossa sanidade criar/construir/fabricar sentidos além do mero ir-se ao shopping mall comprar utensílios dos quais não precisamos fisher que percebera em primeira pessoa como se diz que sentira na pele os efeitos colaterais de uma sociedade indiferente confessa que falhara que não conseguira criar/construir/fabricar sentidos num contexto cada vez menos propenso ao engajamento num contexto descartável como já se falou aqui até que numa altura cansado de ser o pugilista que está sempre na lona cansado dos golpes e das rasteiras da vida até que numa altura um irreversível sentimento de indiferença invade os pensamentos de fisher para quem respirar ou não-respirar tornaram-se meros detalhes que dariam no mesmo precipício na mesma lata de lixo dentro da qual tudo se despeja inclusive almas humanas
Publicado por P. R. Cunha / 26 de maio de 2021
schopenhauer por um sonho (parte décima)
pelo conjunto da obra os melhores escritores que já pisaram na terra são thomas bernhard e w. g. sebald essa é a sua opinião e no quesito obra exemplar livro para se ter numa ilha deserta estaria na mochila il mestiere di vivere do pavese ou la speculazione edilizia do calvino dois italianos que como já se disse noutras ocasiões influenciam diretamente estes devaneios a que você chama de schopenhauer por um sonho uma empreitada só sua um segredo sobre o qual não comentou com ninguém inclusive faz pouco tempo que a ideia de escrever de começar estes monólogos egotistas se configurara como uma necessidade urgente ao ponto de você se ver enfermo perder a cabeça se não conseguir dar continuidade ao projeto criando para si esta estrutura paralela com leis estabelecidas diante das quais você se sente cada vez mais confortável principalmente quando se dá conta de que a realidade lá fora é bem mais complicada & perversa & hostil & incompreensível do que você supunha que fosse um mundo faminto e por mais que você tentasse compreender essa realidade exterior por mais que você tentasse aceitar e participar desse enorme circo social você jamais conseguiria pois o seu modo de estar no mundo é justamente o não-estar-no-mundo recolher-se a uma distância segura do picadeiro onde você filosofa com indiferença onde você reforça esta pessoa-alheada que desenvolvera no decorrer dos anos uma máscara que você não pode mais substituir sem correr o risco de perder a própria personalidade por mais artificial que essa máscara se mostre somos construções dentro de construções mascarados dentro de mascarados lembramos portanto aquelas bonecas russas caixa dentro de caixa dentro de outra caixa um bocadinho menor até ao ponto da indivisibilidade e acreditamos que talvez esteja aí na última bonequinha russa a nossa essência o ponto derradeiro em que estão guardados os elementos que nos definem os elementos que explicam o nosso ser e qual não é a sua supresa ou melhor o seu desapontamento a sua angústia quando você se dá conta de que a última bonequinha russa está completamente vazia oca por dentro
Publicado por P. R. Cunha / 25 de maio de 2021
schopenhauer por um sonho (parte nona)
não importa quantas dores você eventualmente cure seja através da escrita ou de uma tarde soalheira ao jardim com um céu azul e o ruído sereno do aquecedor da piscina cujas hélices levantam as folhas secas das árvores em redor folhas que flutuam e caem brandamente na grama não importa como estava eu a dizer não importa o tanto que você se estimule o tanto que você consiga amenizar os incômodos a verdade é que mesmo assim há sempre uma ferida aberta um buraco que não cicatriza e você tem de aprender a aceitar essas ruínas fatigantes como dissera cesare pavese que nada será do jeito que você gostaria que fosse sempre uma decepção um constante embate com essas inquietações a estudar processos mais eficientes de pôr termo a elas e a total impotência a angústia de não conseguir localizar a origem dessas dores não são por exemplo como um desconforto nas costas e você sabe que são as costas que doem sabe como se mobilizar comprar remédio ir ao consultório do ortopedista sabe como tratar das costas mas essas outras dores são de outra natureza uma dor sem origem sem vestígio sem motivo sem lugar geográfico então você meio que se rende você deita na poltrona cinza que fica no canto do seu quarto poltrona tão confortável como uma poltrona pode ser poltrona reclinável excelente acabamento e uma culpa persistente invade-lhe os pensamentos uma culpa inicialmente branda que se acentua à medida que você tenta relaxar na poltrona reclinável uma culpa que insiste em martelar a sua cabeça e você vira para olhar os livros da sua biblioteca livros finalizados outros folheados outros que serão consumidos no devido momento e aqueles que jamais serão lidos porque simplesmente não dá tempo não há tempo para lê-los todos a vida humana passa num átimo como se diz a vida humana tem um número limitado de horas e junte-se a isso as suas inclinações procrastinadoras o facto de você não estar sempre com disposição para a leitura aliás há épocas em que você sequer consegue ouvir/pronunciar a palavra literatura sem que uma espécie de ânsia de vômito embrulhe o seu estômago meses e meses sem pegar num livro meses e meses sem ler nada você rumina a respeito disso deitado na poltrona cinza do seu quarto reflete sobre o facto de nunca ter tido um ofício nunca ter trabalhado verdadeiramente reflete se teria sido um bom jornalista caso não tivesse abandonado tudo para ser escritor de ficção caso não tivesse apostado todas as fichas na literatura e numa vida sem responsabilidades porque é esta a vida que você tem uma vida sem responsabilidades nunca é de mais repetir a sua necessidade de evitar responsabilidades comprometimentos um chefe um emprego fixo na firma a carga horária o almoço com os colegas de firma nada disso passava/passa pela sua cabeça e você teria mesmo preferido a morte sim ter-se-ia suicidado para não lidar com chefes empregos fixos cargas horárias almoços com colegas de firma incapaz de lidar com coisas práticas você optara por outro tipo de vida você também cultivou o hábito de existir sem desenvolvimentos sem princípios sem ideologias sem partidos e aprendera com pavese de novo pavese sempre pavese aprendera que o único modo de fugir ao abismo é encará-lo medi-lo sondá-lo aceitá-lo e finalmente pular nele
Publicado por P. R. Cunha / 24 de maio de 2021
schopenhauer por um sonho (parte oitava)
aquilo que você escuta enquanto escreve influencia o seu estilo isto é certinho como se a canção fosse uma espécie de presságio trilha sonora para um filme por vir o substantivo anemoia segundo o dicionário das lamentações obscuras significa nostalgia por um tempo que você nunca conheceu uma tentativa de resgatar momentos que você nunca viveu nunca experienciou diretamente tal como acontece quando você folheia fotografias antigas da rússia ou assiste aos espetáculos soviéticos ou lê thomas bernhard e gostava de caminhar com bernhard em gmunden naquela áustria que não existe mais ou nostalgia de pessoas da sua juventude pessoas que numa época conviviam consigo diariamente e depois sumiram e nem adianta ir atrás delas porque jamais será a mesma coisa produtos descartáveis seres humanos descartáveis não é mera coincidência ou ao escutar o vaporwave com montagens tipo liminal spaces você ingere calorias o corpo absorve quebra distribui gera energia você se sente momentaneamente disposto deseja criar construir deseja ir atrás da sua dose diária de schopenhauer por um sonho este vício em forma de devaneio que lhe atormenta no bom sentido da palavra que invade o seu sono sem pedir licença e você se mexe na cama para lá & para cá coloca o travesseiro entre os joelhos e começa a refletir sobre os azedumes que escreverá no dia seguinte e não se incomoda em soar repetitivo muito pelo contrário você segue com o plano com as suas convicções como aqueles escritores que sempre tratam dos mesmos assuntos contemplação inquieta dos mesmos temas e você sente um prazer indizível ao navegar nessas águas tumultuosas
Publicado por P. R. Cunha / 21 de maio de 2021
schopenhauer por um sonho (parte sétima)
você começa a perceber que há um ciclo estabelecido circuito previsível como se fossem estações do ano um microcosmo de angústia euforia tristeza entusiasmo fase maníaca fase depressiva apatia isolamento fala compulsiva agitação ideias descoordenadas delírios & alucinações microcosmo que costuma se apresentar no decorrer de um único dia ritmos e frequências em que tudo se repete numa manhã você se mostra produtivo noutra manhã você reluta em sair da cama e a esta altura deveria estar mais do que claro que a sua própria finitude isto é que num determinado momento você também desaparecerá para sempre deveria estar mais do que claro que a ansiedade gerada por essa finitude mais do que claro que essas inquietações existenciais se quisermos nos manter na linha heidegger de pensamento que esses pormenores são temas centrais dos seus monólogos e você tem as certezas de que não os escreveria aliás não escreveria coisa alguma se não tivesse que lidar justamente com essa possibilidade de morte que se você não fosse esse sujeito múltiplo neurótico transtornado problematizador você nem sequer anotaria uma única palavra não falaria daqueles que mergulham em personagens para não lidar com o próprio fim com o fim das coisas não falaria dos alienados como se costuma dizer alienados que fecham os olhos literal e figurativamente diante da devastadora realidade ou seja que um dia todos nós vamos morrer e que cedo ou tarde teremos de lidar com a perda de alguém que amamos e nós ficaremos aqui num sofrimento infinito com saudades sem consolo tentando em suma compreender que diabos é isto a que chamam de existência-vida-jornada uma mera coleção de memórias algumas aprazíveis memórias reconfortantes sem dúvida mas a grande maioria digamos por baixo de 80% a 92,6% das memórias são absolutamente devastadoras aniquiladoras e provocam os sentimentos mais cruéis dores confusão memórias megeras peculiares e absurdas com trejeitos de pesadelo memórias que não fornecem nenhuma resposta nenhuma pista e você continua perdido e você observa a caneta azul movendo-se a escrever este texto a criar schopenhauer por um sonho refém de um fluxo incontrolável de cenas e ruminações desconexas imagens distorcidas que apagam o mundo em redor agora é você a caneta o caderno pautado mais nada a cidade lá fora é como se não existisse você chega mesmo a abrir as cortinas para ver se o exterior ainda está lá é como se você estivesse num sonho ruim e você se torna mais um observador um voyeur do que um participante propriamente dito é a caneta que faz o trabalho sujo você diz para si mesmo e a pessoa a ler isto podemos chamá-la de leitora então a leitora observa a sua intimidade os seus traumas os medos um amontoado de emoções que são despejadas no papel emoções não processadas leitora percebe um discurso contraditório sem cabimento sem linearidade e você poderia se defender dizendo que a culpa é da caneta uma defesa não só tosca infantil como desnecessária o que no entanto não deixa de transmitir um sentido desolado de inutilidade de tentativas fracassadas de se fazer entender ao menos um bocadinho que seja
Publicado por P. R. Cunha / 20 de maio de 2021
schopenhauer por um sonho (parte sexta)
a partir do momento em que você declara que está neste mundo a despeito de todos os absurdos que assolam que por vezes tornam a nossa existência uma espécie de charuto intragável a partir do momento em que você se dá conta de que está aqui mesmo sem ter pedido para estar aqui você passa a se dedicar com certo afinco à tarefa de descrever as várias formas de interagir com este mundo você aprende muitas coisas e também palavras novas passa imenso tempo debruçado sobre livros montaigne benjamin adorno stendhal adquire portanto as ferramentas adequadas para justamente explicar este mundo incompreensível para exorcizar o que está sentindo dentro de si utilizando as possibilidades da linguagem pois é desta maneira que descrevemos as nossas experiências digo através das limitações da linguagem porque a verdade é que não escolhemos os nossos pais nem a casa onde passamos a nossa mocidade em última instância nem sequer escolhemos o nosso nome essa nomenclatura que nos define para o resto da vida nós nascemos numa época particular digamos em 1985 pré-colapso-da-união-soviética pouco antes da queda do muro de berlim nós nascemos com determinadas estruturas genéticas e são cargas que precisamos de carregar uma responsabilidade que você não pediu para si você foi jogado/projetado/expelido em um mundo arbitrário um constante lançar de dados de aleatoriedades são factos inescapáveis o seu nascimento o seu parentesco movendo-se para um futuro incerto criando-se ou melhor inventando-se no decorrer do caminho um caminho sempre para frente uma criatura em contínua gestação um eterno adolescente a perseguir uma maturidade inalcançável um contínuo exame de (in)consciência enquanto sofremos as angústias da solidão como se diz e da incapacidade de estabelecer relacionamentos amorosos e/ou não amorosos uma eterna criança brincando de ser escritor e que não para de se questionar qual o propósito desta vida o significado dela você basicamente nasce e quando começamos a nos acostumar com a bagunça com o desespero com o caos com aquilo que nos tornamos de aí que tudo cessa novamente voltamos ao sítio escuro em que estávamos antes da farsa começar
Publicado por P. R. Cunha / 19 de maio de 2021
schopenhauer por um sonho (parte quinta)
os existencialistas ensinaram que o absurdo começa com a pergunta por quê de forma que você sai da natação e uma pessoa fala no telemóvel a pessoa está relativamente distante você não consegue escutar o que ela diz apenas observa os gestos exagerados da pessoa a expressão dos olhos dela o andar compenetrado e de repente você odeia essa pessoa não só pelo facto de não conseguir compreendê-la mas por ela e o telemóvel dela e os gestos dela e o caminhar dela a preocupação desacerbada dela por tudo isso representar aquilo que você sempre repreendeu/recriminou nos outros a falta de noção social dessas pessoas que acham que o mundo pertence a elas que acham que o mundo é a sala de estar delas e que podem gesticular gritar perder as estribeiras segurar o telemóvel dizer poucas e boas através do telemóvel e os outros que aceitem essas atitudes indecorosas os outros que precisam de lidar com essa cena estúpida os outros não importam mas acontece que você leu sartre e lá estavam as perguntas por que estou sentado neste banco neste parque por que as minhas mãos têm este aspecto estranho por que são tão macias parecem de borracha e você também leu camus e lá estavam as perguntas por que continuo vivo por que não cometi suicídio por que alguns dão conta por que tantos não dão conta e você mesmo começa a se perguntar se será feliz se é feliz se algum dia já foi feliz sem futuro sem ambições sem objetivos concretos e se chegar a altura em que as ideias simplesmente não aparecem você acorda e não há mais ideia nada sobre o que escrever sem mais schopenhauer por um sonho &tc
Publicado por P. R. Cunha / 18 de maio de 2021
schopenhauer por um sonho (parte quarta)
toma um longo gole de café preto café forte café sem açúcar como que para entrar numa espécie de zona realidade paralela daydream à moda andrei tarkovsky сталкер enquanto escuta chopin nocturne nº 20 in c-sharp minor versão de mikhail pletnev seguido pelo cortante piano de alena cherny a tocar gnossienne nº 1 composta por erik satie então estas seriam divagações de um escritor à beira da loucura ou ele estaria no caminho certo ou um pouco de cada loucura & caminho certo determinadas perspectivas que só a experiência literária pode trazer uma simples espiada pela janela e vê-se a vizinhança a mudar casas à venda outras abandonadas as pessoas que você conhecia indo-se embora e o seu corpo tornando-se cada vez mais frágil vulnerável quando não são as dores no joelho são as dores nas costas ou no pé ou na pontinha dos dedos do pé alguma parte lhe sara e logo vêm outras doenças e você percebe decaimentos vulnerabilidades perturbações mas não são necessariamente o decaimento nem a vulnerabilidade nem a perturbação é antes um acúmulo de coisas que você via acontecer com os outros à medida que envelheciam e agora essas coisas começam a acontecer consigo antes eram ruínas longínquas agora é você quem está em ruínas você no alto da sua juventude analisava as pessoas que envelheciam algumas até ficavam loucas insanas elas se tornavam cada vez mais isoladas à medida que perdiam os amigos e os familiares que insistiam em morrer numa progressão geométrica e essas pessoas precisavam/precisam de criar casulos artificiais para lidarem com a decomposição com a morte com a solitude com as sombras então de repente você percebe esses sinais em si mesmo você fita as suas mãos e assusta-se com a pele esticada e agora você bem sabe a direção para a qual a sua locomotiva desgovernada está se dirigindo e isso lhe deixa um gosto metálico na boca é como diria um antigo o sabor ferruginoso da ceifa a causar-lhe toda a sorte de enjoos de forma que você descreve para si uma nova identidade sem necessariamente abandonar o seu eu-antigo um mecanismo de defesa sem dúvida um doppelgänger e você declara que o objetivo da escrita não é manifestar nem exaltar nem glorificar o ato de escrever é na verdade uma questão de criar um espaço um esconderijo no qual o sujeito que escreve desaparece completamente
Publicado por P. R. Cunha / 17 de maio de 2021
schopenhauer por um sonho (parte terceira)
abertura e/ou exposição de uma literatura pretensiosamente denominada experimental definir/estabelecer as bases filosóficas como quem pisa em ovos lembrando que o animal humano nunca sabe ao certo quem ele-ela é constantemente modificando-se um processo hoje um livro lhe agrada muitíssimo uma atividade desportiva um filme ou mesmo uma refeição são coisas que lhe representam para amanhã ou depois de amanhã o mesmo livro lhe parecer odioso a mesma atividade desportiva lhe perturba o mesmo filme entedia e a mesma refeição causa náuseas os seus interesses portanto tomam determinadas formas num dia e outras formas dali a pouco o que só reforça no fim das contas a transitoriedade de tudo e de todos como por exemplo há pessoas otimistas que conseguem enxergar beleza nos mínimos detalhes nas cores de um arco-íris no cantar descompromissado de um pássaro matinal mas você definitivamente não é esse tipo de pessoa você também chegara à conclusão de que de modo geral não se está à procura de felicidade nem de prazeres mas antes quer-se mitigar o sofrimento inerente desta existência absurda e você chegara a essa conclusão muito cedo ao que os seus pais mostraram-se imensamente preocupados com a possibilidade de você nunca conseguir ser feliz ou gozar das alegrias mundanas isolar-se não ver outras gentes escondidinho lá no seu espaço hermético esterilizado muito cedo compreendera que estamos limitados pelas paredes do tempo um tempo que se fecha a cada hora que nos empurrar para a morte e é de se entender a preocupação do papá-&-da-mamã quando escutaram essas palavras de um jovem que há não muito tempo eles (papá-&-mamã) chamavam de o nosso bebezito mas não se pode ser bebezito para sempre você disse para si mesmo e dentro do seu confinamento ruminara cada vez mais e com cada vez mais profundidade sim a cavar cada vez mais fundo a respeito das limitações das suas experiências uma torrente de tragédias e misérias e os breves e solúveis momentos de prazer que você sentira nunca eram tão prazenteiros quanto você havia imaginado/fantasiado a expectativa que via de regra ia por água abaixo jamais suprida sempre frustrada enquanto as dores essas sim chegavam com toda a força pressagiada justificando a sua atitude diante da vida que ganhava sofrimentos complexos à medida que os anos passavam novas dores à medida que se envelhece tragédias após tragédias enquanto o próprio corpo mostra-se suscetível a doenças a lesões e você se deparava com inseguranças e acidentes terríveis suicídios traições pobreza outros tantos incômodos físicos e possivelmente uma perda momentânea de razão perda que só se acentua à medida que todas essas dores/tragédias & incômodos se acumulam então você bebe você gasta fortunas com etílicos com remédios com ansiolíticos tranquilizantes drogas sedativos para esquecer o sofrimento o pesar a mágoa a aflição para não ser consumido pelo apetite das preocupações anestesiando-se como pode antes que a próxima correnteza de desgraça chegue para devastá-lo novamente
Publicado por P. R. Cunha / 14 de maio de 2021
schopenhauer por um sonho (parte segunda)
agora que você percebeu o padrão crackeou o sistema i.e. fazer-se de artista adotar postura de artista roupa de artista falar/ler/agir como artista ter um aspecto ausente meditativo como se estivesse muito ocupado a pensar na sua própria obra você diz peço imensa desculpa senhorita não lhe dei ouvidos porque estava cá ruminando entretido com os meus pensamentos sou artista e trabalho na minha obra a tempo inteiro e não saberia explicar se isso é uma dádiva ou um fardo outro dia inclusive eu quase fui atropelado por um autocarro por conta disso artista que se cansa e prepara-se para uma monumental inatividade o que naturalmente gera expectativas naqueles que acompanham a carreira do artista pois o público fica a se perguntar o que diabos artista estaria tramando que tipo de criatura ele estaria a desenvolver e se você não é duchamp cage rauschenberg jasper johns roy lichtenstein se você não é sollers merleau-ponty ou robert smithson dalton trevisan escondendo-se de toda a gente cultivando alcunhas disparatadas/curiosas/um-tanto-ou-quanto-jocosas como o vampiro de curitiba &tc. se você ainda quer se dedicar à arte um artista que decidira continuar artista se você pretende levar a sua obra misteriosa às últimas consequências então você meio que espera espera espera até que numa tarde de outono tarde de nuvens e quase chuva algo estranho acontece
Publicado por P. R. Cunha / 13 de maio de 2021
schopenhauer por um sonho (parte primeira)
ao olhar para uma outra pessoa o que se vê é um organismo biológico a se comportar desta ou daquela maneira um aglomerado de moléculas que anda fala come bebe defeca e calha de amiúde esse organismo ser você digamos a olhar-se no espelho depois de uma noite relativamente tranquila a escovar os dentes na casa de banho e é sempre curioso utilizar essas palavras casa-de-banho porque seus pais são do brasil e eles costumam chamar de banheiro mas você insiste em utilizar as palavras que lhe ensinaram na escola portuguesa em trás-os-montes e alto douro e lá os alunos levantavam a mão e pediam professor(a) preciso de ir à casa de banho e professor(a) dizia que tudo bem ao que o aluno(a) levantava-se e ia-se até à casa de banho e não ao banheiro porque banheiro é como se fala no brasil e não em trás-os-montes e alto douro mas não é disso que se trata até porque você percebe que fala esquisito às vezes do modo brasileiro às vezes do modo português e algumas garotas já lhe disseram que isto tem um charme peculiar isto de falar misturado de utilizar termos lusitanos e termos brasileiros mas o que importa agora é que calhou de você estar a escovar os dentes na frente do espelho numa daquelas atitudes à schopenhauer técnica schopenhauer se preferir método schopenhauer focando nas partes amareladas da sua arcada dentária matinal a livrar-se do bafo noturno e repete para si mesmo que tudo vai dar errado sim que as piores coisas irão lhe acontecer durante o resto do dia/tarde/noite schopenhaurismo no mais puro sentido do termo alguma tragédia talvez alguma tragédia irremediável repete o mantra que tudo vai dar para o torto alguém vai lhe fechar no trânsito o elevador estará quebrado a luz vai acabar na firma você vai atrasar o relatório a impressora não vai funcionar e esse tipo de tretas não importa o tanto que você se esforce a iminência do desastre estará sempre ali espreitando suas ações e você encolhe os ombros escova os dentes inclina a cabeça e cabeça para cima e cabeça para baixo escova os dentes e procura fazer os alongamentos adequados pois daqui a um bocadinho tem aula de natação e quando você chega à academia desportiva você precisa de dar ou melhor de gritar o número da matrícula para a moça que fica atrás da bancadinha e a moça digita o número no computador a catraca faz um barulhinho eletrônico como se fosse a trilha-sonora de um telejogo dos anos 1980 e você está liberado para usufruir da estrutura da academia de forma que você se dirige ao vestiário e lá coloca os trajes apropriados os óculos a touca de tecido para não marcar a testa com a pressão da costura como costuma acontecer quando a touca é de e.g. látex ou outro material plástico você separa também os pés de pato e caminha lentamente ao portão de metal com a placa a indicar que você está prestes a entrar no parque aquático da academia mas só pode fazê-lo com a autorização do instrutor de forma que o jeito é se sentar na arquibancada de concreto que a esta hora da manhã está fria como um icebergue e de mãos fincadas no peito tremendo gesto fervoroso dir-se-ia dramático teatral como lhe convém amaldiçoa o instrutor por se atrasar obrigando os alunos pobres alunos pontuais a se sentarem num glaciar de betão e você tenta não pensar tanto no frio observa a aluna da turma anterior cujo instrutor de certeza chegara no horário estipulado e a aluna está ligeiramente acima do peso você pensa e ela utiliza uma indumentária de malha escorregadia um pouco menor do que o tamanho que seria adequado ao peso/tamanho dela e ela não se importa e você passa a nutrir uma admiração cega por ela não se importar gostava de ser como a aluna da turma anterior não ligar para o que os outros pensam e a aluna faz uma flecha com as duas mãos e pula na piscina com graça e postura impecáveis e dá braçadas na água quentinha tão quentinha que você pode notar o vapor a sair da superfície ondulada e tudo o que você queria era estar lá dentro e não com a bunda congelada na geleira de pedra do parque aquático da academia não é mesmo
Publicado por P. R. Cunha / 12 de maio de 2021
Por vezes prefiro lembrar das coisas do meu jeito (não do jeito que elas de facto [?] aconteceram [espetáculo de balé])
A bailarina calça umas sapatilhas apertadas. As sapatilhas são vermelhas e têm um laço meramente ilustrativo. Os dedos da bailarina estão espremidos dentro da sapatilha. Ao se dirigir até ao palco, a bailarina sente dores. Mas quando pisa no tablado de madeira e a intensa luz do holofote faz arder as vistas da bailarina, ela como que flutua. As sapatilhas, então, dançam a bailarina.
Publicado por P. R. Cunha / 11 de maio de 2021
O pai foi declarado louco no mesmo dia em que o escritor nasceu desde então o pai escondera-se num quartinho no andar de cima o escritor tivera uma infância doente e intimidadora e dedicou-se à literatura a passar por períodos de extrema convulsão uma vida adulta marcada por turbulências gritos de dor do pai casa incendiada pelo pai pactos seitas religiosas obscuras flerte com a morte até que também assolado por doenças mentais o escritor comete suicídio overdose de barbitúricos caindo num sono sem sonho enquanto lia os contos de Raymond Carver
Então, ao que parece, o escritor não precisa de sossego/silêncio/vistas para o mar. Hemmingway escrevia em pé enquanto os tiros de pistolas ecoavam nas calles de Espanha, Orwell descreveu distopias sob o bombardeio da Luftwaffe, Pavese escondeu-se do fascismo e manteve laborioso diário a respeito de uma Itália que nunca mais seria. A urgência, a disciplina, a continuidade: eis do que realmente precisamos. O resto não passa de supérfluo.
Publicado por P. R. Cunha / 10 de maio de 2021
Comportamentos repetitivos (XXIV)
Ele estava na cama, encostado na parede, com os cotovelos sobre o travesseiro em fronha de seda azul-marinho, enquanto ela tirava as próprias roupas do armário e jogava tudo dentro de uma mala Samsonite grande. Ele observava os movimentos rápidos e decididos dela: abre a gaveta, segura a roupa com força, joga a roupa dentro da mala. Ele ajeitou o travesseiro e disse: o problema de vocês é que vocês são mesmo muito orgulhosas, fingem uma força que não têm, cheias de coragem e determinação, que pretendem se dedicar ao trabalho, sim, construir uma carreira, esse tipo de coisa. Ela pegou a caixa de joias e também jogou na mala. Ele prosseguiu: acham que o trabalho é tudo, horas e horas trabalhando, com a cabeça nas reuniões, nos relatórios, nos objetivos, nas metas anuais, e falam que não têm tempo para mais nada, que são mulheres modernas, e ficam viciadas nesse circuito fechado. Ela foi ao banheiro, juntou os produtos de higiene pessoal, estojo de maquiagem, pente, chinelos, jogou na mala. Ele disse: e essa estratégia funciona durante um tempinho, obviamente que funciona, o emprego na firma, o salário no fim do mês, a autonomia, as horas extras, claro que funciona, mas, de repente, sem aviso, vocês estão sozinhas num quarto de hotel, vocês olham para o lado e não há ninguém, vocês ligam a televisão, a tela azulada ilumina o quarto escuro, ninguém além do corpo estirado na king size do hotel, e vocês começam a sentir um brando desespero, e o desespero cresce aos poucos, e sentem também um gosto amargo na boca. Ela pressionou o pé esquerdo sobre a mala, fechou o zíper. Ele continuou: até que vocês se dão conta de que o trabalho não era tudo, que a carreira nunca foi tudo, que as metas, os desafios, o salário, não serviram para nada, até que vocês se dão conta de que, muito provavelmente, irão morrer sozinhas, sem filhos, sem namorados, sem nenhuma companhia para os anos de velhice, sozinhas. Ela arrastou a mala para a porta do apartamento, saiu e pressionou o botão do elevador.
Publicado por P. R. Cunha / 8 de maio de 2021
Síndrome de burnout
As condições exigidas pelo século vinte e um o preço que se paga o distanciamento o desapego o não-se-comprometer-com-nada ter cinco seis sete trabalhos em menos de dez anos autopromoção descontinuidade telemóveis apontados para o próprio umbigo as dinâmicas financeiras youtubers milionários a reprodutividade médicos professores filósofos negligenciados o político que venera o desenvolvedor de softwares os copos descartáveis os amores descartáveis as pessoas descartáveis e eu produto de 1985 com a cabeça de 1985 uma contradição ambulante amarrado à eterna transitoriedade do foi/ainda/não/é e eu que só sei escrever e nada mais.
Publicado por P. R. Cunha / 7 de maio de 2021
Todas essas formas dependem do tipo de coisa que se está a escrever e do tipo de efeito que se pretende produzir
[Ele toma o sorvete muito depressa e experimenta um brain freeze terrível. Faz careta, contorce-se na cadeira da lanchonete, bate a colher na pontinha do pote de porcelana]: taí uma dor com a qual eu me acostumaria. […] Não que meu pai fosse um ser humano ruim [ele continua enquanto leva outro tanto de sorvete à boca], não estou aqui a insinuar que fosse um sujeito ruim, um monstro, porque os pais…, os pais fazem o que podem com as ferramentas que têm na mesa, certo? Apenas chegava em casa cansado, sempre muito cansado, papai, e via-se que só queria ficar em silêncio, não pronunciar mais nenhuma palavra, pois passava o dia inteiro esforçando-se para ser um bom homem, um bom funcionário, passava, portanto, o dia inteiro fingindo ser alguém que não era. E quando chegava em casa, exausto, sim, insisto nisto, completamente esgotado, a máscara caía, e ali estava quem ele era de verdade: um palhaço sem maquiagem, triste, angustiado, nervoso, desiludido, frustrado. [Toma mais sorvete, brain freeze: intensidade branda desta vez.] Até que ele pura e simplesmente decidiu não voltar, o meu pai. […] Saiu para o trabalho como da praxe, deve ter tido um dia muito difícil, e não voltou. Já me disseram que foi parar nas Caraíbas com a amante, e que se casaram, que tiveram dois filhos, mas a veracidade desses rumores, tenho de confessar, me parece um bocado duvidosa, inverossímil.
Publicado por P. R. Cunha / 6 de maio de 2021
Alívios temporários
Uma pessoa num estado crítico de psicose, ao cimo de uma crise nervosa, sem filtros, sem nada a perder, balbucia palavras avulsas, mas também é capaz de gritar verdades inconvenientes àqueles que estão em redor. Por isso que muitos preferem dopar/sedar o «louco», ou então (quando as sinceridades verbais se tornam estorvos absolutamente insuportáveis) trancam-no numa cela de manicômio — a que o decoro moderno prefere chamar de casa de alívio mental.
Publicado por P. R. Cunha / 5 de maio de 2021
Teoria geral do esquecimento (terceira parte)
No inverno de 1902, Ignacio P. saiu para comprar batatas e cigarros. Não se demorou: comprara o que tinha de comprar, depois voltou para casa no bairro de San Telmo, Buenos Aires. Ignacio P. era um desses anônimos sem rosto que vemos andar pelas calçadas como que desnorteados. Pessoas que nunca serão lembradas por ninguém — mais gente do que se pode contar sem perder as contas.
Publicado por P. R. Cunha / 4 de maio de 2021
Fim de semana alhures
O pai leva as duas filhas pequenas para um piquenique no parque. O pai: 46 anos, divorciado, ligeiramente acima do peso, bermuda Adidas tamanho XL, o tênis desportivo a indicar — pelo menos — certa intenção de manter rotinas regulares de atividade física. Ele se ajoelha para ajeitar a toalha, olhando para o céu em busca de sombra. As duas filhas observam o moderado excesso de gordura que se projeta nas laterais do pai (1,73 m, 79 kg). Ele levanta e chacoalha as mãos para se livrar da grama que grudara entre os dedos. As duas filhas sentam sobre a toalha. Uma delas diz que tem um tantinho de fome, a outra está com sede, e o pai se dá conta de que esquecera a lancheira térmica no banco de trás do Ford Fusion, pintura azul-metálica, ano 2018. Algumas jovens praticam o running na pista de atletismo. O pai coloca os óculos escuros, faz pose de disponível. As jovens passam sem dar muita atenção. O pai suspira, pede para as filhas esperarem e sem muita pressa vai buscar a lancheira térmica no banco de trás do automóvel.
Publicado por P. R. Cunha / 3 de maio de 2021
A realidade é sempre outra
Estou cada vez mais convencido da impossibilidade de se estabelecerem certezas absolutas diante de eventos particulares. Numa avenida movimentada os automóveis passam com imensa pressa. Mas será que realmente passam? Ou quando conversamos com alguém: o quanto da identidade dessa pessoa não seria produto da nossa imaginação?, e quanto da nossa própria personalidade não seria também, em grande medida, fragmentos artificiais daquilo que essa pessoa pensa de nós? Muitas vezes achamos, ou melhor, acreditamos piamente que somos de um jeito X, que agimos de um jeito X, que falamos de um jeito X, até nos depararmos com a opinião alheia, e, de repente, não somos mais X, agora somos Y, agimos de um jeito Y, falamos de um jeito Y. Deixamos de ser a caricatura fácil e despretensiosa que havíamos desenhado para nós mesmos, tornamo-nos difíceis, atormentadores, estranhos. Agachamo-nos para recolher as peças desse quebra-cabeça, sem saber ao certo o que pensar.
Publicado por P. R. Cunha / 30 de abril de 2021
Relativismos & a descoberta da lentidão
Depois de ler quase duzentas definições de «tempo» (de Einstein a Octavio Paz, de Burdick a Montaigne), cheguei à conclusão-sinopse de que tempo é aquilo que passa rápido quando queremos que demore, e aquilo que demora quando queremos que passe rápido.
Publicado por P. R. Cunha / 29 de abril de 2021
Bibliotecário como uma espécie de deus
A Biblioteca de Babel é composta de um número indefinido (e talvez infinito, acrescenta Jorge Luis Borges) de galerias hexagonais, com vastos poços de ventilação ao centro, cercado por balaustradas. Uma estrutura colossal. De qualquer hexágono, explica ainda o escritor argentino, podemos ver os andares inferiores e superiores — interminavelmente.
Uma biblioteca que abrigasse todos os livros do mundo, a totalidade do conhecimento humano.
Eu costumava cultivar aquela tenra ingenuidade — em parte demonstrada também pelos irmãos Grimm no século XIX [Kassel, outubro de 1810] — de que, afinal, são as pessoas que morrem e não os livros. Se ao menos cuidássemos bem das brochuras e pudéssemos abrigá-las na utópica biblioteca de Borges.
Mas a verdade é que, a despeito das tentativas digitais de «aglomerar cada átomo do universo», ainda perdemos livros. Editoras que deixam de publicar determinadas obras, o servidor de alguma gigante-hi-tech que depois de pane generalizada perde centenas de textos armazenados, as traças que consomem as páginas despedaçadas de um único exemplar medieval, aquelas senhoras e aqueles senhores que numa altura sentaram-se para expor os próprios sentimentos nas pautas de um diário, cujo paradeiro jamais saberemos…
Parece correto, portanto, o axioma a dizer que os escritores sofrem mesmo duas mortes: a primeira quando deixam de respirar; a segunda, quando não podem mais ser lidos.
Publicado por P. R. Cunha / 28 de abril de 2021
E lá se escreve em passinhos miúdos
Há uma torteria. Minha mesa está perto da rua inclinada. Corre um regato produzido pela chuva, que se mostra branda, persistente. Uma das paredes da torteria é forrada a papel cinza, como se imitasse a textura do concreto. Curiosos motivos de ladrilhos e madeiras com tons escuros cobrem o chão. É algo birrento e até um bocado infantil, mas, às vezes, tudo o que o escritor precisa é que alguém diga: tu não vais conseguir, não dás conta. E, então, de ânimo renovado, furioso, ele se debruça sobre as anotações e dá continuidade à empreitada livresca.
Publicado por P. R. Cunha / 27 de abril de 2021
Para silenciar algumas de minhas fraquezas
O amor é uma arte, disse certa vez Erich Fromm — filósofo da chamada Escola de Frankfurt, cujos participantes tinham um fraco pelo vazio, pela vacuidade, pelo absurdo de existir. Para Fromm, a condição humana primordial seria a separação, isto é: estamos sozinhos, só temos a nós mesmos. Aqueles que andam à beira desse abismo e o sabem acabam por se dedicar a algo (ou alguém) que lhes dê algum tipo de raison d’être, um norte, uma bússola, um motivo. Daí o amor. O amor faria com que olhássemos com menos rejeição ao niilismo inerente a este universo — um espaço infinitamente gigantesco, em constante expansão, dentro do qual nada somos além de um pixel descartável. Por não existir cura definitiva para esse isolamento (apenas analgésicos manipulados), deveríamos aceitar as circunstâncias, abraçá-las, adaptar-se, jamais lutar contra elas. E aqui, vale ressaltar ainda, não haveria distinção alguma entre as diversas âncoras que lançamos às profundezas: o amor do artista pela obra e o amor do artista por um outro ser humano, por exemplo, equiparam-se. O sujeito literário que ameniza angústias dedicando-se aos caprichos das palavras, que se entrega ao próprio livro sem esperar nada em troca, deveria agir da mesma forma diante da pessoa amada. Ambas as empreitadas mostrar-se-iam processos: dia após dia, erro após erro, avanços, recuos, equívocos, acertos, consertos, metamorfoses. O livro e a pessoa amada fazem parte do escritor, assim como o escritor faz parte deles. É famosa a condição de determinados autores que se afogam nas ondas da melancolia depois de terminar trabalho ao qual se dedicaram durante anos. Eles de súbito se dão conta de que o caminho era o que lhes dava algum propósito. Assim, insistiria Fromm, sucede-se também com o amor entre humanos: um projeto a longo prazo, a tempo inteiro, sem nenhuma pressa de atingir um ilusório destino final.
Publicado por P. R. Cunha / 26 de abril de 2021
Porém, e isto é incômodo, as coisas não são tão simples — ou uma mente ativa capaz de construir simulacros
Televisão, telemóveis, computadores de bordo, braços robóticos, automóveis que dirigem sozinhos, smart homes, drones entregadores de pizza, drones assassinos, corações artificiais, exércitos de silício, smart watch, touch screen, flat screens, Netflix, Megaflix, realidade amplificada, sexo virtual, home office, A.I., ebooks, GDrive, pagamento por aproximação, bitcoins, PayPal, conta corrente, juros, análise de créditos, óculos 3D, videojogo, Tinder, Badoo, POF, Bumble, Instagram, brain in a vat, teletransportador, Sci-Fi, Lo-Fi, High-Fi, Wi-Fi, identidade pessoal, continuidade, conectividade, senha eletrônica, QR code, TOTP, JAB code, HCC2D, Model 1, código de barras, detector de metais, correção de erros, ISO/IEC, alfanuméricos, reconhecimento de caracteres, células fotoelétricas, rastreabilidade, GPS, GS1-128, transdutor, dispositivo optoeletrônico, células solares noturnas, módulos fotovoltaicos, 1367 W/m2, tecnologias emergentes, Black Dye, startup, crowdfunding, enterprise, freelancer, venture capital, business incubator, ONG, dicionário online, e aquilo que uma pessoa não consegue lembrar nunca existiu… pelo menos não para ela.
Publicado por P. R. Cunha / 22 de abril de 2021
A vida dentro de certas estruturas assume o caráter de um jogo
A primeira coisa que pergunto quando acordo de manhã: a realidade existe? Minhas pernas são reais?, meus braços, meus dedos, e esta dor aguda que sinto nos meus joelhos? Como posso obter alguma certeza de que isso tudo, de facto, existe? Um filósofo alemão, perspicaz nestes assuntos, escrevera que, muito provavelmente, aquilo a que chamamos de realidade não passa de construção mental imposta pela estrutura do nosso cérebro. Abrimos os olhos, reconhecemos dados, o sistema neurológico cria (importante verbo: cri-ar [transitivo] / dar existência a; gerar; produzir; inventar; fomentar; estabelecer; interpretar) padrões, surge um sentido. Acontece, também, de o conjunto de sentidos não ser fixo. À medida que meu reconhecimento de realidade muda — através de maturidade, traumas, conquistas, fracassos etc. — abandono algumas convenções, adiciono outras, e assim continua a ser encenado o teatro grotesco. Em poucas palavras, não sou realista, sou cético. E o relato a seguir não é uma transcrição, mas uma reconstrução.
[…]
Toda a última quinta-feira do mês vou ao médico, é o que tenho feito há seis anos. Na semana passada, passou-se o mesmo. Levantei-me, vesti meu cardigã e disse para a minha esposa: Matilda, vou ao médico. Ela não respondeu, continuou sentada na poltrona a tricotar. Anda meio surda. A título de sinceridade, meus ouvidos também andam um bocadinho avariados. Gostamos de menosprezar a falta deste ou daquele sentido de alguém, sem muitas vezes reconhecermos que os nossos próprios sentidos não são, nem de longe, mais os mesmos. Matilda anda surda, faço troça da surdez da minha esposa, mas, repito, preciso de reconhecer que a minha própria audição já está a ir, como se diz, para o brejo. De forma que Matilda bem pode ter respondido qualquer coisa à minha afirmação («vou ao médico») e eu nem com isso. Vai, vai logo, Eustácio, anda, apressa-te — era o que ela costumava me dizer numa época em que ambos escutávamos perfeitamente. Onde já se viu!, pensei enquanto abria a porta da rua, digo que vou ao médico e a velhota nem se dá ao trabalho de me responder, fica a tricotar aquele suéter terrível, como se o marido (eu) nem existisse. Casamos com alguém, achamos que seremos parceiros inseparáveis, que envelheceremos juntos, queremos acreditar que aquela mulher será a nossa melhor amiga até ao fim dos tempos, porém, como é tão comum entre nós, essas parvoíces não passam de vã esperança, miragens. Às vezes me vêm esses pensamentos insensíveis, essas atitudes disparatadas, não sei por quê. Mais tarde, naquele mesmo dia, muitíssimo abalado pela notícia que receberia do médico, descobri que o suéter terrível era na verdade um presente que Matilda estava a preparar para mim, para o meu aniversário de 68 anos, cuja data eu me esqueci completamente, e nem preciso dizer que desabei a chorar diante dessa conjunção de catástrofes. Mas não será este o momento para nos demorarmos sobre isso, adianto-me sem necessidade. Na semana passada, portanto, última quinta-feira do mês, fui ao médico, como tenho feito há seis anos. Exames da praxe. Assim que cheguei ao consultório, a recepcionista deu-me as boas-vindas, perguntou com voz de criança se eu queria guardar meu cardigã, se eu queria um cafezinho com bolachas, se a televisão estava num volume adequado. Devo ter feito um daqueles sons que os velhos fazem, e falei que estava tudo bem, que só queria sentar, esticar as pernas, meus joelhos doem. A recepcionista disse: compreendo, senhor Eustácio, compreendo bem. Não compreende!, mocinha, não compreende!… Isso obviamente eu não disse, só pensei com meus botões: não compreende. E não era despropósito algum pensar assim. Os mais jovens acham que compreendem os mais velhos, mas não compreendem, porque não precisam de passar pelas coisas que os mais velhos passam, as humilhações, as torturas, as dores nas articulações. A recepcionista voltou para atender ao telefone, notei que mancava. De minha parte, deixei meu corpo deslizar na cadeira de estofado verde, e a brisa morna do ventilador atingia meu rosto como um mau presságio. Sala de espera. Jornal matutino na televisão. Ansiedade e tédio. Fechei os olhos. Podemos não conseguir dar sentido à realidade como um todo, mas isso não nos impede de dar sentido às coisas «dentro» dessa realidade; quero dizer, em determinados contextos, a razão da minha existência, de eu estar aqui de olhos fechados na sala de espera do consultório médico, o mesmo consultório, há seis anos, toda a última quinta-feira do mês, a razão de eu respirar, de eu sentir dores, dos meus pensamentos egotistas, a razão de tudo isso continua sendo que, numa altura, meus pais, que também tinham uma longa cauda de bifurcações e acasos, se conheceram na maldita daquela lanchonete; eu não pedi para nascer, ninguém pediu, isso é coisa que nunca aguentei, e me disseram que chegaria a idade em que eu simplesmente aguentaria, mas nunca aguentei; e meus pais terem se conhecido, minha presença neste consultório médico, meu antigo emprego, a Matilda, minhas dores, minha coleção de selos… fazem parte de uma existência artificial, de uma narrativa, de uma vida, de uma realidade que carece de razão; não estou aqui por algum motivo, não nasci para ser grande, poeta, arquiteto, malabarista, de forma alguma, apenas nasci, um acidente biológico, estou à mercê de tudo isso, desses propósitos limitados, dessas regras limitadas, desses objetivos limitados, dessas explicações limitadas, e daí resulta o caos total; jogamos xadrez, sabemos os movimentos das peças, o que cada peça pode ou não fazer, pensei ainda de olhos fechados na sala de espera do consultório médico, o tabuleiro de xadrez claramente delimitado; no entanto, como estamos fartos de saber, se continuarmos a cavar, se nos livrarmos do tabuleiro, das peças, mais cedo ou mais tarde chegaremos à temível conclusão, à certeza bruta: que era só um jogo, que as regras só fazem sentido se não avançarmos muito nas investigações. De repente, senti uma mão gelada no meu braço esquerdo, abri os olhos como se tivesse acordado de um transe. Senhor Eustácio, disse o médico com severidade, receio não ter boas notícias para lhe dar.
Publicado por P. R. Cunha / 16 de abril de 2021
A Pessoa Pequena
Pessoa Pequena tenta engatinhar para o colo da mamã.
A mamã, vestida com roupa de médica,
agacha-se para abraçar Pessoa Pequena.
A mamã diz:
— sinto muito, meu bebê, sinto muito mesmo,
mas hoje estarei de plantão no hospital, comporta-te.
Pessoa Pequena ri, e aperta as bochechas da mamã,
e puxa, e brinca com os óculos arredondados da mamã.
A mamã então entrega Pessoa Pequena para a cuidadora.
Cuidadora tenta ninar Pessoa Pequena.
Balança o bebê de um lado para o outro.
Como se Pessoa Pequena fosse uma jangada bem miudinha.
Embrulhada no macacão felpudo, bem que
Pessoa Pequena se parece mesmo com uma jangadinha.
A mamã diz tchau, abana os braços,
fecha a porta do apartamento.
Finalmente Pessoa Pequena começa a entender
o que se passa: mamã não vai dormir aqui esta noite,
mamã não volta.
Pessoa Pequena chora, ou melhor, esperneia,
consegue se desvencilhar da cuidadora.
Dali a pouco, Pessoa Pequena está deitada no chão
da varanda.
Pessoa Pequena contorce a cabeça.
Tem ainda lágrimas nos olhinhos.
Observa pela pequena abertura no concreto
o Chevrolet da mamã se distanciando cada vez mais,
cada vez mais,
cada vez mais.
Publicado por P. R. Cunha / 15 de abril de 2021
Antes de partir
Em 2015, sofri acidente grave no pé — uma mesa de vidro espatifara-se nele, abriram-se cortes profundos e levei ao todo vinte pontos. Precisei de ficar em repouso, prostrado na cama, sem poder mexer a perna direita. Recebi visitas de amigos e familiares, que vinham me desejar rápida recuperação, traziam-me chocolates, algum instrumento musical para que eu me distraísse, etc. Uma dessas visitas, aliás, ficara marcada na memória: minha avó e meu tio-avô foram me ver numa tarde particularmente dolorosa em que tive de tomar remédios à guisa de lidar com tudo, e, enquanto a enfermeira drenava o sangue acumulado no meu calcanhar, eles me observavam com olhos vazios, em silêncio, como se velassem um moribundo condenado. Os efeitos dos medicamentos deram à cena contornos ainda mais taciturnos. Visita estranha, pensei comigo.
Publicado por P. R. Cunha / 13 de abril de 2021
Modus operandi
O escritor que escreve todos os dias, de maneira metódica, compenetrada, a tratar dos temas que lhe são caros, acaba criando um trabalho digno de nota, uma obra literária, digamos assim, e essa obra será comercializada, guardada e esquecida. O escritor, eventualmente, também será esquecido.
Publicado por P. R. Cunha / 9 de abril de 2021
Para emitir digressões inoportunas
Todas as vezes em que entro nesta sala de aula, com estes alunos vestidos com uniformes escolares, com este ventilador de teto a fazer ruídos de ventilador de teto, com estas mesinhas organizadas em fileiras, quatro fileiras, cada uma com cinco mesinhas, com a minha própria mesa de professor retangular, com este quadro negro asqueroso, com estas paredes cuidadosamente pintadas de amarelo, e janelas com hortaliças da estação, enfim, todas as vezes em que entro nesta sala de aula tenho as vontades de, conforme se costuma dizer, pôr termo à vida. Trabalho nesta escola há quase quinze anos, e não houve uma única vez, uma única ocasião sequer em que eu tenha entrado nesta sala de aula sem que o pensamento de suicídio me acometesse. Tiro de pistola, afogamento, pular da sacada de um prédio, asfixia por monóxido de carbono, overdose de morfina, e tantos outros métodos, desnecessário enumerá-los aqui. Entro na sala de aula, e os alunos estão sentados, e penso comigo: de hoje não passa, mato-me. Quinze anos com esse mesmo pensamento, com essa mesma, digamos, fixação, um esforço intelectual absolutamente psicótico, não posso deixar de admitir, doentio. Sento-me à mesa, abro a pasta azul com a lista de chamada, e começo a ler os nomes dos alunos em ordem alfabética — Ana, Armando, Bruna, Carla, Dênis, Diego, Fernanda… e eles respondem: presente, professor. E eles vestem uniformes impecáveis, sem nenhuma mancha, sem nenhuma costura exposta, uniformes escolares limpos, brancos como a neve, se calhar ainda mais brancos do que a própria neve. Presente, professor. E eles sorriem, querem aprender com o professor, querem absorver o conhecimento do professor, querem tirar o máximo de proveito daquela experiência aluno-professor, mas o professor pensa na pistola, no afogamento, na sacada do prédio, na asfixia por monóxido de carbono, e esse gênero de coisa. Os alunos saem de casa com toda a vida pela frente, com planos, expectativas, com sede de conhecimento, enquanto o professor sai de casa já farto de tudo, com pensamentos suicidas, com a cabeça à roda, mórbido, desacreditado, e tais abordagens são de tremer, mas não busco aplausos. Os alunos sentam-se às mesinhas e inclinam o corpo para a frente; o professor senta-se à mesa do professor e reclina o corpo para trás. Os alunos na ofensiva, o professor na defensiva. Os alunos atacam, o professor se protege como pode. No final do semestre passado, numa quarta ou quinta-feira, passei os exercícios da praxe para os alunos, e fiquei a observar a estrutura da janela. Enquanto eu fazia os cálculos, a pensar no que me aconteceria se por um mero «acaso» eu «escorregasse» e «caísse» lá embaixo, a diretora da escola bateu no vidro da porta chamando-me para ter com ela. Saí da sala, a diretora sorriu, pude ver as obturações nos dentes traseiros. A diretora disse: hoje é o teu dia de sorte! Não tive nenhuma reação. Ela continuou: foste nomeado para o cargo de coordenador pedagogo. Eu falei que isso não me interessava, aliás, tive mesmo de insistir, implorar, dizer que não queria nada com aquilo, que, verdade seja dita, sempre odiei esse tipo de função, só o nome coordenador pedagogo já me causava repulsa, asco, ao que a diretora sorriu ainda mais, e lá estavam novamente as obturações, e disse para que eu deixasse de tanta modéstia, que eu tinha sido escolhido por unanimidade, e aqui ela colocou a mão no meu ombro direito, unanimidade, todos querem que tu sejas o novo coordenador pedagogo, e tu começas na próxima semana etc. etc. A gente esfrega os olhos e não acredita. De forma que, desde o final do semestre passado, sou também o coordenador pedagogo desta escola, mesmo que eu nunca tenha participado das reuniões, nunca me apresentei como tal, nunca nem assinei contrato, e meu salário continua o de sempre. Às vezes estou a andar pelos corredores da escola e algum funcionário passa e diz: bons dias, sr. coordenador pedagogo. E dizem isso com uma solenidade até um pouco patética: sr. coordenador pedagogo. É terrível. No refeitório, agora preciso de me sentar na área dos coordenadores, e todos falam de coisas que os coordenadores costumam falar, ou seja, dos assuntos mais insuportáveis, ridículos, sem cabimento, e isto sou obrigado a notar por questão de honestidade. Os coordenadores não são melhores nem piores do que ninguém, mas agem como se fossem diferentes, como se fizessem parte de um grupo seleto, são os escolhidos, podem ditar as regras, e há sempre algum idiota que abaixa a cabeça e acata essas regras, mesmo que sejam as regras mais estapafúrdias que alguém já ouviu. Escutam as regras, entendem que são regras idiotas, abaixam a cabeça e seguem as regras idiotas. A despeito das afirmações em contrário, sempre foi assim: sabemos que as regras impostas pelos coordenadores são idiotas, mas lá estamos nós, seguindo as regras impostas pelos coordenadores. De uma forma absolutamente inqualificável, aceitamos e seguimos em frente como se nada tivesse acontecido. Voltamos para casa, beijamos a nossa família, comemos, dormimos, acordamos, e nos submetemos às regras dos coordenadoras. Tudo o mais é retórica, pose, farsa.
Publicado por P. R. Cunha / 7 de abril de 2021
Escritos mantidos a título de lembrança
John de Salisbury — escriba do arcebispo de Canterbury no século XII — comentara numa certa altura que «as palavras escritas dizem sem voz as falas dos ausentes». Símbolos indicando vozes: com frequência, vozes de fantasmas.
(CAFÉ: bebida considerada muito boa e completa; há quem diga que tem o efeito de afastar a melancolia.)
Percebo que meus escritores favoritos estão todos mortos. E quando conversamos, isto é, quando os leio, há sempre qualquer coisa de Krapp’s last tape [A última fita de Krapp], peça do Samuel Beckett. Discursos imóveis em fitas K7, palavras que sempre permanecem como estão, que se repetem. Ecos registrados no papel e na faixa magnética.
Montaigne, Bernhard, Sebald, Burton, Foster Wallace, Ballard, Poe, Borges, Kafka… todos mortos.
Dizem, também, que o trabalho do escritor nunca chega realmente ao fim, pois os seres humanos e as outras coisas do planeta mudam de hábitos a cada dia. Talvez seja por isso que raramente nos deparamos com escritores aposentados: podem até se afastar da vida pública, mas escrevem sempre, até que chegue o derradeiro golpe da ceifa, e tudo se faz escuridão.
Publicado por P. R. Cunha / 6 de abril de 2021
Herbert
Meus pais faziam vestuário por medida e eles tinham o odioso costume de pendurar retratos das pessoas famosas que já tinham ido lá pedir esta ou aquela roupa específica. Eu mesmo não dava a mínima para essas coisas — nem para o vestuário, nem para a fazenda de roupas, nem para os supostos famosos cujos rostos me eram absolutamente irreconhecíveis. Minha mãe tinha particular predileção por uma mulher com cabelo encaracolado, nariz de boneca, e segurava o retrato dessa mulher, revirava os olhos, abraçava o retrato com força, dava uns beijinhos, e dizia que ela tinha sido uma atriz de cinema muito, ou melhor, muitíssimo premiada. Até hoje não faço a ideia de quem teria sido a mulher, mas, pelos vistos, contratou os serviços de mamã e isso bastava. Então que a nossa casa era também o ambiente de trabalho dos meus pais, que montaram uma «oficina» — se é esta a palavra adequada — num quartinho ao lado da cozinha. Eu ficava assistindo televisão na sala enquanto os dois costuravam, cortavam, batiam na máquina e por aí adiante. De vez em quando meu pai colocava a cabeça do lado de fora e gritava para que eu comprasse uma qualquer miudeza na padaria. Contrariado, eu me levantava, resmungava, e ia até à padaria comprar o que quer que fosse. Certa tarde, voltei da padaria e percebi que meus pais tinham saído. Joguei os pães e a manteiga sobre a mesa e fui logo me esparramar novamente no sofá. Estava quase pegando no sono quando ouvi o barulho da campainha. Esfreguei as pálpebras com o dorso das mãos e me arrastei até à porta amaldiçoando os demônios, perguntando o que fiz para merecer aquele desassossego. Um homem na calçada que não parava de olhar para os lados disse abruptamente: quero ajustar este terno! Bocejei e disse que não seria possível ajustar o terno, que não havia ninguém para ajustar o terno, que voltasse outro dia. O homem insistiu: ora, você está aqui, você ajusta o terno. Eu disse: não sei mexer nessas coisas, meus pais sabem, e meus pais… Antes mesmo que eu terminasse, o homem adotou atitude ameaçadora, levantou o dedo em riste, entrou na casa sem pedir licença. Vestiu o paletó, levantou os braços e disse: anda, ajusta isto. Sem saber o que fazer, peguei uma fita métrica na oficina, olhei para o paletó, depois olhei para o homem, que olhava para um ponto de fuga invisível: anda, ajusta. Medi os bolsos, as lapelas, os ombros, as mangas, e fingia que tomava notas no caderno com folhas amarelas. O homem se deu por satisfeito, entregou-me o paletó, disse que voltaria mais tarde para buscá-lo, e que também pretendia ajustar a calça do terno, mas que agora estava sem tempo, precisava de ir sem demora. Mais por preguiça do que por receio, resolvi esconder o paletó no meu armário e não contar nada para ninguém sobre o ocorrido. Passaram-se duas semanas, dois meses, seis meses e o homem misterioso não aparecia. Até que, numa dessas morosas manhãs de outono, estávamos papai e eu a assistir ao noticiário quando, para a minha supresa, vi imagens do homem do terno e um compenetrado repórter a explicar que «enfim, a policia conseguiu pôr atrás das grades um dos criminosos mais perigosos do país». Ofegante, fui buscar o paletó no armário e mostrei-o para o meu pai. Apontei e disse: era o paletó desse criminoso!, ele veio aqui ajustar e nunca voltou. Meu pai me fitara com aqueles olhos de condolência, balançou a cabeça para os lados, e, visivelmente desapontado, falou que era para eu parar de ladainha, que eu arranjasse emprego de uma vez por todas, alguma ocupação, qualquer coisa que fosse, do contrário, eu também apareceria no noticiário algemado, ou, pior ainda, dentro de um saco preto do Instituto Médico Legal.
Publicado por P. R. Cunha / 5 de abril de 2021
Sinuosidades
Estou a observar uma minúscula formiguinha que escala a minha caneca de café. A caneca tem o rosto do David Lynch estampado e a formiga está agora no nariz do David Lynch. Ela não se demora e continua a subir na direção do líquido açucarado. Quando chega à borda da circunferência, a formiguinha como que olha lá para baixo e hesita. De súbito, dou-me conta de que meu pensamento não está mais na formiguinha, nem na caneca, nem no rosto do David Lynch: estou a pensar na radiação cósmica de fundo em micro-ondas — o fóssil de luz que, tanto quanto a ciência pode dizer com segurança, vem de uma época cerca de 380 mil anos após o Big Bang. A formiguinha dá algumas voltas e decide pular no café.
Publicado por P. R. Cunha / 1º de abril de 2021
Construções (apêndice)
O escritor é uma ideia, uma representação que precisa de ser constantemente abastecida para que a máquina continue, como se diz, funcionando. A partir da altura em que ele vacila e começa a duvidar dessa ideia, eis que surge o niilismo inerente da empreitada (i.e.: dedicar-se horas e horas, dia após dia, a uma tarefa contrária à sensatez e ao bom senso). Se antes ele, dotado daquela quixotesca confiança, levantava a caneta como se fosse uma espada medieval, agora ele se mostra distraído, faz pequenas dobras nos cantos da folha em branco — fita os livros entreabertos que jazem sobre a escrivaninha, obras que em ocasiões mais amenas demonstrariam o tipo de pessoa que o escritor gostava de ser.
Publicado por P. R. Cunha / 31 de março de 2021
Construções
Um doutrinador num espaço vazio, sem vivalma para doutrinar, de certeza que consideraria a própria tarefa absurda. Mas essa condição é recorrente para os escritores, que falam sozinhos, ruminam em voz alta para um público invisível. Calha de, às vezes, a acústica da sala reverberar esses monólogos, alguém lá fora escuta fragmentos do discurso megalómano e entende que ali dentro há um escritor trabalhando.
Publicado por P. R. Cunha / 29 de março de 2021
Gelo
Durante o verão de 2015, completamente exausto das obrigações acadêmicas, dos encontros com os outros professores, da voz do reitor, e, principalmente, dos intermináveis almoços no refeitório do campus, escreve Paul, decidi alugar uma casa de praia para enfim dar prosseguimento aos meus estudos sobre Cioran que andavam, como se diz, negligenciados. Ao escutar o endereço da casa de praia, cujas coordenadas fiz questão de pronunciar com muita calma e clareza, o taxista do aeroporto, mais para evitar um silencio que lhe pareceria constrangedor do que para puxar conversa, perguntara se por um acaso eu tomara conhecimento do mais novo personagem da cidade. Respondi que não fazia a ideia, ao que ele me fitou pelo espelho retrovisor com uma seriedade, assim julguei na altura, desproporcional. Contou-me que o velho Buzinsky decidira montar ateliê na região, e que o russo já estava a trabalhar numa gigantesca escultura de gelo, justamente na praia onde eu me hospedaria. Após uma breve pausa, durante a qual pude apreciar a dispersa vegetação litorânea que tanto me agrada, escreve Paul, o taxista ajustou os óculos no nariz de coruja e disse em tom trocista que não compreendia o motivo de alguém querer construir escultura de gelo num país tropical, muito menos na praia, em pleno verão, quando os termômetros chegam a atingir 40, 43ºC, uma empreitada completamente absurda, disse o taxista, o que me faz pensar, ou melhor, ter a certeza de que, à medida que nos aproximamos da nossa própria finitude, passamos a nos dedicar a toda a sorte de futilidades, como construir esculturas de gelo, ou castelo de cartas, sem contar o esforço, as horas, os dias, as semanas que desperdiçamos para montar esses objetos tão transitórios. Na casa de praia, coloquei o extenso material sobre Cioran na escrivaninha que com antecedência havia pedido à proprietária que instalasse no canto do quarto, longe do sol poente. Quatro pastas repletas de anotações avulsas, seis livros de Cioran, duas biografias a respeito do filósofo — inclusive uma em romeno, cuja finalidade me escapava, pois não compreendo o idioma —, um HD externo com o arquivo PROVÁVEL MANUSCRITO SOBRE E. M. CIORAN. Ao abrir a porta da varanda que dava para a praia, notei que alguns curiosos observavam um senhor curvado a martelar um enorme bloco de gelo vertical. Enquanto o velho Buzinsky lutava sem sucesso contra o derretimento da escultura, lembrei-me do taxista e das palavras de Gilgámesh, aquele que viu o abismo: quanto ao homem, seus dias estão contados; não importa o que construa, é apenas brisa passageira.
Publicado por P. R. Cunha / 25 de março de 2021
Circunstâncias
Na minha juventude fui baterista de uma banda de rock, rock introspectivo, dir-se-ia, rock para relaxar a cabeça e não para sacudi-la, e gostava imenso de tocar ao vivo, de estar sentado à bateria, de observar outras pessoas que tinham se deslocado até ali para assistir ao nosso show, e, depois da apresentação, confraternizar, receber os elogios da praxe, ser, de certa forma, um bocadinho o centro das atenções, e bebíamos, e fumávamos, e éramos invencíveis, e voltávamos para casa à espera do próximo espetáculo, quando tudo se repetiria mais ou menos da mesma maneira. Até que, um pouco sem perceber, a energia começara a se dissipar, a vontade de estar fora, de socializar, não era nem de longe nem de perto a mesma, e me vi cansado, exausto, afastei-me (tal como fizera Fitzgerald numa altura da própria vida), e passou a haver menos gente, muito menos gente, e notei, ainda sem saber ao certo o que fazer com isto, que não precisava mais fingir que gostava dos outros seres humanos, nem sorrir à toa, forçar abraços, não precisava mais fazer-me de interessante, de baterista intelectual, de «músico-poeta-escritor», nada disso era realmente necessário.
Publicado por P. R. Cunha / 24 de março de 2021
Ímãs
Como me retirar adequadamente do microcosmo da obra que estou a escrever, eis uma inquietação recorrente quando me dedico a um longo trabalho literário. A confortável previsibilidade das rotinas, a antecipação, a chávena de café sempre no mesmo canto da mesa, a cadeira, as canetas, os papéis, a continuidade do processo,

não lidar com as turbulências da sociedade civilizada, não acompanhar os noticiários, construir este casulo, abrigar-se neste casulo, ou melhor, proteger-se dentro do casulo, e encher-se de ansiedade quando obrigações externas puxam-lhe para fora do casulo como se fossem um gigantesco campo magnético. Dois dias longe do meu universo artificial e já me afogo em toda a sorte de angústia, melancolia, desespero, coceiras, iras, sensabores — tudo isso, só como exemplo.
Publicado por P. R. Cunha / 23 de março de 2021
Infrequências
Há ocasiões em que saio tão satisfeito da minha escrivaninha que tenho as vontades de paralisar o espaço-tempo, para, pelo menos, prolongar um bocadinho mais esse fugidio sentimento de plenitude.
Publicado por P. R. Cunha / 20 de março de 2021
O outono nos mostra que as folhas caem; e o inverno — que elas não se levantam mais
Há quantidade vertiginosa de obras lá fora, e nós não temos, como se diz, todo o tempo do mundo. Se reservamos um certo número de horas para determinado autor, deixamos de nos dedicar a milhares de outros. É por isso que, quando nos tornamos leitores ávidos, precisamos de criar algum tipo de filtro — do contrário, enlouquecemos. Muitos começam a ler somente as obras lançadas por uma editora específica, alguns só leem romancistas mexicanos, um primo meu passou a ler apenas os escritores cujos sobrenomes começassem com as letras B, D ou F (Balzac, Barreto, Bernhard, Descartes, Dostoiévski, Faulkner, Flaubert, e assim por diante). Ou, quem sabe, faríamos como Jorge Luis Borges, que nunca lia, mas relia sempre os mesmos.
Publicado por P. R. Cunha / 19 de março de 2021
Invenções pantanosas
Um rei muito poderoso decidiu mandar os dois melhores narradores do castelo para uma expedição algures. A ideia era que eles fossem ao país estrangeiro, observassem, tomassem nota, e voltassem para contar o que viram. Porém, antes mesmo de chegarem ao longíquo território, um dos narradores fora acometido pela disenteria, e o outro, cansado de ter que carregar o colega às costas, não acreditara nos próprios olhos quando percebeu que o país estrangeiro nada mais era do que uma grande área pantanosa, sem nenhum sinal de civilização. Com medo da represália do rei, que odiava relatos enfadonhos, os narradores — os melhores narradores do castelo, nunca é demais lembrar — decidiram em comum acordo inventar narrativas mirabolantes sobre aquela que, para todos os efeitos, teria sido «a expedição mais fantástica da história da humanidade». Porque, afinal, a verdade não é necessariamente o que aconteceu, mas o que contamos que aconteceu.
Publicado por P. R. Cunha / 18 de março de 2021
Tramas
O frasco do colírio
lágrimas artificiais.
Quando a escrita se torna um hábito, uma necessidade — como beber água, ingerir alimentos, movimentar-se etc. —, afundado neste contínuo processo de consumir e ser consumido. Um vício, poder-se-ia dizer.
Publicado por P. R. Cunha / 17 de março de 2021
Como algo extra
Não negligenciar o blogue. Escreva algo, nem que sejam uns pensamentos avulsos.
O escritor que precisa de manter um trabalho assalariado — porque, afinal, é necessário pagar as contas etc. — sempre colocará a culpa do próprio infortúnio literário nesse trabalho. Se ao menos eu pudesse ser escritor a tempo inteiro, ele diz.
A ideia seria basicamente não iluminar, não comunicar conhecimento novo, não criar insights, não transmitir nenhuma mensagem edificante. Focar-se em si mesmo, andar em círculos, entregar-se a um fanatismo unilateral; escrever, se possível, em idioleto.
Cultivar leitores = consequência.
Tenho a certeza de que estou a escrever o melhor livro que jamais escreverei. (Talvez seja por isso que me mostro tão moroso nos últimos tempos, porque antevejo o vazio [an enormous void, the great nothing] que a obra deixará ao se despedir de mim — como aqueles pais que, depois de anos de criação, dizem adeus ao filho no aeroporto.)
Muito improvável que uma onda de criatividade como essa venha a se formar novamente. É sempre outra coisa.
Há também um encanto particular quando deixo «a grande obra» de lado e me dedico a miudezas diversas. A estes trechos despretensiosos, que sempre terminam em nostalgia.
Publicado por P. R. Cunha / 16 de março de 2021
Eletromagnetismo — ou como ser um caça-fantasma na era da visibilidade
Meus bisavós paternos tiveram um namoro majoritariamente epistolar.
Esta famosa anedota da família relata que meu bisavô escreveu para a minha bisavó pedindo-a em casamento. Por conta de uma greve geral dos correios, a carta com o «sim» demorou tanto para chegar às mãos dele que, nesse prolongado intervalo, meu bisavô, um bocado desiludido, quase se apaixonara por outra mulher.
Hoje em dia, com mensagens eletrônicas que atravessam o planeta à velocidade da luz, as trocas lentas e imprevisíveis de envelopes são quase inimagináveis. No entanto, inquietou muitas gentes dos séculos passados.
Pensemos em Kafka.
Para ele, escrever cartas significava expor-se aos fantasmas, que esperam precisamente por esses intercâmbios de longa duração. Kafka ressalta a inconstância dos interesses humanos. Agora agimos e sentimos de uma determinada maneira; amanhã, não sabemos.
Beijos escritos no papel nunca alcançariam o destino da mesma forma que foram enviados. Os fantasmas os bebem ao longo do caminho.
(Um pedido de casamento cuja resposta chegasse seis/sete meses depois possuiria a mesma força?, o mesmo significado?, meu bisavô pode ter ruminado a respeito.)
Escrever cartas: comunicação fantasmagórica — não apenas com o fantasma do destinatário, mas principalmente com o nosso próprio fantasma, que parece se desenvolver dentro daquilo que estamos escrevendo, e cresce à medida que escrevemos novas cartas, e nos tornamos um outro alguém, fantasmas que se acumulam, corroboram-se, contradizem-se, como se fossem testemunhas num tribunal.
Poderíamos de bom grado modernizar essas inquietações de Kafka se substituíssemos a angústia epistolar por qualquer outra tentativa de se fazer entender através da linguagem — um tema, aliás, caríssimo à filosofia de Wittgenstein.
Nossas mensagens digitalizadas podem até se mostrar instantâneas, mas isso não significa que tenhamos nos livrado dos espectros que as acompanham.
Os fantasmas também se adaptam, aprendem a flutuar mais rapidamente.
Publicado por P. R. Cunha / 12 de março de 2021
Em pedaços
A criança aborrece os adultos quando age de determinadas maneiras, a fazer traquinagens. Mas ela possui um álibi: é ainda muito miudinha para entender as regras do jogo.
Quando o pequeno ser humano cresce, precisa de atender às exigências, às expectativas da sociedade. Ser calmo, seguro, ter paciência, comedido, comportar-se adequadamente à mesa, racional, impressionar. Mesmo que em inúmeras ocasiões preferisse agir como uma criança, sabe que não possui mais essa liberdade, essa concessão. É necessário adaptar-se ao contexto adulto etc.
Ao que o agora grande ser humano também começa a esperar coisas dos seus semelhantes, determinadas posturas, modos, aparências, trocas, contratos. A bola de neve se dilata, até transformar-se em avalanche, pois a criança louca que um dia fomos nunca deixa de existir, apenas hiberna embaixo das camadas de gelo — as quais, de improviso, empilhamos para conter o monstro birrento da nossa personalidade.
O grande ser humano em estado de esgotamento (i.e: quando a criança irascível que o habita consegue subir à superfície) rende-se, chora, treme, esperneia. Desprovido de todas as mordaças artificiais que tivera de produzir à guisa de evitar transtornos, agora começa a questionar se esta existência é real, se faz sentido, se a opinião que os grandes seres humanos têm sobre ela é válida, ou absolutamente inútil.
Entra em colapso, procurando por algo em que se agarrar, uma âncora, uma corda, um corpo, uma viga. Deitado diante do espelho em migalhas: meros reflexos daquela imagem que, talvez ingenuamente, acreditava conhecer.
Publicado por P. R. Cunha / 11 de março de 2021
Lembranças vagas — ou incompletas
Homem grisalho sentado num banco à beira-mar. Passo por ele e escuto-o perguntando para um ouvinte invisível: ela me amou?
Por vezes acontece de voltarmos de determinadas viagens e acharmos que tudo terminara. Até que, alguns dias depois, cenas dispersas começam a surgir aleatoriamente à cabeça.
Nunca se sabe ao certo quando (e como) uma jornada acaba.
Publicado por P. R. Cunha / 10 de março de 2021
Escritor ciente das frustrações e excentricidades diárias de uma vida literária (o sol negro)
A tristeza que nos oprime, os sentimentos que nos paralisam são também uma espécie de escudo — por vezes o derradeiro escudo — contra a loucura. Como aqueles insetos que fingem a própria morte tentando ludibriar o predador.
Costumo sentar-me à mesa para escrever sobre assuntos aleatórios. Não tenho nenhum plano, nenhum propósito. Apenas sento, fico quieto. E então algumas imagens começam a surgir. Eu bebo um pouco de café. Na maioria das vezes, acho que estou trapaceando, que essas imagens não são minhas, porque elas simplesmente aparecem, e tudo o que preciso fazer é descrevê-las, traduzi-las num pedaço de papel. É um processo muito agradável. Sinto que estou longe, embora nunca saiba ao certo de onde ou de quê.

Se me vejo incapaz de metaforizar ou de traduzir essas imagens, calo-me, desvaneço aos bocadinhos.
Publicado por P. R. Cunha / 9 de março de 2021
Rotina
6h — acordar, refletir se vou ou não para o crossfit;
6h15 — levantar (se eu for ao crossfit [do contrário, permanecer deitado, meditações aleatórias]);
6h30 — pequeno-almoço;
7h — crossfit (ou leitura inspecional de livros diversos);
8h34 — escrever, escrever, escrever, revisar…;
12h10 — almoço;
13h12 — xadrez;
16h — lanche vespertino;
17h — a partir daqui, fico ligeiramente alheado, como que à deriva, insuportável, magoo quem estiver por perto, inseguro, insatisfeito, por vezes desconto na minha família, na mulher que tanto amo, e me pergunto: por que diabos fazes isso contigo mesmo?, tento colar os pedaços, e tenho a certeza de que acabou, sim, acabou, amanhã estarei destruído, em ruínas, sem forças para recomeçar, sem ideias, sem caráter, mas não precisamos falar sobre isso.
Publicado por P. R. Cunha / 8 de março de 2021
Apertura: onde o escritor justifica-se, a mostrar que uma entrevista é, na melhor das hipóteses, algo a ser suportado
Nunca gostei muito de dar entrevistas — ou melhor, nunca me senti à vontade para respondê-las. Talvez eu seja um daqueles escritores que, quando diante de uma pessoa que faz perguntas, não têm nada a dizer, ou acreditam que já disseram tudo nos textos que publicaram, ou que preferem se dedicar às ficções em vez de se arriscarem nas armadilhas da realidade, ou que têm medo de revelarem os próprios segredos, medo de serem desmascarados de uma vez por todas, e, no momento em que a máscara cai, das duas uma: ou precisam de tatear o chão escuro para recolocá-la, ou, num cenário ainda mais inquietador, construir novas máscaras, o que leva imenso tempo.

Publicado por P. R. Cunha / 7 de março de 2021
Florianópolis, Santa Catarina
Em menino, a palavra aeroporto enchia-me de grandes expectativas. Hoje, nesta fase má da biografia terrestre, causa-me toda a sorte de ansiedades.
O Atlântico azul-esverdeado, as ondas brancas — espumas de barbear salgadas. Holofotes iluminam a praia durante o fim de tarde enquanto a linha cinza do horizonte confunde-se com um céu desbotado. Florianópolis como cenário de alguma canção dos Frightened Rabbit (Keep yourself warm, ou talvez Swim until you can’t see land).

Há um grande tabuleiro de xadrez atrás de mim. Os quadradinhos pintados num terraço de concreto. As peças batem no meu joelho. O rei tem um crucifixo na cabeça.
Vento com gosto de maresia.
No meu funeral, gostava que colocassem para tocar o som das ondas. E na minha lápide haveria um botão que, ao ser pressionado, também tocaria sinfonias marítimas. Mas esses detalhes nunca se mostram ao nosso alcance.

Nada mais solitário do que um resort paradisíaco às cinco horas da manhã.
Quando a maré recua, surgem pequenos orifícios na superfície da areia, e alguns bichos desengonçados saem desses orifícios, e lembramos como a vida aquática pode ser curiosamente estranha.
Lagarta verde, gosmenta, estica e retrai o corpo sanfonado — o caminhante fica a se perguntar como ela conseguiu sobreviver no fundo no oceano.

Observo o barquinho pesqueiro a seguir linha reta até quase desaparecer atrás das marolas, que parecem balões inflados por uma criança. O barquinho então faz um desvio brusco. Fico a imaginar o motivo do desvio.
Todos os seres humanos — não importa o quão especial/único tu te sintas agora — são descartáveis.
Sabemos do sucesso (ou insucesso) da pescaria a julgar pela quantidade de aves marinhas que circulam o barco quando ele retorna ao cais.
Ter um refúgio, sair, divertir-se, magoar-se, consertar-se, recompor-se, voltar ao refúgio.
Publicado por P. R. Cunha / 6 de março de 2021
Acasos amorosos
Então estás a ter um romance com o teu livro…
Enquanto tudo parece desmoronar ao redor, tu focas naquilo que permanece a única constante em tua vida — a escrita.
Sentimentos que mudam, confundem-se, aglomeram-se.
«Reconstruir-se através da literatura», e através dessa reconstrução adquirir perspectivas, experiências.
A empreitada enviar-te-á alguns sinais: dias bons, dias ruins, dias produtivos, contemplativos, monótonos, dias paralisantes. Mas se tu podes interpretar mal os pequenos vacilos, então, na mesma, tu podes interpretar mal quando as coisas estão a acontecer do «teu jeito».
Noutros termos: por vezes tu crias belas, porém falsas expectativas, que falham quando colocadas à prova. Maquetes esteticamente agradáveis de um ideal. Ideais que tu gostavas que funcionassem de determinada maneira, mas dão para o torto. Nunca é de todo perfeito, há sempre algo etc.
Teoria diferente da prática, diriam os acadêmicos.
Tens lá que tomar algumas decisões: o que tu precisas esquecer?, e o que se mostra realmente importante, crucial, para o andamento do teu romance? Há um armário, ou melhor, um baú. Dentro do baú, muitos objetos. Manténs alguns, jogas para o lixo outros.
Novo estilo, nova composição, uma capacidade imaginativa surpreendente. Ato de sobrevivência. Ressuscitas. A escrita como desfibrilador cardíaco. Mas trata-se de uma ressurreição temporária. Tu precisas dar novos pulsos de choque.
Mantém a mão firme, a dança da caneta. É mais do que um livro, é um meio de preencher perdas. Quando escreves, estás também a enfrentar a separação, o vazio, o abandono, a morte.
Publicado por P. R. Cunha / 26 de fevereiro de 2021
Mensagem engarrafada
Há uma pequena ilha com formato vagamente circular — 20/30 metros de diâmetro. O horizonte mostra-se nublado, cinza, como nas primeiras horas de uma manhã invernal. De forma lenta e constante, o volume de água ao redor começa a baixar, revelando um abismo profundo, intransponível. E tu estás ali, no meio da ilha.
Publicado por P. R. Cunha / 24 de fevereiro de 2021
Certas indefinições
Por absolutamente não existir mais qualquer fronteira (cerca, arame farpado, muro) entre o meu eu-escritor e eu como homem (civil, etc.), falhar como escritor significa falhar como homem.
Publicado por P. R. Cunha / 23 de fevereiro de 2021
Proxima Centauri b
Esta canção — gravada e mixada no Estúdio da Cris — é sobre como muitas vezes não conseguimos cuidar de quem a gente ama.

Publicado por P. R. Cunha / 22 de fevereiro de 2021
Castelos de areia
O pequeno P. R. Cunha está sentado numa cadeirinha de praia em Búzios, Rio de Janeiro. A mamã do pequeno P. R. Cunha espalhou uma substância pegajosa no rosto dele, disse que era «para proteger o meu bebê». P. R. Cunha não se importa, ele está concentrado a fazer um castelo de areia. Ainda um bocadinho atabalhoada, ele pega as ferramentas de plástico que estão dentro de um balde amarelo com alça azul. O pequeno P. R. Cunha levanta o castelo com paciência, um monte de areia aqui, outro monte de areia ali, mais um do lado direito, mais outro do lado esquerdo. Aos poucos, a estrutura ganha proporções significativas, o que faz chamar a atenção do papai. O papai do pequeno P. R. Cunha tira os óculos de sol e diz: que castelo enorme!, e quem foi que fez esse castelo enorme?! Orgulhoso, P. R. Cunha aponta para si mesmo. Mas eis que vem uma onda e derruba o castelo. Depois de tanto trabalho, tanto esforço, tanto cuidado, uma simples e indiferente onda arruinou os planos do pequeno P. R. Cunha. E essa seria apenas a primeira de incontáveis vezes em que a vida lhe proporcionaria tal lição.
Publicado por P. R. Cunha / 20 de fevereiro de 2021
Notas do mato / epílogo
Segunda viagem a Pirenópolis.
Se tu ficas sozinho, e se tu perguntas: afinal, quem eu sou? —, podes encontrar respostas inquietantes.
[Muitos preferem não perguntar.]
Sento na cadeira e permaneço em silêncio. A cabeça ainda contaminada pelos ruídos da cidade, constantemente invadida por loopings de pensamentos aleatórios. «Monkey mind».
Não deixa de ser um prodígio observar que as minhas inseguranças como que se dissipam quando sei que estou a trabalhar num livro de fôlego. Mas sei também que essa confiança se faz provisória.
A obra literária, amante severa, vingativa.
O silêncio, portanto, não é apenas «não conversar/não falar». A cacofonia costuma surgir desses monólogos dentro do nosso cérebro.
Desassossegos que não pedem licença.

Altura em que o livro deixa de ser apenas uma abstração amorfa e começa a se transformar numa criatura coerente — e tu achavas que não conseguirias, que esta transição nunca chegaria.
Tens aí contigo uma pedra preciosa, uma pedra bruta que precisa de ser lapidada. Toma cuidado com as machadadas.
Livro bom, livro promissor.
Uma obra que demora quatro anos para ser produzida (pesquisas + escrita + descartes + escrita + revisões + pânico + escrita + descartes + pesquisas + escrita etc.) e que será consumida num par de dias. Se calhar, até menos.
Andar com o livro pra cima e pra baixo, viajar com o livro — ainda é apenas um arquivo de computador. Medo de ser roubado. Perder tudo, todo o esforço, à toa.
Ficar sozinho em Pirenópolis, acúmulos de pensamentos. Espremo as laranjas, as minhas laranjas, e o que sai é o meu suco.
TRILHA SONORA: Max Richter, Vladimir’s blues.
Era uma vez um menino muito malvado e mandão. Vivia enfurecido, a brigar com toda a gente. Até que um dia distraiu-se e caiu num buraco. Outras crianças, educadas e prestativas, correram para tirá-lo de lá. O menino malvado apenas limpou a poeira com as mãos e continuou a ser o malvado de sempre.
Às vezes sinto que não sou eu a escrever, que sou apenas um passageiro, estou dentro de um veículo, e não consigo ver o rosto do motorista — ou melhor, sequer consigo ter a certeza se existe mesmo um motorista.
Plantavam as melhores sementes, mas eram péssimos jardineiros: meu pai… [eu?]
Se sou igual a ele, se montanha de gelo, mundo de gelo, se também sou um frigorífico que só se aquece quando mete-se a escrever.
Características que eu gostaria de ter herdado dele, mas não herdei. Características que eu não gostaria de ter herdado dele, mas herdei.
Não saber absolutamente o que fazer quando não estou trabalhando no livro.
«É preciso imaginar Sísifo feliz.»
Sempre fico com a impressão de que as pessoas do campo fazem muitas refeições no decorrer do dia porque a comida é um pretexto para se encontrarem, para amenizar uma qualquer solidão coletiva.
Escrever cedo, enquanto o mundo a dormir.
TRILHA SONORA: This Is The Kit, Keep going.
Um vendedor de seguros conversa com o cliente. Ele se mostra simpático, diz palavras motivacionais, sorri — o vendedor de seguros não para de sorrir. Mas quando o cliente insiste que não precisa de seguros, que está muito bem sem os seguras, e o cliente vira as costas para seguir com os afazeres da praxe, o vendedor de seguros se aborrece imenso, começa a ofender a pessoa com quem há pouco compartilhava boas risadas.
Moral: lembrar-se sempre do sorriso do vendedor de seguros quando diante de situações mercadológicas.
Há um manuscrito. Enterrar o manuscrito na floresta. Se acharem o manuscrito, tudo bem. Se não acharem — tudo bem.
Antes das redes sociais, quando os seres humanos passavam por alguma situação ardilosa, contavam com certo período para refletir a respeito, recolhiam-se, mudavam de opinião. Hoje, desabafam em tempo real no Twitter, de cabeça quente. Qualquer desentendimento sem importância torna-se motivo para um ilusório debate público.
É fácil fingir que estamos escutando quando a pessoa que fala não nos enxerga.
Cochilar, uns dez minutinhos, à tarde. Acordar como se tivesse dormido uns quinze anos.
Quando estou a trabalhar no livro, a organizar determinados trechos, criando situações, e sinto um regojizo imenso…, gosto de acreditar que esta é a melhor versão de mim mesmo. Mas como isso só acontece quando estou sozinho, longe, ninguém percebe essa minha melhor versão. Eu volto, e ficam com as minhas piores versões.
Aqui, no silêncio, isolado, não machuco ninguém, não magoo ninguém.
O mágico sabe que a partir do momento em que o segredo é revelado a mágica perde a graça.
Um pensamento me surge à cabeça e eu o acho magnífico. Quando tento colocá-lo no papel, já não o acho mais um pensamento magnífico.
Os rastros de dores, e lágrimas, e lamentos — pedaços dos corações que tantas vezes dilaceramos.
Último jantar [LAST SUPPER], com a caixinha de som da JBL sentada na cadeira diante de mim. Toca Melin Wynt, de King Creosote/Kenny Anderson (álbum: Astronaut meets appleman). Suco de uva Aurora, gaseificado, sem adição de açúcar-água-corante.
Céu sem estrelas.
Céu cinza, inviável, como costuma acontecer em todas as despedidas.
Publicado por P. R. Cunha / 19 de fevereiro de 2021
Zona de descompressão
Este blogue mostra-se ofegante e pede umas férias. Volta brevemente, com os apontamentos da segunda viagem à cidade de Pirenópolis.
[…]
Quando começo a escrever de facto, o livro consome-me de uma maneira miserável. É uma gestação, o bebê requer cuidados a tempo inteiro. Desenvolvo olheiras, alguém estala os dedos perto do meu rosto, pergunta se estou vivo, se estou realmente ali. Baixo a guarda, cedo, sinto-me vulnerável e, como num ingrato balé conspiratório, todas as dificuldades do mundo resolvem investir de uma só vez contra as minhas ruínas. E deve ser por isso que nunca se volta o mesmo, depois de dar à luz um livrinho.
Publicado por P. R. Cunha / 5 de fevereiro de 2021
Cartão de visita
Somos convidados para, digamos, tomar café na casa de alguém. Enquanto tomamos o café analisamos despudoradamente os móveis da casa, o tapete, as cores, o acabamento, a pia do lavabo, e chegamos à conclusão de que os móveis não nos agradam, nem o tapete, nem as cores, o acabamento, tampouco a pia do lavabo; a casa, portanto, é feia. Da mesma forma, convidamos alguém para a nossa casa, e a pessoa analisa os nossos móveis, o nosso tapete, as cores, o acabamento, a pia do nosso lavabo. A pessoa balança a cabeça para cima e para baixo em sinal de aprovação, porém, se soubéssemos o que se passa por dentro, veríamos que ela também acha os nossos móveis feios, o nosso tapete é feio, o acabamento é feio, as cores são feias, a pia do nosso lavabo é feia — mas raramente sabemos o que se passa por dentro. Assim, não nos magoamos e nem magoamos ninguém.
Publicado por P. R. Cunha / 4 de fevereiro de 2021
Incertezas
Não sei ao certo para onde vai este ruminar…, vejamos: quando eu nasci, meus pais me levaram para o nosso apartamento na 106 Norte. Posso dizer — o apartamento na 106 Norte, e Brasília, e o automóvel Monza no qual eles se deslocaram depois do parto de mamã, tudo isso de facto existia antes do meu nascimento. (É uma mistura de Wittgenstein com Nabokov.) O carrinho do nenê que me aguardava na sala, também existia? Posso perguntar para a mamã se existia e, de acordo com as recordações dela, chegar à conclusão que sim, o carrinho existia, e também o berço, o móbile com temas astronômicos a girar em cima do berço. Ela diz que existia. Hoje, não posso mais perguntar para o meu pai se esses objetos estavam no nosso apartamento, pois ele faleceu em 2010. E talvez ele se mostrasse um bocadinho cansado, ou com a memória, como se diz, fraca. Se meu pai respondesse: acho que o carrinho existia, porém, não tenho tanta certeza quanto ao móbile com temas astronômicos. Daí, surge um impasse indecoroso: mamã diz que o móbile estava lá, enquanto papai diz que não tem as certezas. E como eu mesmo não existia, não consigo averiguar quem está certo, quem se equivocara. Posso passar o resto da minha vida com esta dúvida na cabeça: meu primeiro berço não tinha móbile com temas astronômicos como um dia cheguei a acreditar? E se tenho dúvidas a respeito dessas miudezas infantis, o que dizer sobre todas as outras coisas?
Publicado por P. R. Cunha / 3 de fevereiro de 2021
Se a pessoa em causa for digna de confiança
Damião está em pé, abotoa a camisa do pijama enquanto observa a esposa deitada com um livro no colo. Ele respira fundo e diz: não acredito em Júpiter, esse planeta não existe. A esposa abaixa os óculos de leitura, que fica a pender na ponta do nariz: andaste bebendo de novo? Damião se mete lentamente embaixo das cobertas: de forma alguma, nunca estive tão sóbrio. Ela termina de ler o parágrafo, coloca os óculos sobre a mesinha de cabeceira e apaga a luz do abajur. Ficam os dois em silêncio, no escuro. Estás falando a sério?, diz a esposa. Damião ajeita o travesseiro e resmunga: é o quê? Estás falando a sério que não acreditas que Júpiter existe? Estou, ele diz, Júpiter não existe. Ela fecha os olhos, torna a abri-los: mas e as fotografias? Damião vira-se para a esposa: que fotografias? Ela diz: ora, fotografias, há imensas fotografias de Júpiter, já mandaram sondas espaciais para lá, não sabias disso? Não, não sabia, ele diz. A esposa tira o telemóvel da gaveta: pois, se eu te mostro agora as fotografias, acreditarias que Júpiter existe? De forma alguma, diz Damião. A esposa se levanta e encosta na parede atrás do colchão: e por que não acreditarias? Porque as fotografias não me apetecem, boceja Damião. A esposa estende o telemóvel, que quase encosta no rosto do marido: vê, fotografias de Júpiter, são da Nasa. Damião dá de ombros: podem ser lá umas montagens, com os computadores que eles têm hoje, nunca se sabe… Não posso crer no que estou a ouvir, diz a esposa. Mas Damião permanece quieto, como se dormisse um sono tranquilo.
Publicado por P. R. Cunha / 2 de fevereiro de 2021
Notas do mato
Ligeiras observações (& imagem) durante a primeira de duas viagens a Pirenópolis.
Ensina-nos o Henry James que só existe uma receita: gostar imenso do que se cozinha. O resto é autoexplicativo.
Quem na cidade ainda se demora diante das miudezas ditas (abre aspas) «naturais» (fecha aspas); o capim que cresce nas brechas de uma pedra, ou a flor roxa que deita na extremidade de um galho solitário.
A fotografia de uma mata arborizada é muito bonita — porque não vem com cobras, mosquitos, morcegos nem outros bichos vampirescos. É a idealização da natureza, mais do que a natureza em si.

Cada um precisa de criar, consciente ou inconscientemente, objetivos/metas/narrativas (dir-se-iam ilusões) à laia de lidar com o vazio cósmico que a nossa espécie bípede dotada desta estranha capacidade de ruminar mostra-se condenada até à morte. Acontece de muitas vezes (92,3% das vezes, embora essas coisas sejam sempre difíceis de serem calculadas) existir discrepância nos chamados «sonhos individuais». Alguém diz: tenho vontades de ir viver para o campo, cultivar a minha chácara, etc. O outro que escuta e que nunca quis viver para o campo e muito menos cultivar chácara responde: não devias fazer isso, não vale a pena, a manutenção, o trabalho, o custo, esquece, investe noutras coisas…
…a réplica poderia de ser: independentemente da vossa opinião (objetivo/meta/narrativa — ilusões), comprarei a chácara na mesma.
Uma cobra desengonçada tenta atravessar o azulejo escorregadio da varanda. Por diversos motivos, identifico-me com a cobra.
Publicado por P. R. Cunha / 1º de fevereiro de 2021
Máximas (i)morais
¶ Sabe-se que muitos artistas pintam/escrevem/cantam sobre a morte para se anteciparem à perda de algum ser humano que lhes é caro. Talvez acreditem que agindo dessa forma conseguirão ludibriar a lâmina afiada da ceifadeira. Simulacro, ensaio, prevenções: quando acontecer, estarei preparado, etc. Mas algumas perdas são tão inesperadas, e devastadoras, e dolorosas, e absurdas, e catastróficas que nem mesmo quatro vidas inteiras de contemplação mórbida seriam capazes de anestesiá-las. Eis que, de súbito, o artista também fita o abismo, um náufrago à deriva, como tantos outros que boiam em redor.
¶ Talvez não seja assim tanta coincidência o fato de bons escritores se mostrarem péssimos políticos e bons políticos se mostrarem péssimos escritores.
¶ Os melhores trabalhos literários — contradizem-se.
¶ Um escritor que exibe de mais a própria biblioteca é como um bandido em fuga que deixa rastros do crime para a polícia.
¶ Não culpes a folha em branco pela tua falta de assunto.
¶ Escritor obcecado por elipses termina com livro invisível.
¶ Se o escritor compreende direitinho as próprias qualidades, não se aborrecerá quando alguém lhe apontar as próprias limitações.
¶ Os críticos odeiam o escritor que consegue exprimir em poucas palavras o que eles não conseguiriam em dezenas de artigos.
Publicado por P. R. Cunha / 28 de janeiro de 2021
Como todos os uniformes, este também era um disfarce atrás do qual ele poderia se esconder
O escritor não usa camisa com figuras porque [1] as estampas o incomodam (i.e.: irritam a pele do escritor com aquela camada de tinta arenosa); [2] tiram-lhe a atenção enquanto ele procura se concentrar no próprio trabalho (a visão periférica encontra a figura da camisa e o escritor distrai-se numa espécie de looping abismal — um pouco como acontece quando, antes de dormir, escutamos o gotejamento da torneira que deixamos ligeiramente aberta); [3] as figuras restrigem, datam a camisa, assim que o escritor enjoar da imagem estampada, nunca mais usará a camisa. O escritor, portanto, só usa camisas lisas, sem nada, nenhuma caricatura de revolucionário, logotipo de banda, tribais, representação de ídolos… Ao passo que esse minimalismo é bom para as finanças do escritor, visto que ele só se livra das camisas quando elas apresentam algum furo/defeito absolutamente irreparável.
Publicado por P. R. Cunha / 27 de janeiro de 2021
The gadget lover
(Song & lyrics by P. R. Cunha)
I’m alone in the global village
My pixel is hurting
With my hands over your keyboard
I’m alone in the global village
My pixel is hurting
With my hands over your keyboard
The gadget lover
I will buy it in some Apple store
But my memory is full
And I can’t download you
Publicado por P. R. Cunha / 26 de janeiro de 2021
Perspectivas ilógicas de um boneco
1. Quando leio as entrevistas da Paris Review, gosto de analisar com certo afinco os queixumes dos escritores. E é mesmo uma coisa extraordinária, pois sempre que me deparo com algum relato azedo, chego logo à conclusão de que já sofri disso: que o autor está enjoado de escrever, que a autora fica como que perdida depois de terminar o livro, que este está sem ideias (talvez para sempre), que a outra pensa em largar tudo e ir viver nenhures, que aquele ali passou anos a lapidar um único parágrafo para depois jogá-lo na lata do lixo, que aquela ali está para ser internada num sanatório… Diagnósticos que parecem corresponder exatamente ao meu teatro hipocondríaco.
2. Escrita e jardinagem, gosto imenso desta analogia. Vai-se devagar. De aí vêm os próximos passos, o desenvolvimento. Processo contínuo. Algumas plantas necessitam de determinados cuidados, porque frágeis. Outras, crescem por si (pensemos um instantinho nos cactos). Leva-se também em consideração o clima: flores sazonais, que gostam do calor tropical, ou preferem a temperatura mais amena das montanhas etc. etc.
3. Acontece que pensar não deixa de ser uma espécie de «acúmulo de experiências» — situações que encontramos no chamado mundo externo, outras com as quais nos deparamos ao abrir as páginas de um romance, quando ouvimos uma canção que nos atinge como flecha afiada (é Nietzsche), ou quando diante de um quadro de Chirico.

E depois de determinada altura, nosso bagageiro está tão repleto dessas experiências que acaba por transbordar. O sujeito que era pacato e comedido começa a ter uns pensamentos sinistros: por que me levanto de manhã?, por que vou me deitar à noite?, por que é que eu como?, por que leio as coisas que leio?, por que com alguns livros me entendo bem?, por que alguns livros não me dizem nada?, por que escrevo, todos os dias, praticamente à mesma hora, tomando café da mesma marca, mesma intensidade?, por que sinto raiva, compaixão (às vezes), indiferença (muitas vezes), melancolia/euforia?, por que essas perguntas têm respostas diferentes em momentos diferentes?, e por que a grande maioria delas fica sem resposta alguma?
Publicado por P. R. Cunha / 25 de janeiro de 2021
Fuga líquida
No fundo, no fundo, ninguém é normal, escreve Ignácio numa longa carta antes de desaparecer. O que se passa é que a sociedade e a cultura impõem regras, e as pessoas que conseguem segui-las serão consideradas «normais». E aqueles que não deram conta, aqueles que não se adequam, que não dissimulam, estes são os loucos, os depravados, os criminosos. Durante muitos anos, continua Ignácio, tive uma vida de relativo sucesso material. Bom salário, casa, automóvel importado, viajava com frequência para Düsseldorf, Madrid, Istambul, Santiago, ficava nos melhores hotéis, usava as melhores roupas, sapatos, relógios que custavam mais que apartamentos… enfim: uma daquelas existências generosas, com as comodidades que os executivos veneram etc. etc. Acontece que também sempre tive um fraco irremediável por bebidas, e me chamavam de alcoólatra, bebum, filho do capeta, beberrão, posto de gasolina, pé-de-cana, e quanto mais me rotulavam, mais eu enchia a cara. Então que quando você tem um emprego decente, uma vida promissora, quando você viaja por aí na primeira classe de uma aeronave do Oriente Médio, quando você tem um escritório muito bonito no trigésimo sexto andar de um edifício espelhado, em suma, quando você tem tudo, é complicado entregar-se aos prazeres do álcool sem que lhe passem um sermão conservador a cada gole, e dali a pouco a conjuntura se torna realmente insuportável. Alcoólatras que continuam bebendo não querem se ver livres dos problemas, eles se sentem até muito confortáveis com isso; alcoólatras, e falo por experiência própria, só querem ser deixados em paz, escreve Ignácio. E como nunca me deixavam em paz, resolvi adotar postura, dir-se-ia, suicida, resolvi largar tudo, sim, fugir, perder o emprego, perder a casa, as viagens, os automóveis de luxo, o learjet árabe, de forma que, quando eu voltar — se eu voltar —, e me pegarem entornando um copinho, espero a piedade que costumam oferecer aos fracassados, tolerância, receber uns tapinhas de condolência nas costas: pobre Ignácio, pobrezinho, perdeu tudo, misericórdia, deixem o homem beber, não o importunem, e tretas dessa natureza.
Publicado por P. R. Cunha / 22 de janeiro de 2021
Afirmações
Após mais uma noite sem sonhos nem pesadelos, Miguel Herz acorda sentindo-se vazio. Enquanto tira as remelas cristalizadas dos olhos decide que irá participar da confraternização da firma, que, na verdade, seria mesmo insensato não participar da confraternização da firma, conviver com os colegas da firma fora do ambiente de trabalho, jogar conversa fora com os funcionários da firma, mostrar-se um bocadinho sociável, quem sabe até beber um dry martini, flertar com Magdalena do setor de faturamento. Miguel Herz boceja e lembra que o chefe é lá um ser humano patético, menino-homem, infantilizado, irresponsável, como alguém assim pode ser chefe de firma? A verdade é que qualquer imbecil pode ser chefe de alguma coisa, Miguel Herz pensa. E, para ser sincero, será que alcançar as pessoas é algo realmente importante nos dias atuais?, estar por perto, marcar território, vê lá a futilidade dessas confraternizações, das festinhas de aniversário depois do expediente, da happy hour que de happy não tem nada, apenas almas frustradas à mesa de algum estabelecimento duvidoso a aproveitar bebidas alcoólicas um pouco mais baratas do que da praxe, gravata desabotoada, a preguiça, o tédio, isso é essencial?, imprescindível?, ir à confraternização da firma é realmente necessário? Miguel Herz agora está nas dúvidas.
Publicado por P. R. Cunha / 21 de janeiro de 2021
Café Lisboa
Estás com dores de cabeça porque sentaste perto da nossa antena wifi, disse a moça que trabalha no café. Ela olha para os lados como quem procura alguém perdido na multidão: ali está!, um sítio seguro para a tua leitura. Levou-me a uma mesa vazia, longe da antena wifi. Antes de voltar à cantina, disse-me com voz didática: logo-logo essas dores passam, fica tranquilinho.
Atrás de mim, um jovem casal conversa sobre o futuro. Estudantes de engenharia [diz o rapaz] observam uma data de imagens do meu tio morto, depois instalam uma caricatura emborrachada do rosto do meu tio na cabeça de um robô. O robô [continua o rapaz] é programado para simular as mesmas expressões básicas do meu tio: raiva, medo, tristeza, felicidade, supresa, nojo, etcétera, etcétera, daí conectam o HD do robô a um banco de dados com informações sobre o meu tio, coisas que ele costumava fazer quando era vivo, palavras que ele costumava utilizar. [O rapaz prossegue]: robô com o rosto do meu tio morto, com as características do meu tio morto, com os pensamentos, ideologias, ansiedades do meu tio morto, responderá aos estímulos exteriores tal e qual o meu tio fazia, alguém pode gritar «fogo!» e o meu tio-robô estremecerá de medo, talvez até saia correndo, ou uma bela mulher lhe diz palavras carinhosas, ao que os lábios do meu tio-robô sorriem um sorriso apaixonado. [A namorada do rapaz coloca as mãos no queixo — não consigo perceber se num sinal de interesse ou indiferença.]
Publicado por P. R. Cunha / 20 de janeiro de 2021
Insaciável desejo de imagem
Corporações gigantescas que possuem mais poder do que continentes inteiros, hackers de computador que lideram protestos anárquicos nas chamadas redes interconectadas, o corpo humano se transforma em ciborgue — aumentado/melhorado/desenvolvido por produtos químicos, próteses biônicas, implantes neurais, nanorobótica, realidade virtual, deslocar-se sem sair do lugar, auxílio medicamentoso para as devidas imersões em espaços artificiais («viajar» por França utilizando óculos elétricos enquanto toma pílula alucinógena: esteve em França ou tudo não passou de um sonho?).
Civil que trabalhou o dia inteiro chega em casa às 20h49 e busca alguma atividade para 1) esquecer que trabalhou o dia inteiro; 2) anestesiar-se, porque amanhã o ciclo recomeça. Ele olha para a estante com alguns punhados de livros, depois para o controle remoto jogado sobre o sofá da sala…
[Por mais que muitos escritores ainda prefiram endeusar as próprias obras, tratá-las como se fossem escrituras sagradas, a verdade é que, no fim de contas, o livro é uma ocupação-distração como outra qualquer.]
…Civil abre a geladeira, retira o suco de caju e toma no gargalo. Decide, mais uma vez, assistir às séries na Netflix.
Publicado por P. R. Cunha / 19 de janeiro de 2021
Finitude cósmica
Durante a Idade Média, observadores dos astros apontavam para o firmamento em busca de respostas às penúrias terrestres. Queriam medir a influência celestial, tomar notas, comparar os resultados com a classificação sugerida por médicos e filósofos da Grécia antiga, a saber: que a personalidade humana é governada pelos chamados quatro humores — sangue, fleuma, bile amarela e bile negra. Segundo os astrólogos, a Melancolia (que assolava os pensadores especulativos e aqueles que se dedicavam várias horas aos estudos), era filha de Cronos, deus do tempo e rei dos titãs que em Roma receberia o nome de Saturno. Os melancólicos, possuidores de um grande poder imaginativo, porém altamente suscetíveis, indivíduos propensos aos assédios de memórias febris, fantasmas, sonhos proféticos: o saturnino — sombrio, triste, provocado pelo chumbo. «Marcus de Siracusa era melhor poeta quando perdia a cabeça e perambulava alhures, macambúzio», quem nos diz é Aristóteles, possivelmente numa altura em que ele mesmo mostrava-se sob a influência de Saturno. Mais de dois mil anos depois, persiste a hipótese de que tédio, depressão (spleen), e até a loucura, podem, ou melhor, devem estar relacionados com a genialidade — ou, pelo menos, com uma sensibilidade artísticas mais apurada. A pessoa saudável desfrutará de certo equilíbrio das emoções, mas uma ligeira mudança na quantidade de «bile negra» seria o suficiente para induzir estados de tristeza, irracionalidade, apatia, desespero, ansiedade, e o melancólico, sinistro, fora de si, considerar-se-ia um súdito do planeta macabro. Para a epígrafe do livro Die Ringe des Saturn, Sebald escolhera este trecho da Enciclopédia Brockhaus: «Os anéis de Saturno são constituídos por cristais de gelo e provavelmente partículas de meteoritos que giram em faixas circulares ao nível do equador; é possível que se trate de fragmentos de uma lua que estivesse demasiado próxima do planeta e tenha sido destruída pelo seu efeito de maré (limite de Roche)». O campo magnético de Saturno, que, assim como o melancólico, é curvado para dentro, as forças descomunais da bola de hidrogênio e hélio, estão, aos poucos, a devorar as partículas que compõe o sistema de anéis. Gravidade saturnina termina de puxar os fragmentos do disco para si, queimando-os já nas primeiras camadas atmosféricas. Estima-se que esse processo de consumação dure cerca de 100 milhões de anos.
Publicado por P. R. Cunha / 18 de janeiro de 2021
Questões referenciais
Quando éramos pequenos e ainda brincávamos na rua, havia esse velho muito solitário que praguejava consigo mesmo. Ele morava no conjunto dois, mas raramente permanecia em casa. Saía cedo, voltava tarde. Todas as crianças achavam-no um bocado estranho e passamos a chamá-lo de «louco misterioso». Bastava ele aparecer e parávamos de jogar bola, ou de brincar de pega-pega, ou de contar sobre como tinha sido o nosso dia na escola. O «louco misterioso» está vindo, alguém sussurrava. E permanecíamos em silêncio, observando aquela triste figura a conversar com espectros invisíveis.
Dia desses flagrei-me a falar sozinho. Eu respondia à entrevista de algum suplemento literário de Moscou, e desculpava-me com a entrevistadora imaginária, pois que o russo não é a minha língua materna, eu disse, estudei russo, ou melhor, ainda estudo russo, mas estou longe de dominá-lo devidamente, ao que a entrevistadora imaginária dizia: de forma alguma, o teu russo é muito bom… e eu cá não percebia se isso era um elogio da entrevistadora imaginária, ou apenas uma, como se diz, batidinha nas costas, consolação (vais melhorar, continua com os teus estudos que vais melhorar), etc. Nessa altura, não pude deixar de lembrar do «louco misterioso». E que a única diferença entre nós dois, pensei, é que ele praguejava nas ruas, lá fora, e eu — por enquanto — só o faço diante do espelho.
Publicado por P. R. Cunha / 16 de janeiro de 2021
Águas passadas
Um lugar lhe marca profundamente — um país estrangeiro, digamos. Você chega a esse sítio, vive coisas incríveis, conhece pessoas notáveis, os funcionários do hotel lhe tratam com muito esmero, e depois você volta para casa. Então que dali a três, quatro anos você está sozinho no escritório, sente saudades daquele país estrangeiro, das coisas incríveis que viveu, das pessoas notáveis que conhecera, da comida, dos cafés, das noites com lua prateada, e você quer voltar, sim, você precisa voltar, e você de fato compra passagem, reserva quarto no mesmo hotel de antes. Mas você esquece de levar Heráclito na bagagem, esquece que ninguém entra duas vezes no mesmo rio, ninguém visita duas vezes o mesmo país, porque quando retornamos, tudo já se modificou, e o próprio viajante já é outro. Agora as pessoas não são mais notáveis, elas apenas falam, esbarram-se e se vão, os funcionários do hotel se mostram indiferentes, o café da esquina é amargo, a lua está encoberta por nuvens tempestuosas. Não resta mais nada, e apetece-lhe fugir depressa desse teatro grotesco.
Publicado por P. R. Cunha / 15 de janeiro de 2021
Epitáfio
Dona Miranda abriu as cortinas da janela da sala e apontou para a portaria do bloco de apartamentos à direita: vê ali, Breno, Tobias continua a andar de um lado para o outro. A claridade da manhã incomodou as vistas de Breno, que afundou na cadeira, balbuciou qualquer disparate, ajeitou os óculos no nariz, dobrou o jornal, e, custosamente, como se a força gravitacional da Terra tivesse triplicado, levantou para ver o que se passava. Dona Miranda encostou-se no ombro côncavo do marido: ali, Breno, vês? Vejo…, ele disse. Dona Miranda começou a soluçar: pobrezinho, deve ter perdido os botões de uma vez por todas. Breno então fechou os olhos e imaginou Tobias a andar daquele jeito durante todo o tempo, horas, e horas, e dias, e meses, de um lado para o outro, sempre no mesmo sítio, sempre nas mesmas direções, sempre a esperar não se sabe bem o quê, para lá, para cá, e depois de tanto caminhar, os passos de Tobias teriam criado uma espécie de sepultura, e quem o observasse naquelas atitudes absurdas só conseguiria ver a pontinha da cabeça grisalha do Tobias a sobressair, cada vez mais imersa no buraco. Queres café?, Breno escutou a esposa perguntar da cozinha.
Publicado por P. R. Cunha / 14 de janeiro de 2021
Classe artística
Um cineasta muito talentoso que gostava de correr diversos riscos como dirigir em alta velocidade, nadar com tubarões, entornar garrafas de uísque nos bares da periferia, prender a respiração debaixo d’água por um tempo estranhamente longo, fumar haxixe, foi aconselhado não só pelos médicos, mas também por toda a classe artística, inclusive por uma experiente atriz com quem tivera um caso em 1997, foi aconselhado, portanto, a adotar um modo de vida mais ameno, seguir rotinas mais saudáveis, do contrário ele morreria cedo, de certeza que morreria muito cedo, insistiram, ao que o cineasta, um pouco a contragosto, resolveu seguir os conselhos de toda a gente, comprou uma pequena residência rural longe da cidade à guisa de, como se diz, «baixar o facho», e antes mesmo de completar a primeira semana da mudança, isto é, de uma vida agitada para uma vida tranquila no campo, o cineasta, que estava a analisar despreocupadamente o tamanho da propriedade que adquirira, foi atingido na cabeça por uma pedra que, segundo nos diz a perícia, caíra do teto do abrigo abandonado dentro do qual o cineasta, ao que parece, procurava se proteger do forte calor de verão. Como todos os funcionários da residência rural estavam de folga, visto que era sábado, o corpo frio do cineasta só foi encontrado na segunda-feira de manhã por um ordenhador de vacas leiteiras. Assim que souberam do ocorrido, os jornais começaram a publicar as devidas homenagens póstumas, inclusive uma carta aberta da mesma classe artística, que censurara o cineasta por ter trocado as aventuras e as conveniências da cidade por um refúgio campestre absolutamente sem cabimento.
Publicado por P. R. Cunha / 13 de janeiro de 2021
Trate de olhar ao redor
À medida que a idade avança, o escritor adquire para si novas experiências. Talvez ele ainda não queira falar sobre isso, sobre o próprio passado, talvez ainda não seja a altura de fazê-lo. Mas ele toma notas avulsas, ele arquiva essas notas, coloco-as numa gavetinha à parte. O escritor acumula observações e também se dilata — erra, aprende, conserta-se, arrepende-se: quem o diz são as linhas profundas no rosto, a têmpora que começa a ficar grisalha, os trejeitos taciturnos, cada mancha na pele, os arranhões, as feridas, as cicatrizes que só a custo se fecham.
Publicado por P. R. Cunha / 12 de janeiro de 2021
In memoriam
Morei na Rússia em 2009. São Petersburgo, que também já se chamou Petrogrado e Leningrado. Às vezes demoro para perceber que isso foi há doze anos. Uma criança universitária que achava que sabia tudo, a perambular com câmera fotográfica pela cidade do Dostoiévski enquanto a neve batia-lhe às costas. Aquela petulância juvenil que ilude, que permite criar expectativas irracionais: eu era o centro do universo, etc. E, como diria Calvino, todas as promessas são agora recordações.
Publicado por P. R. Cunha / 11 de janeiro de 2021
De dentro para fora
Podemos caminhar pelas ruas, há uma praça movimentada, e paramos para observar os seres humanos que andam de um lado para o outro, como que sem rumo específico, cada um com os próprios problemas para resolver, dores, separações, perdas, enganos, mentiras, dívidas, fracassos. Se estou com o meu bloco-notas de capa emborrachada que comprei em Niterói, sento-me num banquinho qualquer, tiro a caneta do bolso e escrevo. É quase como se a realidade hibernasse. As palavras e os meus pensamentos parecem ser as únicas coisas que realmente importam, enquanto qualquer pormenor exterior soa como uma distração irrelevante. E quanto mais dores, separações, perdas, enganos, mentiras, dívidas, fracassos, mais poderosa será essa imersão ficcional. Porque, diante das páginas do meu bloco-notas, posso ignorar — ou recriar — as complexidades que me chegam. E consigo conter, mesmo que brevemente, o caos do mundo.
Publicado por P. R. Cunha / 10 de janeiro de 2021
Potencialidades
O segredo não está necessariamente no «morrer cedo», mas talvez no «morrer antes que você se torne um estorvo para toda a gente». É raro vermos uma multidão nas cerimônias fúnebres dos velhos.
* * *
Nós podemos tentar adivinhar o que alguém pensa ou sente e nunca sabermos ao certo o que de facto se passa dentro da cabeça desse outro ser humano. E, por vezes, a própria pessoa procura explicar-se, diz: estou pensando nisto, estou sentindo aquilo, sem, no entanto, lograr êxito na empreitada. Pois, mesmo que não perceba, está a fazer uma edição desses sentimentos/pensamentos, torna-se outra ao verbalizar-se. E o que nos resta é apenas uma mera aproximação — uma espécie de sinopse em migalhas daquilo que poderia ser.
Publicado por P. R. Cunha / 9 de janeiro de 2021
Waves
Depois de assistir a uma entrevista com Lars von Trier em que ele não parava de se tremer por conta dos medicamentos que tem tomado, sento-me para compor música. Como da praxe, consigo sentir os espectros da banda Doves respirando no meu cangote.
O tema se chama (provisoriamente) Did we go too far. Ainda não faço bem a ideia do que pode acontecer com isto até à versão final — ou mesmo se haverá versão final. Mas, pelo menos, gravei as vozes, o que é sempre um pequeno prodígio, visto que morro de medo de cantar.
Um special thanks para o Rafael Mnstr, que me ajudou um bocado nos processos de organização desta sopa de instrumentos e ruídos.
Publicado por P. R. Cunha / 8 de janeiro de 2021
A equação dos noticiários
O tempo será minuciosamente calculado, você começa com alguma catástrofe — ataque terrorista, desastre de helicóptero, a criança que roubara o rifle do pai e resolvera atirar nos coleguinhas da escola, florestas a arder, assaltos, políticos a tomar decisões apocalípticas etcétera etcétera —, depois, alguma observação a respeito, não precisa de se demorar muito nos pormenores, as imagens devem falar por si mesmas, então você coloca o ponto de vista do oponente, da outra parte, do antagonista, poucos segundos, porque ninguém liga muito para o que essa gente fala, afinal, são os inimigos, e a história, assim como o presente, e o futuro, será escrita pelos vencedores, os heróis, os bons, os santos, os deuses, os bilionários. É de suma importância que o receptor (aquele que recebe a notícia) consuma (i.e.: engula) tudo isso sem que consiga tirar conclusões claras, ou seja: que se mostre ainda mais perdido/confuso do que estava antes de começar a assistir ao noticiário.
Publicado por P. R. Cunha / 7 de janeiro de 2021
Padrões reconhecíveis
Como se sabe, o xadrez e a escrita têm muito em comum. Ambos são jogos — com peças, com palavras, com disfarces. O tabuleiro é folha a preto-e-branco. Se compreendemos os movimentos, traçamos determinadas estratégias, movimentamo-nos de determinadas maneiras. Um taxista que passe diariamente pela mesma avenida saberá nos dizer detalhes importantes sobre a pista: quando estará engarrafada, mais tranquila para o tráfego, repleta de pedestres, quais semáforos demoram uma pequena eternidade, e assim por diante. O mesmo acontece com o jogador e com os escritores. Repetem-se, escolhem certas ruas, a abertura de sempre, os temas de sempre, dobram esquinas familiares, cercam o rei com a rainha. Lembro exatamente da minha primeira partida de xadrez: foi aos oito anos, contra o meu avô. Era uma época boa, em que eu apreciava imenso o facto de ser o caçula da família, o menorzinho, o mimado, o xodó. Mas, hoje, não sei bem o que pensar: agora que também estou a ficar velho, e todos os meus parentes estão ainda mais velhos, e paira essa profunda infelicidade, essa angústia de que a qualquer momento posso perder alguém. Todo o ano é isso.
Publicado por P. R. Cunha / 6 de janeiro de 2021
Nem todos os parágrafos são iguais
O sujeito que escreve mete-se consciente e inconscientemente em apuros, atormenta-se diante da falta de sentido das coisas, dedica-se com afinco ao estudo da angústia, depois sente a dor das feridas abertas, como se diz, sente a ira invadir-lhe as entranhas — o sujeito que escreve está então furioso, e pretende-se descrever justamente para amenizar todo esse caos que atrai para si: até que o ciclo recomece, etc.
Um hipopótamo está a andar pela sala do apartamento quando o telefone toca. O telefone é modelo antigo, vermelho, com números dispostos ao redor de um disco de plástico transparente. Acontece que o hipopótamo tem lá umas patas muito avantajadas, com dedos (se é que podemos chamá-los de dedos) gordos e imprecisos. Ele até tenta atender o telefone, tirar o auscultador do gancho, dizer algumas palavras de hipopótamo, mas a cena é patética. Depois da frustrada tentativa, o hipopótamo esquece o telefone no chão e — dir-se-ia bastante despreocupado — continua a andar pela sala do apartamento.
Em 1929, o sr. Keynes, que na altura morava em Cambridge, escrevera para a esposa: é isso, querida, deus chegou — eu o encontrei na estação, a sair do trem das cinco e quinze. Deus era um homem franzino e desorientado. Chamavam-no de Wittgenstein.
Publicado por P. R. Cunha / 5 de janeiro de 2021
Velho ano novo
Ainda não escrevi em 2021. A bem da verdade, as passagens de ano não me comovem mais: nenhuma reflexão elaborada, nem expectativas, planos, bons presságios, nada. Apenas uma qualquer letargia, autodesprezo. Estou sentado na poltrona que fica na varanda da casa da minha mãe enquanto a Jéssica, o meu cunhado, a noiva do meu cunhado e o primo da Jéssica jogam baralho. Eles riem, conversam, fumam o vape. Chove muito. Há pouco estávamos todos na piscina. Tenho a bermuda molhada. Os cantos da folha na qual eu escrevo também estão molhados, sou muito desatento. Acendi os postes do jardim. Ainda não é tão tarde, mas a chuva, o céu cinza, a luz amarela das lâmpadas dão a impressão de noite. — 4h30 da madrugada, domingo: a Jéssica disse que não conseguia dormir, e que iria para a sala de televisão distrair-se. Tentei pegar no sono novamente, e como também não dei conta, fui fazer companhia a ela na sala. Jéssica ficou aborrecida (de forma branda) quando me viu todo descabelado, e pediu para que eu voltasse para o quarto e tentasse dormir. Não dei ouvidos e deitei no sofá. Alguns minutos depois, porém, voltei para o quarto e dormi.
Publicado por P. R. Cunha / 4 de janeiro de 2021
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