Blogue — 2024 (arquivo)

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Pensamentos mínimos (quatro)

O apaixonado — pobre e irresistível criatura agridoce.

Publicado por P. R. Cunha / 31 de dezembro de 2024


Pensamentos mínimos (três)

Durante décadas menti para mim mesmo e disse que se encontrasse uma caneta decente estaria no mesmo nível de Paul Auster.

Publicado por P. R. Cunha / 30 de dezembro de 2024


Pensamentos mínimos (dois)

Sentes a foice afiada da inutilidade apenas nos períodos de crise total.

Publicado por P. R. Cunha / 29 de dezembro de 2024


Pensamentos mínimos (um)

Como a tristeza que fica ao fim de uma festa de aniversário.

Publicado por P. R. Cunha / 28 de dezembro de 2024


Agrados

Construir mundos, moldar personagens, dizer o indizível, fitar o abismo sem sair do próprio escritório — a verdade é que poucos sentimentos se comparam à satisfação de se ter uma manhã literária particularmente produtiva.

Publicado por P. R. Cunha / 27 de dezembro de 2024


Retrospectiva 2024

Eis que chega aquela altura em que o tipo que escreve começa a ruminar sobre o que fez, o que deixou de fazer e o que poderia ter feito durante o ano. Esta é a quinta retrospectiva deste blogue e fico com a sensação de que é mesmo verdadeiro aquele adágio que diz «não é fácil deter e interromper uma inundação após ter sido posta em marcha» — o cérebro se acostuma à aprazível rotina literária (com todas as miudezas relacionadas [cafés, leituras despretensiosas, passeios oceânicos, etc.]), a escrita como que entra no modo fluxo de consciência, quer mais, sempre mais, e percebe-se um estranho vazio quando as palavras decidem ficar em silêncio. Escrevi absurdos, tragédias, comédias, ficção, autoficção, teatro, haikus, escrevi as mesmas coisas em contextos diferentes, e se me repeti foi também porque a memória vacila. Mas o lado bom do esquecimento é que uma história contada cem vezes ainda me sorri como novidade fresca.

Portanto, em 2024: publiquei 276 textos, 30.334 palavras, 150.807 caracteres (sem espaço) — os meses mais produtivos foram março e outubro, e o menos produtivo, julho (com o coração dilacerado).

Publicado por P. R. Cunha / 23 de dezembro de 2024


Breves entrevistas com escritores furiosos #14

[…]

«A mim que não sei fazer mais nada além de escrever, de ler, de copiar o estilo dos meus autores favoritos, reverberar as ideais desses meus autores favoritos, usurpá-los, violá-los, roubá-los, assaltá-los, leio algo e penso: gostava de ter dito isso, para logo depois, sem qualquer pudor, numa indecência constrangedora, deslocar-me até a minha escrivaninha e repetir com uma ou outra mínima alteração o que os meus autores favoritos escreveram, como uma vitrola transtornada, ou jukebox que tocasse sempre a mesma lista de canções.»

Publicado por P. R. Cunha / 20 de dezembro de 2024


Breves entrevistas com escritores furiosos #13

[…]

«Então acontece que o escritor é um tipo avoado por natureza, gosta de se perder em devaneios, e quando começa a perceber o que está acontecendo, desespera-se, porque as próprias ruminações foram longe, e agora o escritor tenta, como se diz, voltar à superfície, luta contra as forças gravitacionais do Sol Ocioso, debatendo-se dentro do traje espacial — e nessa agitação acabará produzindo uma obra de arte ou um delírio ilegível.»

Publicado por P. R. Cunha / 19 de dezembro de 2024


Breves entrevistas com escritores furiosos #12

[…]

«Eu cá acredito que o escritor se faz de miserável de propósito, é tudo friamente calculado, porque, no fundo, o que o escritor sente é culpa, uma culpa que dilacera as próprias entranhas, culpa por ter imenso tempo à disposição enquanto a grande maioria sequer consegue escovar os dentes em paz, sente-se culpado, o escritor, por poder ler e escrever quando quiser, ir ao teatro, apreciar um concerto musical às terças-feiras, fazer curso de culinária, ir ao café de manhãzinha, e aqui talvez esteja a maior culpa de todas: o escritor tem a liberdade de, se lhe der na telha, não fazer absolutamente nada, dormir, ficar deitadinho no sofá como um Oblómov contemporâneo, e isso já é demais para a consciência problematizadora do escritor, ele não dá conta, não consegue justificar esses privilégios, daí começa a se humilhar, a dizer que está doente, que sofre de toda a sorte de transtornos, que a vida é um mar de lágrimas.»

Publicado por P. R. Cunha / 18 de dezembro de 2024


Pássaros mexicanos

Juan Nepomuceno Carlos Pérez Rulfo Vizcaíno está esparramado na rede instalada na varanda da própria casa no subúrbio da Cidade do México. Com a mão esquerda, o señor Rulfo segura o charuto cubano, com a direita, o caderno literário do periódico «El Universal». Clara Aparicio Reyes observa o marido enquanto tenta cuidar das hortaliças: estão a falar de ti novamente? Señor Rulfo faz que sim com a cabeça. Clara levanta e limpa as mãos no avental com motivos florais: querem que tu voltes a escrever romances? Juan Rulfo puxa a fumaça do charuto, olha para um ponto de fuga invisível onde beija-flor-de-cauda-azul plana no ar como se a gravidade não existisse.

Publicado por P. R. Cunha / 17 de dezembro de 2024


Breves entrevistas com escritores furiosos #11

[…]

«Eu penso que a minha cabeça é uma espécie de armário, um armário com gavetas limitadas, e preciso de estar muito atento para não preencher essas gavetas com quinquilharias, pois um armário abarrotado de ideias inúteis aniquila as pretensões de qualquer escritor.»

Publicado por P. R. Cunha / 16 de dezembro de 2024


Breves entrevistas com escritores furiosos #10

[…]

«Porque, claro, se pensarmos demasiadamente no que estamos a fazer, se refletirmos sobre a tarefa do escritor, ou como queira chamar, se o sujeito medita a respeito da própria escrita, a respeito do «valor», entre aspas, da própria escrita, e chega-se logo à conclusão de que não há nenhum «valor», novamente entre aspas, pelo menos não no grande esquema das coisas, e talvez o único sentido da empreitada seja o criar, o ato em si, o processo de colocar palavras num pedaço de papel e sentir-se bem ao fazê-lo, e o tempo ganha novas dimensões, o tempo corre e não percebemos, oh!, felizes demais os escritores que se satisfazem com essas pequenas alegrias primitivas, etc.»

Publicado por P. R. Cunha / 15 de dezembro de 2024


A história do casal Dinossauro

A história do casal Dinossauro é relativamente simples: o sr. Dinossauro queria estar, a sra. Dinossauro…, nem tanto.

Publicado por P. R. Cunha / 14 de dezembro de 2024


Breves entrevistas com escritores furiosos #9

[…]

«Ser solitário, estar solitário, estar só, ser só, é tudo uma quimera semântica, caprichos gramaticais, porque eu mesmo não vejo diferença, estou sempre sozinho, quando escrevo, quando na companhia de outras pessoas, sempre sozinho.»

Publicado por P. R. Cunha / 13 de dezembro de 2024


Breves entrevistas com escritores furiosos #8

[…]

«Coloco aqui o meu Mendelssohn, escuta, é bonito, Die Hebriden, cinco, seis, sete anos de trabalho duro, trabalho descomunal, trabalho miserável, e toda a sorte de sacrifícios para conseguir um romance ridículo de 150 páginas que será consumido e descartado num par de dias, a verdade é que também precisamos imaginar Sísifo exausto, esgotado, Sísifo irascível, temperamental, sim, é absolutamente necessário, à guisa de um bocadinho de honestidade filosófica, por assim dizer, imaginá-lo prestes a desistir, e, eventualmente, desistindo de facto, pois pensar nesses absurdos é purificador, leva muita coisa embora.»

Publicado por P. R. Cunha / 12 de dezembro de 2024


Breves entrevistas com escritores furiosos #7

[…]

«Manhã de inverno, quinta-feira, céu nebuloso, escuto a Sinfonia Nº 9 de Dvořák, penso: não é possível continuar, não quero continuar, não pretendo continuar, quantos verbos desperdiçados, a troco de quê — está tudo dito ali, naquele adagio-allegro-molto, e Dvořák não utiliza uma única palavrinha.»

Publicado por P. R. Cunha / 11 de dezembro de 2024


Breves entrevistas com escritores furiosos #6

[…]

«Não é exagero dizer que a minha escrita é diretamente influenciada pela chávena de café, e como preparar café está longe de ser a minha especialidade, acaba que, na maioria das vezes, a ficção que escrevo sai com um gosto terrível, amargo.»

Publicado por P. R. Cunha / 10 de dezembro de 2024


Breves entrevistas com escritores furiosos #5

[…]

«O problema é que, com o passar dos anos, o refúgio ideal, isto é: estar com os livros e eventualmente escrevê-los, com o passar dos anos o sarcófago fica tão confortável e irresistível que o escritor sente-se pouquíssimo à vontade quando perto de outras pessoas — não lhe apetece sair.»

Publicado por P. R. Cunha / 9 de dezembro de 2024


Breves entrevistas com escritores furiosos #4

[…]

«O objetivo é sempre evitar a paralisia, que está à espreita, que espera pelo menor deslize, paralisia que corrói toda a capacidade de criar literatura, ou antes, de criar qualquer coisa, daí vêm os rituais, a necessidade de domesticar-se, a rotina rigorosamente estabelecida, os convites recusados, os relacionamentos amorosos que não dão certo, sim, é sempre a paralisia, o medo de paralisia, o jogar-se de olhos fechados no abismo da escrita impossível.»

Publicado por P. R. Cunha / 8 de dezembro de 2024


Diários [sessenta e cinco]

E que capacidade —
para os sentimentos
mais contraditórios.

Publicado por P. R. Cunha / 7 de dezembro de 2024


Diários [sessenta e quatro]

A química do cérebro humano pode ser extraordinariamente intimidadora — os gatilhos, as fontes de entusiasmo, a quantidade de dopamina liberada, as ilusões, as frustrações, as eventuais narrativas desencontradas, e o dono do cérebro, aos bocadinhos, percebe que tornara-se um mero espectador.

O dono do cérebro, vulnerável diante dos imprevisíveis processos externos capturados pelo próprio sistema nervoso, volta-se cada vez mais «para dentro», e aqui está a perversidade cíclica da situação: voltar-se para dentro é justamente se aproximar do cérebro, ou seja, do agente causador de todas as complexidade que fazem o dono querer retrair-se.

Publicado por P. R. Cunha / 6 de dezembro de 2024


Diários [sessenta e três]

Tomei decisão arriscada e passei a frequentar o mesmo café diariamente. Tudo correu bem durante algumas semanas, até que um dos baristas que costumavam me atender disse: o mesmo de sempre, senhor P.? E essas palavras foram como punhaladas no meu coração. Quando algum funcionário do café descobre os meus hábitos de consumo, é já altura de trocar de estabelecimento.

Numa estrutura social em que o relógio é senhor das rotinas, um breve cochilo à tarde torna-se gatilho para toda a sorte de culpas e remorsos. O que pensas que estás a fazer?, dormes enquanto tantos estão a trabalhar nos empregos mais embrutecedores que podemos imaginar… [Etc.] Algumas semanas longe do meu manuscrito [i.e.: meu objeto-mágico de significância existencial, meu propósito imaginário que me ajuda a, como se diz, seguir em frente], algumas semanas longe do manuscrito, portanto, e a culpa se transforma em desconforto, o remorso vira tédio, e a liberdade sufoca mais do que um planeta sem atmosfera.

Publicado por P. R. Cunha / 5 de dezembro de 2024



Breves entrevistas com escritores furiosos #3

[…]

«Prosperar em meio à desordem parece-me o grande desafio, e não estou a falar apenas sobre uma desordem geográfica — escrivaninha caótica, mar de livros espalhados pelo gabinete, a casa que parece ter sido invadida por ladrões desastrados que de última hora esqueceram o que estavam querendo roubar —, falo de uma desordem mais ampla, aquela que também invade o cérebro humano como um vírus malicioso, a desordem de todos os dias, das pequenas e grandes burocracias, a desordem das obrigações sociais, do precisar estar lá fora quando o que se quer é estar cá dentro, longe e não perto, a desordem das noites insones, dos maus pensamentos, a desordem da paralisia, quando nem sequer uma palavra de consolo sai da pena do escritor…, em suma, eis o grande desafio: erguer-se quando tudo em redor é ruína.»

Publicado por P. R. Cunha / 4 de dezembro de 2024


Diários [sessenta e dois]

Guia de referência rápida do escritor — esta criatura de hábitos.

Método 1: disciplina, procrastinação, espontaneidade

* Acordar às 5h45 da manhã, escovar os dentes, preparar o café, sentar-se à escrivaninha antes das 7h;

* Certifique-se de que os canais do próprio cérebro estão devidamente abertos — até uma mensagem superficial numa rede elétrica revela qualquer coisa do íntimo da pessoa que a escreveu;

* Após entrar no modo piloto automático [a zona onírica de Tarkovsky], manter-se desligado do mundo real o máximo que conseguir [duas/três horas parecem ser o bastante];

* Descansar;

* Cultivar energias [exercícios físicos e mentais, leituras, filmes, documentários, etc.].

Nota: atormentado pela dúvida, pela hesitação, nunca inteiramente confiante no progresso que faço, desconfiado de que, a qualquer momento, tudo irá, como se diz, por água abaixo — prefiro as primeiras horas do dia para me concentrar, depois das 13h: torno-me inútil.

Publicado por P. R. Cunha / 3 de dezembro de 2024


Diários [sessenta e um]

Depois de determinada idade, o acúmulo de fracassos pode ser letal. Não é necessariamente a dor que uma queda causa, mas antes o olhar para frente e perceber que há cada vez menos tempo para levantar-se.

Poeta finlandês, muito impressionado com a entrevista em que cardiologista dissera que «durante uma vida, o coração humano baterá aproximadamente 2,5 bilhões de vezes», entrou em estado de afasia crônica por não conseguir mais parar de contar as batidas do próprio coração. Segundo consta, o poeta finlandês já teria contado mais de 32 milhões de batimentos.

Publicado por P. R. Cunha / 2 de dezembro de 2024


Diários [sessenta]

Antes de se despedirem do mundo, alguns japoneses preferem escrever jisei — isto é: poema da morte, ou um adeus à vida. Não deixam testamento, nem instruções, nem heranças, apenas duas ou três frases que sintetizam tudo. Outros, inclinados à prolixidade, recorreram ao romance-despedida: Um homem em declínio, de Osamu Dazai [o cronista do desespero], talvez seja o exemplo mais conhecido. Manuscrito confessional, autobiográfico, hedonista-niilista [se é que isso é realmente possível], o eu-novela, psicológico, trágico, otimista, resignado, catástrofes pessoais, a agonia de uma vida por vezes lamentável por vezes extraordinária.

Publicado por P. R. Cunha / 1º de dezembro de 2024


Breves entrevistas com escritores furiosos #2

[…]

«O que te fez ficar longe da escrita, perguntaram ao escritor, a mim me perguntaram, e são tantos os motivos para não escrever, bem mais do que os acumulados para o óbvio, que é manter o movimento da mão em andamento, um dia cheguei a pensar numa camiseta com toda essa aliteração meio maternal, afinal para que serve um escritor senão para escrever, escreve, danado, escreve, acaso serve para outra coisa?, me lembro de ouvir, de ler, de pensar, foi meu mantra por dois ou três minutos, mas então quando você percebe que todo o esforço feito ao longo de tantos e tantos anos culminou em nada, quando você percebe que não é apenas escrever que conta, um escritor tem de contaminar leitores, causar impactos e terremotos, tem que provocar desastres e mudanças súbitas de rumo, tem que parir palavras que provoquem estardalhaço e hecatombes, tem que dizer um negócio que não foi ouvido ou lido antes ou então é melhor mesmo, por absoluta incompetência, admitir que fracassou, que falhou, que serve apenas para nada ou coisa nenhuma, então é preciso partir em direção ao rumo oposto, fazer o contrário, virar assistente daquele personagem do Herman Melville chamado Bartleby, o escrivão, que respondia a todas as demandas do chefe com um sólido Acho melhor não, mestre da negativa, astro do vazio absoluto que afinal é o único sentido de tudo, admitir que nada tem qualquer propósito e em vez de ocupar o mundo com um ruidozinho praticamente inaudível, nenhum abalo no sismógrafo das emoções alheias (ou das próprias mais, diga-se de passagem, mas quem se importa com o que escritor pensa ou sente ou deseja ou quer?), então é melhor assumir de vez a totalidade da negativa, ecoar o patrono de todos os escritores do Não, o Bartleby interno que aluga o quarto adjacente dentro do coração de cada sujeito metido a escrevente, e deixá-lo sair e ocupar todos os ambientes, assenhorar-se da casa inteira e dizer basta, dizer, com todas as letras, obrigado pela desatenção, senhoras e senhores, e desculpem o transtorno e o inconveniente que fui, mas peço boné, faço reverência meio marota, meio desesperada e despeço-me, senhoras e senhores, digo também, fantoche do sujeitinho, súdito do não original e da redundância, Acho melhor não, obrigado, até a próxima, mas não tem próxima, melhor não escrever mais, nunca mais, perdão, adeus, podem esquecer tudo o que eu disse e também e inclusive isso aqui que acabo de cometer como última insanidade.»

Publicado por P. R. Cunha / 30 de novembro de 2024


Breves entrevistas com escritores furiosos #1

[…]

«Eu mesmo não faço a ideia de quando comecei a me dedicar à escrita, isso foi há vinte?, trinta anos?, e mesmo hoje não suporto que me chamem de escritor, porque basta ouvir essa palavra que logo imagino um sujeitinho a assinar autógrafos numa livraria iluminada, e ele tem lá consigo um copo de latte macchiato do Starbucks, beberica o latte macchiato esse sujeitinho culto de suéter, assina umas baboseiras na folha de rosto de alguém, e faz pose, sim, muita pose, o sujeitinho coloca a mão no queixo, todo filosófico, e diz não saber ao certo quando lançará o próximo livro, porque escrever, diz o sujeitinho, escrever é uma tortura, escrever é vale de lágrimas, leva tempo, etc., etc., etc., de forma que prefiro não ser chamado de escritor, aliás, prefiro que não me chamem de nada, sou apenas um fantasma que vez ou outra senta-se à escrivaninha e mente para si mesmo.»

Publicado por P. R. Cunha / 29 de novembro de 2024


Diários [cinquenta e nove]

Em busca de uma certa espontaneidade, por vezes tento simplesmente sentar-me diante da página em branco e, como se diz, «ver no que vai dar». Mas acontece de minha mente estar já tão saturada de pensamentos que uma experiência assim [irrefletida/selvagem] é improvável.

A descoberta do inconsciente: há sempre qualquer imagem aqui dentro.

No galho de árvore
sem folhas
pássaro ensaia
uma canção estranha.

Escutemos o homem do subsolo: o fato é que, de vez em quando, quebrar alguma coisa também é muito agradável.

Para quem gosta de puzzles e jogos dessa natureza, remontar o próprio coração em pedaços até que não é assim tão mau. 

Publicado por P. R. Cunha / 28 de novembro de 2024


Diários [cinquenta e oito]

Observo dois sujeitos que estão sentados à mesa perto da minha. Um deles é a cópia de Ricardo Piglia — tão parecido que uma senhora se aproxima e pergunta: você por um acaso não seria o Ricardo Piglia? Ao que o homem responde: não, Piglia morreu em 2017.

Pessoas mais isoladas que não gostam de contato físico e têm dificuldade em se fazer entender.

Há algo de assustador quando vemos a fotografia de alguém que nos era caro, mas que, por algum motivo, deixou de fazer parte da nossa vida. Um encontro inesperado com uma pessoa dessas, digamos, à saída de um supermercado, é ainda mais grotesco.

Publicado por P. R. Cunha / 27 de novembro de 2024


Diários [cinquenta e sete]

Embora sejas capaz de ficar semanas calado no teu esconderijo, se tu sais para tomar um café, se irrompes na superfície, logo desandas a falar, falar, falar, e há quem pense: pobrezinho, esse aí enlouqueceu de vez.

A vida não oferece nenhum propósito, somos nós, com este cérebro demasiadamente problematizador, que precisamos de construir/cultivar algum sentido diante do nada.

Desde a tua adolescência alimentavas o sonho de ser escritor. Essa empreitada tornou-se o teu único objeto de desejos — e pensavas: a literatura hoje me salva através da leitura, amanhã me salvará pela escrita. Acreditavas realmente nessa âncora, nesse amor invencível. Mas como tudo mudou dentro de ti, não é mesmo?

Era uma casa repleta de alegrias, festas e esperanças. Agora, com quase todos os aposentos vazios, ecoam ali os teus passos solitários.

Publicado por P. R. Cunha / 26 de novembro de 2024


Diários [cinquenta e seis]

Com o tempo, tornei-me um especialista em capturar rastros: tudo surge de algum lugar, todas as frases que falamos, os pensamentos que pensamos, tudo é tomado de empréstimo, ou desenterrado, ou comprado, ou roubado, ou copiado, ou reciclado. A originalidade, portanto, é uma falácia.

[Nenhuma resposta ela deu, mas arregalou-me os olhos como que desconcertada.]

A depressão não é pré-requisito na formação de um escritor digno de nota. Mas passar por ela — e principalmente sobreviver a ela — faz com que a pessoa que escreve tenha contato direto com a total indiferença de todas as coisas. A depressão, em suma, é elemento primordial nas tentativas do escritor de compreender melhor o absurdo de ser humano.

Sempre me surpreendo quando uma mulher me diz eu te amo. Na verdade, sempre me surpreendo quando escuto a frase eu te amo, independentemente de quem a diga.

Publicado por P. R. Cunha / 25 de novembro de 2024


Diários [cinquenta e cinco]

A previsibilidade gera certo conforto — por mais que o caos esteja sempre prestes a bater à porta.

Exteriormente, diz o transeunte, tudo em ti é idêntico à aparência «de antes», mas só posso imaginar que a realidade interna [os demônios que não te deixam dormir] é de um assombro imenso.

Os meus fantasmas vagam pelos corredores desta casa: aqueles outros que eu poderia ter sido se a minha vida tivesse tomado cursos diferentes. E se meu pai não tivesse morrido no desastre de automóvel? E se eu tivesse me tornado diplomata? E se eu ainda trabalhasse na redação de jornal?

Quando penso na finitude deste diário. Pois pressinto que, ao finalizá-lo, não haverá mais nada a procurar [isto não é mais vida, senhoras e senhores, e sim o começo da morte].

Gostas de construir o edifício, mas não te apetece terminá-lo [muito menos morar ali dentro]. Um ideal: edifício com andares infinitos [um pouco como a Sagrada Família de Gaudí, sempre em processo de construção].

Publicado por P. R. Cunha / 24 de novembro de 2024


Diários [cinquenta e quatro]

Passei a trabalhar esporadicamente em contos antigos, tentei regras novas, técnicas velhas, descartei palavras, ceifei parágrafos, resgatei aforismos, me humilhei, me exaltei, disse a mim mesmo: sou o melhor escritor vivo deste planeta [e também disse a mim mesmo: sou a pior coisa que já aconteceu a este planeta].

Numa tentativa de conferir sentido à nossa existência, envolvemo-nos em determinados projetos, e todos os dias passam a ser dias de trabalho, e queremos nos dedicar ao projeto a tempo inteiro para, como se diz, não perdermos o fio da meada. A continuidade aqui mostra-se muito mais crucial/importante do que a «genialidade» [palavra horrorosa].

Publicado por P. R. Cunha / 23 de novembro de 2024


Diários [cinquenta e três]

Enfrentar a noite é como combater um gigante que nem sequer se dá ao trabalho de notar que ali embaixo há alguém — no caso, eu. O indiferente gigante da depressão, e todas as noites preciso de encarar aqueles olhos de morte.

Filosofar é mesmo aprender a morrer? Quem à beira da morte consegue dizer algo realmente edificante?

Robert Burton escrevia sobre a melancolia para não ser engolido pelas garras da tristeza, Montaigne tomava notas a respeito das próprias doenças à guisa de esquecê-las.

Andar com a ponta dos pés, repetição de sons, observar as próprias mãos, irritabilidade, falta de habilidade em demonstrar afeto/empatia.

Publicado por P. R. Cunha / 22 de novembro de 2024


Diários [cinquenta e dois]

Escrever todos os dias, de preferência sempre à mesma hora, escrever obsessivamente, escrever para anestesiar-se, escrever para fugir, para voltar, para lembrar, para esquecer de si mesmo — costume sagrado [por vezes incompreensível para quem observa de fora].

Fui ao cinema com Natasha. Antes de começar o filme, como se estivesse a falar com algum interlocutor invisível, ela me disse: se tu tens mais de trinta e cinco anos e acordas sem qualquer vestígio de tristeza, é porque estás já mortinho por dentro.

A felicidade, definitivamente, não é um direito inato.

Publicado por P. R. Cunha / 21 de novembro de 2024


Diários [cinquenta e um]

Necessidade de manter rotina específica: qualquer mudança no cotidiano pode incomodar imenso.

Era como um último alento, longa jornada seguida por silêncio assustador: um pouco como quando terminamos de ler um romance de Dostoiévski.

Uma vida realmente se desenrola com o tempo, do início [nascer] ao fim [morrer]? Uma vida torna-se gradualmente mais rica com o acúmulo de experiências, felizes e/ou infelizes? Será assim tão linear, tão óbvio, tão previsível?

Inflexibilidade na forma de agir, dificuldade para lidar com mudanças, sofrimento para mudar o foco de determinadas atividades, pouco ou nenhum interesse em interações sociais, grande rigidez com rotinas e alimentação.

E quando estou a me dedicar a este diário, é como se eu não pertencesse mais a mim mesmo, e com estas palavras avulsas, a realidade da minha existência física é ultrapassada — transformo-me em qualquer coisa parecida com um espectro-vivo.

Publicado por P. R. Cunha / 20 de novembro de 2024


Diários [cinquenta]

Eu caminhava no centro da cidade e passei por uma dessas guaritas de estacionamento. Notei que havia um ser humano lá dentro. Fazia um calor absurdo, até o tempo estava com preguiça, o ar infestado de poeira e fumaça que saía das traseiras dos veículos. O homem dentro da guarita parecia paralisado. Por vezes, movia lentamente a cabeça de um lado para o outro para vigiar qualquer coisa no estacionamento: não levava consigo nenhum livro para ler, nenhum bloco de anotações, palavras cruzadas, caneta, nada. Apenas um homem sentado por horas dentro de uma claustrofóbica guarita de estacionamento. Se essa cena não é a representação fidedigna na palavra tédio, o que seria?

Publicado por P. R. Cunha / 19 de novembro de 2024


Diários [quarenta e nove]

Passo horas a escutar umas rádios dos anos 1940 na internet e fico me achando um completo imbecil. Que tipo de nostalgia absurda é essa que por vezes sinto? Nos anos 1940, nem meus pais ainda eram vivos.

Construí personagem de mim mesmo à guisa de me defender. A armadura até que me protegeu durante alguns anos, mas também ela começou a enferrujar-se [e as flechas entravam pelas rachaduras].

Recorremos ao diário para [re]criar nossas próprias versões daquilo a que chamamos de realidade — e, assim, mesmo que artificialmente, tentamos dar algum sentido às coisas que nos rodeiam. Eu sou personagem cortado em pequenos pedaços, milhares e milhares de pedacinhos dispersos, o que dificulta bastante a [re]construção.

Publicado por P. R. Cunha / 18 de novembro de 2024


Diários [quarenta e oito]

A minha escrivaninha, neste exato momento: livros amontoados desordenadamente, materiais destinados a um trabalho de maior fôlego que há muito já fora abortado pela minha falta de vontade de levá-lo adiante, etc.

Neste ponto Tolstói tinha imensa razão: as alegrias se assemelham, já os fracassos têm mil faces.

MICROCONTO: A imagem de um intelectual melancólico que durante horas pensara seriamente em como acabar com a própria vida e que agora simplesmente busca uma escadinha para procurar na biblioteca os tomos de As aventuras de Sherlock Holmes.

Hipersensibilidade aos sons ao redor, fonofobia — desconforto causado por determinadas frequências sonoras.

Publicado por P. R. Cunha / 17 de novembro de 2024


Diários [quarenta e sete]

Podemos nos distanciar da escrita, podemos tentar fugir de forma racional, podemos tentar nos tornar outra pessoa, dedicar-nos a um trabalho convencional, ter um cotidiano igualmente convencional, mas a escrita estará sempre ali, à espreita, e ela vai nos puxar de novo, mais cedo ou mais tarde, ela vai nos engolir, isso é certinho.

Padrões restritos e repetitivos de interesses e atividades — horas a realizar a mesma tarefa.

Ele [eu] descobriu [descobri] que a única maneira de não se [me] sentir uma pessoa ruim, e de não magoar as pessoas, era isolar-se [-me] e ter uma vida social cada vez mais reclusa.

Café do centro cultural. Distraído, tomo notas a respeito de um ensaio de Thomas Bernhard. Quando levanto a cabeça, lá estava ela — deslumbrante. Nossos olhos se encontram e ficam estáticos por alguns segundos, o suficiente para fazer meu coração palpitar. A desconhecida então passou, e, obviamente, não falamos nada.

Publicado por P. R. Cunha / 16 de novembro de 2024


Diários [quarenta e seis]

Escrever este diário tornou-se tudo para mim, sobrepujou todas as outras coisas — que de repente não passavam de miudezas insignificantes. Nada mais me importava, e passava todas as horas do dia a pensar neste diário, em como deixá-lo cada vez melhor, em como eliminar qualquer vestígio de falha. Sim, o diário tornou-se a minha obsessão e durante um período considerável de tempo, confesso, cheguei mesmo a esquecer da minha própria condição. 

Certa mulher me convida para sair e eu separo a roupa com a qual pretendo encontrá-la. De última hora, a mulher desmarca o encontro. A roupa, porém, permanece sobre a cama — é uma cena solitária.

Publicado por P. R. Cunha / 15 de novembro de 2024


Diários [quarenta e cinco]

A tua incapacidade de chamar a ti mesmo de escritor. Quando alguém pergunta: qual a tua ocupação? Nunca respondes: sou escritor. Dizes lá outra ladainha: freelancer.

Em miúdo, tua avó te alertara — é uma existência dos diabos, a do escritor. Ela mesma escrevia poemas:

Compreendo
que estou condenada
a me equivocar
até à morte.


Certo embaraço diante do ócio? Se querem saber em que tu trabalhas, esperam algo como: sou médico, empresário, economista, arquiteto. A culpa de Oblomov ao dormir à tarde, enquanto tantos são dilacerados pelas engrenagens da fábrica social.

Em suma — não se meta no bosque da escrita, você se perde.

Publicado por P. R. Cunha / 14 de novembro de 2024


Diários [quarenta e quatro]

Ler algumas centenas de livros, copiar descaradamente o estilo dos escritores favoritos — não há muito segredo.

Há períodos terríveis em que até uma simples cadeira vazia ao café é capaz de causar-te as maiores perturbações.

À guisa de cuidado próprio, todo o motociclista acaba por tornar-se um meteorologista amador. Abre a janela, olha o céu: é um dia bom para o passeio de motocicleta. Ou então: estas nuvens cinzas e carregadas não me apetecem.

Calha de às vezes o motociclista arriscar [é coisa de sua natureza]. Desaba uma tremenda tempestade, ele volta encharcado e promete a si mesmo não se arriscar mais.

Pode acontecer de um livro [assim como determinada pessoa] não ser necessariamente uma obra ruim — apenas apareceu no momento inadequado.

Noite insone cobra altos custos. O dia seguinte desprovido de qualquer sentido, um cansaço intrínseco, tudo te irrita, tudo te aborrece [ages lá como uma criança emburrada].

Publicado por P. R. Cunha / 12 de novembro de 2024


Diários [quarenta e três]

A escrita — como qualquer outro exercício que exija foco/disciplina — por vezes cansa e o sujeito que escreve está exausto, precisa de respirar um bocadinho. Durante o período de repouso, invade-lhe um intenso desejo de ruptura, de, como se diz, «jogar tudo para o alto» [para o lixo]. Às favas com esta atividade grotesca que me suga os últimos mililitros de sangue. Porém, passam-se alguns dias, e, de cabeça fria, lá está ele novamente a tomar notas para uma narrativa qualquer.

A inércia te fez bem. E agora recobraste o apetite.

Tornar-se invisível, tentar outras coisas, longe, nenhures, etc.

Da correspondência entre dois filósofos romenos nos tempos de União Soviética: camarada, vê isto…, hoje escrevi tanto que minha caneta explodiu [que imagem excelente!].

Publicado por P. R. Cunha / 11 de novembro de 2024


Diários [quarenta e dois]

Esta condição de ausência intocável e livre de ansiedade — cada vez mais rara, porque «deformada» pelas interferências externas [ruídos, que fique bem claro, causados por ti mesmo].

Meus passeios pelos pequenos vilarejos às margens da cidade de São Petersburgo. Em Krasnoye Selo, conheci Masha, por quem me apaixonei durante aproximadamente setenta e cinco horas. Ao nos despedirmos, com lágrimas nos olhos, ela disse num russo impecável: tens meu coração por astro, e será sempre assim. Isso se passou em 2009.

[Poucas tristezas se comparam àquela que sentiste ao voltar sozinho para o hotel na Avenida Nevsky.] Todo o amor desproporcionalmente inebriante enlouquece — amor louco pelos livros, pela escrita, por uma russa impossível.

Eis a vida em síntese: equilibramos um copo de vidro sobre a cabeça e fazemos de tudo para que o copo não se espatife no chão.

Publicado por P. R. Cunha / 10 de novembro de 2024


Diários [quarenta e um]

Não importa o que aconteça na vida do escritor, ele vai tentar de toda as formas apontar a bússola para a mesma direção — a saber: o próprio escritório com a presença ilustre de centenas de amigos de papel.

Estado de espera como importante etapa no «processo criativo» [espero na recepção do oftalmologista e escrevo algumas linhas no meu bloco-notas, espero a mensagem de uma amiga e leio H. P. Lovecraft, já Allan Poe me faz companhia enquanto o brownie está a assar no forno].

Numa palavra: a espera nunca é ruim se temos tempo o suficiente para esperar.

[Sono artificial, como em Valéry.] Procuro estar em lugares de suspensão [os cafés como arquétipos ideais para este tipo de espaço geográfico], lugares em que posso me desvencilhar do presente — não para sempre, alguns minutos de «ausência» e a mágica acontece. Quando desperto, o sentimento da praxe: náusea. Sou este alguém e não vários-outros, as opiniões alheias, a política, as mesquinharias, guerras, crises econômicas, tudo isso invade e aniquila cada vírgula dos meus pensamentos.

O silêncio ausente, portanto, é mais do que simples prática meditativa, é antes de qualquer coisa uma crucial estratégia de autodefesa.

Publicado por P. R. Cunha / 7 de novembro de 2024


Diários [quarenta]

Estive com K. ontem à tarde. Ela me disse: experimentei cogumelo pela primeira vez e vi meu pai, que, como você bem sabe, morreu num acidente aéreo em maio de 2018.

K. comentou também que havia desistido de ser estóica: os ensinamentos dessa gente funcionam à perfeição se não estás a passar por nenhuma dificuldade, até que somos arremessados para um abismo de dores incuráveis e a filosofia cor-de-rosa desmancha como um castelo feito com bolhas de sabão.

«Por exemplo, tenta lá agir como um estóico depois da morte de um filho», disse K., «experimenta ficar sentado, sozinho, silêncio absoluto, apenas com os teus terríveis pensamentos sobre a morte do teu filho, dois dias depois da morte do teu filho, sim, dois dias depois de ter ido ao instituto médico legal reconhecer o corpo do teu filho, vê se isso te apetece», ela disse e riu-se.

Publicado por P. R. Cunha / 6 de novembro de 2024


Diários [trinta e nove]

O temor: quando o grau de complexidade de determinada situação ultrapassa a própria capacidade de expressá-la. Nada é dito — não necessariamente porque não se quer, mas porque não se consegue.

Qualquer tentativa cairia num vazio semântico intransponível — mesmo que fosse lá uma tentativa com as melhores das intenções.

Acontece que o sujeito que escreve costuma gabar-se dizendo que «sabe ler os seres humanos». No entanto, que terrível tragédia notar que as atitudes de certa pessoa falam num idioma alienígena.

Será que estou a perder a minha vocação mais valiosa, pergunta-se o sujeito que escreve, será?

Publicado por P. R. Cunha / 5 de novembro de 2024


Diários [trinta e oito]

O fracasso pode servir de antídoto para quem se preocupa demasiadamente com as futilidades que surgem no meio do caminho. Perde-se uma certa «inocência», as expectativas [que antes mostravam-se estratosféricas] desabam de volta na superfície terrestre.

Acabou o gás?, o pneu do automóvel está furado?, cancelaram o voo?, o chuveiro elétrico não funciona? — paciência, essas coisas acontecem. Quanto mais devastadora, canhestra e humilhante for a derrota, mais profunda e longeva será a anestesia.

Diário prático, o cultivo da resiliência diante de toda a sorte de sofrimentos, disciplina, um esforço recompensador, etc.

Pilotar a minha motocicleta me dispensa das vaidades das trocas sociais [isto é: do direito de receber {direito abstrato, artificial, agressivo, absurdo}]. A simplicidade da tarefa — segurar os guidões, virar para esta ou àquela direção, sentir o vento no rosto. E a cabeça, antes disparada e afogada num lago de tormentos, enfim, descansa.

Não chega a ser uma fuga, é antes forma de apreciar o presente, de controlar as rédeas das ruminações [e, como Rimbaud, atravessar a cólera elétrica de se estar vivo].

Publicado por P. R. Cunha / 1º de novembro de 2024


Diários [trinta e sete]

Recusar a companhia das pessoas [até com um certo desdém de superioridade] só faz sentido enquanto ainda restarem braços estendidos na nossa direção.

Fitzgerald odiava receber convites, mas se chegasse o fim de semana e ele não fosse convidado para nada, entrava em desespero.

O que é que haverá para o zelador do diário fazer quando todas as inquietações estiverem retratadas nas páginas deste caderno? Repetir-se até às raias da loucura — porque, como já disseram, a repetição é um meio de superarmos a nós mesmos.

Há escritores que são transportados para a escrivaninha por pétalas perfumadas de algum regozijo; enquanto outros são arremessados sem piedade pelas garras da angústia.

Ser humano que perceber que a morte nada mais é do que um eterno sono sem sonho, acordará devidamente revigorado [agradecido?] na manhã seguinte.

Publicado por P. R. Cunha / 31 de outubro de 2024


Diários [trinta e seis]

É sempre pertinente repetir esta verdade indecorosa: o universo não te deve nada — não é um jogo de trocas [faço isto e isto e isto {logo —>} espero {exijo!} receber aquilo e aquilo e aquilo, etc.]. O universo não está a jogar contigo. E mesmo se estivesse, tu és uma peça tão miúda, tão insignificante que ele sequer se daria ao trabalho de reagir às tuas ridículas preocupações [em vão, irritas e infernizas a ti mesmo e a todo o mundo].

Reviravolta [libertadora?]: acontece que tu também não deves nada a ninguém — dança conforme esta música.

Um ser humano às portas dos quarenta anos já deveria ter comparecido a funerais o bastante para perceber a rapidez com que o corpo deitado no caixão cai no mais profundo esquecimento.

A psicologia do abismo mete medo.

Publicado por P. R. Cunha / 30 de outubro de 2024


Diários [trinta e cinco]

O passado remoto, as fronteiras da memória — fico na dúvida se «tal» coisa realmente aconteceu ou se tudo não passa de uma capciosa [re]construção da minha cabeça.

A fumaça que saía do charuto que meu avô costumava segurar entre os dedos como se fosse a baqueta de um baterista [a minha memória agora é como essa fumaça].

E toda a gente sabe: a fumaça dissipa-se, desmancha-se, até desaparecer por completo.

Um escritor que, antes de morrer, deixasse propositadamente romance inacabado — alguns curiosos talvez tentassem terminar/decifrar a obra e assim o escritor ganharia uma sobrevida fantasmagórica [até que também perdessem o interesse pelo romance inacabado, daí seria a «segunda morte» do escritor, os últimos pregos no caixão, como diria Kierkegaard].

Personagem X vai até à cozinha pegar copo d’água, dá-se conta de que esqueceu a panela no fogo, há este cheiro forte de queimado que preenche o ar da cozinha, um cheiro que leva Personagem X a lembrar-se da própria infância, quando Mãe por vezes distraía-se com os gritos de dor de Pai e deixava as bolachas de chocolate queimarem. Personagem X apreciava as bolachas com a parte inferior ligeiramente torrada.

Preciso de estar em determinado «estado de espírito» [na falta de melhores termos] para tolerar certas narrativas demasiadamente descritivas.

Não dou a mínima se a panela queimada foi fabricada em Budapeste pelas mãos de uma bela húngara que frequentava o palácio do rei Ferenc József Károly [embora, pensando bem, até que esse supérfluo despertaria a minha curiosidade].

Publicado por P. R. Cunha / 29 de outubro de 2024


Diários [trinta e quatro]

A necessidade de acreditar em algo e/ou alguém parece ser um imperativo biológico da espécie humana — mesmo que seja um mero: amanhã será um dia menos agressivo.

O sujeito em ruínas [ou em vias de arruinar-se] procura toda a sorte de alvos para justificar a própria queda. Não encontrando motivos externos para canalizar o peso de incontáveis frustrações, a tendência é que comece a apontar os dardos para si mesmo.

«A ânsia de ser compreendido e pacificamente aceito pelas outras pessoas», escreve Kafka.

Adágio de conforto: se tocamos os pés no fundo do poço, a única direção para a qual o nosso corpo pode ir é para cima. Numa palavra: como as coisas não podem piorar, acabam melhorando.

Acúmulo de pequenas [e por vezes insignificantes] melhoras a cada dia — eis o modus operandi da cicatrização.

Publicado por P. R. Cunha / 28 de outubro de 2024


Diários [trinta e três]

Quando morei na Rússia, um colega da Universidade de São Petersburgo que estava em processo de separação disse-me que poucas coisas são mais agressivas do que a distância abissal de uma mulher que deixou de nos amar.

«Quantos anos até olharmos para o lado da cama e percebermos que estamos a dormir com uma pessoa irreconhecível?», perguntou-me o colega russo.

Publicado por P. R. Cunha / 27 de outubro de 2024


Diários [trinta e dois]

O ciclo hostil da vida — descartar pessoas e ser descartado por pessoas [não necessariamente nessa ordem].

Enquanto arrumo a casa, a TV está ligada no noticiário. Alguém grita ao microfone: […] ninguém merece morrer assim, isso não é jeito de morrer […]. Fico a me perguntar qual seria, então, o jeito certo de morrer, mas a televisão nada diz a esse respeito.

«Toma cuidado para não deixar as tuas frustrações resvalarem sobre testemunhas inocentes» — de uma conversa que escutei à padaria.

Hipótese da antena: capturamos trechos de conversas alheias que parecem ser dirigidos a nós e não a outros receptores.

Este diário — por mais que utilize trajes realistas — não tem qualquer obrigação de respeitar as normas do «real» [aspas que sempre te levam à pergunta da praxe: o que seria real?].

Maneirismo e afetações são as primeiras facadas no peito do texto de qualquer escritor.

Recorda-te do diário de Musil: mensagem engarrafada por um náufrago que sabia estar condenado. Quando jogamos palavras ao mar, há sempre o risco de nunca alguém as receber.

Perturbação — quando nem as âncoras literárias têm mais forças para segurar o teu navio com cargas pesadas.

De aí vem a necessidade de construir significados imaginários, um atracadouro artificial que segura as pontas [mesmo que apenas momentaneamente].

Publicado por P. R. Cunha / 26 de outubro de 2024


Diários [trinta e um]

Eis o benefício de se manter às sombras: poder escrever coisas constrangedoras sem ressaca moral.

Lembra-te quando abriste pela primeira vez Breves entrevistas com homens hediondos do Foster Wallace e tudo era tão incrível, e maluco, e revigorante que ficavas com vontade de chorar? Quando te interessas por determinada pessoa não sentes o mesmo?

O grande medo do escritor: reler o que escreveu e sentir-se uma farsa grotesca.

Há, sem dúvida, dois relógios dentro do ser criador — o que marca o tempo mundano e o que se perde quando a cabeça mergulha em devaneios.

Telefonema aleatório de uma tia distante com quem não falava há anos: gosto daquele teu conto sobre uma mulher que casou-se com homem rico e poderoso mas logo se apaixonara pelo jardineiro alcoólatra da mansão. Eu cá não tenho a menor ideia de que conto é esse.

Humanamente impossível não ser afetado por humores externos quando me sento para escrever. Há felicidades tão inebriantes que a mão que segura a lapiseira simplesmente se recusa a mover.

Publicado por P. R. Cunha / 25 de outubro de 2024


Diários [trinta]

Um novo fracasso — e não um novo amor — parece ser sinal mais confiável de que o cérebro está em vias de encontrar alguma espécie de cura. Depois de incontáveis decepções, a queda não machuca [tanto].

Publicado por P. R. Cunha / 24 de outubro de 2024


Diários [vinte e nove]

Um diário que fosse alimentado exclusivamente com esperanças e fantasmas.

Fantasmas que falassem de fatalidades devastadoras que marcaram este ser humano de vida incerta e por vezes incapaz de tomar as mais simples decisões.

Refletir sobre o que fazer com os anos que restam, tornar-se o que se quer ser — a qualquer preço.

Fantasmas que também prometessem explicações e ficassem em silêncio [de novo esta imagem consolida-se na minha cabeça]. Sim, não esclarecer absolutamente nada.

Os otimistas escrevem mal? A felicidade [demasiada] é um obstáculo para o escritor? Escrevem-se poemas caretas quando apaixonados?

Dizemos: Fulana é realmente uma força da natureza — vê o tanto de adversidade que já teve de superar. O que caracteriza uma pessoa forte é o acúmulo de feridas e as estratégias utilizadas para curá-las/amenizá-las.

Um escritor que subisse ao cume de uma cordilheira e tocasse algumas notas num trompete congelado. Ou tocar o próprio violoncelo no fundo de uma piscina de treinamento de astronautas.

Alguém que escrevesse muito zangado e depois passasse à floricultura para comprar azaleias.

O parágrafo perfeito de hoje será o parágrafo abominável de amanhã.

Fuga em direção ao isolamento [refúgio?] e ao anonimato [mais do que já és anônimo?]. 

Publicado por P. R. Cunha / 23 de outubro de 2024


Diários [vinte e oito]

Acreditamos que estamos a lidar com o mundo muito bem, de maneira saudável, altruísta, até que chamam a nossa atenção para o contrário.

Não és assim tão leve e sereno quanto acreditavas. O reflexo externo pode ser mortal para a imagem [miragem] que cultivavas dentro de ti.

O isolamento seria, portanto, mecanismo de defesa? Um castelo interior dominado por toda a sorte de sentimentos, sonhos, fantasias, ilusões, armaduras, autores mortos, objetos de desenho, cadernos pautados. Em suma: castelo dentro do qual está sozinho, longe do escrutínio alheio.

Eu sou — por natureza e temperamento — uma pessoa entusiasmada. Essa constatação também deve ser devidamente averiguada.

Ler Montaigne e Valéry da mesma maneira que algumas senhoras antigas costumavam ler os livros sagrados: abrir ao acaso, sempre com a expectativa de capturar qualquer coisa de edificante.

Amiga de longa data me chama para sair. Tomamos o café e ela fala sobre as crônicas de Sérgio Porto e Mendes Campos. Estou presente, mas não de todo — nem cá, nem lá.

A minha manifesta incapacidade para as análises de obras contemporâneas leva-me a comentários superficiais do tipo: tal livro é agradável, ou tal livro é ilegível. Mais do que isso eu não consigo.

Publicado por P. R. Cunha / 22 de outubro de 2024


Diários [vinte e sete]

No livro, o escritor — como diria Valéry — precisa desaparecer [seu rosto, seus amores, seus ódios, suas preocupações]: ignoramos tudo sobre os autores de literatura. P. R. Cunha nunca existiu.

É possível que um escritor analise [e compreenda] as complexidades da teia contemporânea, ele a comunica de forma exemplar por meio da própria ficção. No entanto, quando o escritor precisa de agir [isto é: interferir diretamente para modificar o mundo que ele tão bem retratara], que desastre — permanece estático, impotente.

Quanto tempo dura um diário? É necessária a ilusão de posteridade [dir-se-ia megalomaníaca] para escrever tantos e tantos textos efêmeros. De aí vêm os abismos prolongados de um Dostoiévski, de um Melville, etc.

O amor acaba, a vida acaba — os livros também acabam, mas podem durar um bocadinho mais do que os próprios autores [e esse efeito Doppler {legato} já bastaria].

Publicado por P. R. Cunha / 21 de outubro de 2024


Diários [vinte e seis]

Inclinações para acreditar como «verdadeiro» [plausível] o que estou a [re]criar, de considerar a ficção que consumo e-ou produzo como parte da realidade, algo identificável para além da página escrita.

O escritor que perdesse a capacidade de se identificar com as próprias fantasias sentir-se-ia inútil.

Depois de muito tempo sem ter rotina de leituras, minhas engrenagens, enfim, voltam a funcionar a todo vapor — comportamento cômodo/familiar [que maravilhosa ilha separada do mundo dos vivos], hábito que sempre te pertenceu, só estava hibernado {como quem ficasse anos sem andar de bicicleta e percebesse que, apesar de certo desequilíbrio, ainda consegue pedalar direitinho}].

Apareço aqui [ao diário] com incomparável ingenuidade e desprendimento. Escrevo com uma manta azul a cobrir minhas pernas, pareço um daqueles autores velhinhos que, a despeito da idade, não pretendem largar o osso literário tão facilmente.

Lapsos de linguagem, equívocos, deslizes, escrita não-linear, padrões de comportamentos duvidosos, conteúdo de sonhos, a memória, ou antes: a perda da memória.

Os assuntos tratados aqui passam por determinadas seleções [Georges Perec {A vida modo de usar} percebera {assim como Joyce em Ulysses} o imenso desafio que é retratar o cotidiano das pessoas aos mínimos detalhes] — é possível passar horas e horas e horas descrevendo a angústia de certa personagem que não consegue subir o primeiro degrau de uma escadaria [meu pé direito simplesmente não quer me obedecer, etc.].

Publicado por P. R. Cunha / 20 de outubro de 2024


Diários [vinte e cinco]

Então fico a saber que meu cérebro pesa cerca de um quilo e trezentos, é formado de neurônios e glia [cada uma dessas células contém todo o genoma humano], meu cérebro tem consistência de gelatina sabor framboesa [ou qualquer outro corante artificial que deixe a gelatina rosada] e lá dentro [aqui dentro?] moram todas as dores, as narrativas, os sorrisos, as memórias, as lágrimas, os anseios, os fantasmas, etc.

Explica ainda o neurocientista: inumeráveis aspectos do teu comportamento, teus pensamentos e experiências são inseparavelmente unidos a uma rede vasta, úmida e eletroquímica chamada «sistema nervoso».

E que esse «sistema nervoso» por vezes não funciona de maneira adequada, entra num estado de suspensão catatônica, fica como que perdido tentando decifrar as linguagens que alimentam os próprios circuitos internos [efeito retroativo, looping].

Ontem, um aluno — que aos vinte e dois anos já é um escritor muito melhor do que eu — comentou que estagnou-se em determinada personagem, não consegue desenvolvê-la adequadamente. Sugeri o seguinte exercício: colocá-la dentro de uma sala, ela quer alguma coisa [motivação]: um copo d’água?, abrir a janela?, levantar-se do sofá?; no entanto [obstáculo/conflito] algo ou alguém a impede de fazê-lo.

Em suma: acompanhamos como as nossas criaturas se comportam [ou deixam de se comportar] em certos ambientes. Um casal decide sair para jantar, ele é vegetariano, ela não — já discutiram sobre isso tantas vezes. Ela está cansada. Ele também está cansado…

Publicado por P. R. Cunha / 19 de outubro de 2024


Diários [vinte e quatro]

O ser humano, sacudido por impactos da vida, arrasta-se para a escrivaninha com o intuito de amenizar a guerra de nervos que eclodira dentro da própria cabeça.

Uma meditação sobre pensar — ou, antes, sobre a impossibilidade de pensar.

Muitos admiram a ideia de se tornar escritor… Mas quantos não fogem depressa quando finalmente percebem a penumbra grotesca que envolve esses pobres indivíduos que são feitos de letras, exclamações e interrogações?

A técnica é ancestral: verbaliza-se [grita-se] o que está a sentir [a ingênua expectativa de exorcizar monstros que assolam o cérebro com a ceifa da melancolia].

Estás a ler tantos livros que é inevitável que ideias/trejeitos/modos desses autores influenciem diretamente o teu cotidiano. Repara na tua vestimenta: os mesmos agasalhos de Beckett, as calças do sr. Bernhard, e, aos sábados, utilizas umas roupas à moda Sebald. Não deixa de ser um bocadinho cômico.

Publicado por P. R. Cunha / 18 de outubro de 2024


Diários [vinte e três]

Aquele que se dedica à fazenda de diários observa [e absorve] tudo em redor, e é inevitável que as complexidades desse «mundo sobre o qual não se tem qualquer controle» manchem as páginas do caderno com a tinta da indiferença.

Olhamos para a cabine de comando do navio e para a nossa surpresa o capitão lá não está.

O que seria escrever com sinceridade? Expressar aquilo que outros suportam [ou fingem suportar] ao preço da repressão ou da insinceridade evidente, arriscando-se, assim, a uma rejeição universal? É a sina dos escritores honestos: acabam sozinhos, ou loucos, ou as duas coisas?

A infelicidade parece tão enraizada no discurso coletivo que quando falamos: estou a ter uma semana agradável, logo alguém diz: pois, não te acostumes, é de certeza algo passageiro, etc.

Que coisa mais bonita do que, após um coração devidamente remendado, reencontrar-se a pilotar motocicleta numa estrada vazia que leva a nenhures [redenção]…

Uma ideia se torna fecunda quando é a combinação de dois achados — Pavese.

Publicado por P. R. Cunha / 17 de outubro de 2024


Diários [vinte e dois]

O espectro do desinteresse possui basicamente dois extremos: ou a pessoa não liga para absolutamente nada [indiferença total], ou ela liga para absolutamente tudo, cada mínimo e insignificante detalhe [busca obsessiva por algo que a mantenha com a cabeça sobre o nível da água].

Começo a crer que estou levando este diário muito a sério — e que talvez estas páginas estejam a servir de para-raios a alguns dos meus segredos mais problemáticos. Um daqueles projetos que se mostram fundamentais para o meu funcionamento humano, mas que de concreto não têm nada. Seria o diário apenas outra tentativa de fuga?

Se um planejamento a longo prazo se mostra psicologicamente impossível, pelo menos [tentar] aproveitar duas ou três horinhas amenas [isto é: sem cair em ruminações que sempre te levam à beira do abismo].

«Estado de espírito» [na falta de melhores termos] tranquilizador, quase consolador — trégua para respirar um bocadinho, a ver se preencho os pulmões antes de encarar os efeitos da altitude novamente.

Happy Spring morning & relaxing jazz at outdoor coffee shop: é disso que estou a falar.

Publicado por P. R. Cunha / 16 de outubro de 2024


Diários [vinte e um]

Durante o dia [principalmente de manhãzinha], ocorrem imensos pensamentos dignos de nota — muitos dos quais se perdem porque não tenho como agarrá-los.

A aritmética seria mais ou menos esta: a cada ideia que coloco em prática, dezenas [se calhar, centenas] de outras ideias são esquecidas e/ou negligenciadas.

Porém, que existência ardilosa levava Funes, o memorioso, personagem de Jorge Luis Borges que enlouqueceu pois não conseguia esquecer uma vírgula do que consumia.

Para um cérebro funcionar adequadamente, diz a literatura neurológica, precisa de ser capaz de eliminar [ou pelo menos esconder] uma data de cenários — muitos deles traumáticos demais para serem mantidos na esteira revisionista da nossa consciência.

O remorso, a culpa, o fracasso, o arrependimento exigem que carreguemos um fardo, esta nuvem negra e pesada que surge do nada e toma conta da atmosfera.

Talvez o luto mais doloroso seja aquele pelo qual precisamos passar enquanto as pessoas que perdemos continuam vivas e andam por aí algures — só não sabemos onde, como, nem com quem. Eis os fantasmas que realmente assustam, eis o velório da ausência incompleta.

Publicado por P. R. Cunha / 15 de outubro de 2024


Diários [vinte]

Fico a pensar se meus modos austeros e introspectivos, se meus isolamentos e minhas recusas não seriam sinais de que estou a virar as costas para o mundo, de que já estou cansado-saturado-embotado. E isso aos trinta e nova anos, ainda.

Quase quatro décadas de tentativa e erro: sorrisos/lágrimas, presenças/ausências, algum sucesso/alguns fracassos, deslumbramentos/desapontamentos — estranha mistura de [quase] todas as emoções conhecidas.

Este diário é produzido por mão humana [mais especificamente a mão direita, sempre propensa ao deslize].

O acaso, sem juízo de valor, fica como que à espreita, aguarda pacientemente até nos atacar de surpresa e aí somos feitos em pedaços. Em busca de tréguas, durante uma ação hostil, corremos para nos proteger e no esconderijo perguntamos: havia [mesmo] necessidade?

Publicado por P. R. Cunha / 14 de outubro de 2024


Diários [dezenove]

Escuto coisas inacreditáveis. Vejo coisas inacreditáveis.

Ainda sobre esta cena: pessoa que tem tudo depara-se com alguém que não tem nada [homem dentro de BMW que fechasse depressa a janela do automóvel para não ter que lidar com o pedinte ao semáforo — é impossível saber ao certo se dali a um mês o homem dentro de BMW não estará na mesma situação que o pedinte ao semáforo]. Previsibilidades tornam-se imprevisíveis, a entropia não leva em consideração onde tu moras ou qual carro estás a dirigir.

Prioridades que se modificam de acordo com as etapas cronológicas do escritor: um livro ingênuo só poderia ser escrito antes dos trinta anos?

A cada volta ao redor do sol, novas preocupações: doenças, abandonos, o colapso da própria identidade [metamorfoses], a presença iminente da finitude, da loucura, da indiferença glaciar.

O sujeito passa a, como se diz, «policiar-se», presta bastante atenção onde está pisando, sabe que a qualquer momento pode ultrapassar o ponto-de-não-retorno, ir demasiadamente longe com os próprios pensamentos.

Eis que chegam os anos da hiperconsciência.

Publicado por P. R. Cunha / 13 de outubro de 2024


Diários [dezoito]

O jovem escritor é ambicioso e quer construir obra gigantesca, obra repleta de adornos, labirintos, precipícios, obra de Sísifo. Acontece que os anos de maturidade mostram ao escritor a sombra da insignificância, trazem nuvens de questionamentos sobre o propósito não apenas do «livro grandioso», mas das coisas de modo geral [não à toa Robert Walser escrevia em guardanapos miudinhos {descartáveis} e adotava hábitos extremamente minimalistas — morreu a caminhar na neve cinza, que é a cor neutra par excellence].

Dar-se conta da presença [e do valor] de determinados objetos somente quando quebram ou deixam de funcionar ou desaparecem: resumo da ópera.

Procuras encontrar algum sentido às experiências que estás a viver [o diário ilustra essas tentativas]. Observas a locomotiva, aguardas pacientemente e em silêncio. A locomotiva passa e então podes [tentar] atravessar os caminhos de ferro.

Todas as dores precisam de ter aparências monstruosas? E a felicidade? Como retratar a felicidade? Estive com M. numa cachoeira — para mim, paisagem magnífica e revigorante. Mas M. disse-me que a cachoeira deixava-a muito triste. 

Publicado por P. R. Cunha / 12 de outubro de 2024


Diários [dezessete]

Determinadas catástrofes abrem feridas tão profundas que o sujeito se torna refém de toda a sorte de fantasmas, sentimentos ambíguos e imprevisíveis.

Passado algum tempo [nunca se sabe ao certo quanto, porque, ao que parece, cada um carrega consigo relógio específico], passado algum tempo, a ferida não machuca tanto, a pessoa se acostuma e entra num estado de estupor.

Analgésicos funcionam, mas estão longe de serem infalíveis.

Não há cura permanente, apenas paliativos. De nada valem os disfarces e as fugas, tais feridas são dinâmicas: como vulcões adormecidos que cansaram do sedentarismo, cospem fogo e assim dizem — vê, ainda existo, ainda estou aqui.

Publicado por P. R. Cunha / 11 de outubro de 2024


Diários [dezesseis]

Perguntamos para a terra e não recebemos resposta, viramo-nos para os mares e não recebemos resposta, levantamos a cabeça às nuvens e tampouco recebemos resposta. É de se imaginar que isso desanimaria o animal humano — pelo contrário: atiça.

100 bilhões de galáxias lá fora e, por enquanto, nem sequer um breve «olá» alienígena.

Ou um «olá» que estivesse tão distante que ainda não teve tempo de chegar até aqui, e talvez nunca chegue [lei de Hubble/expansão cósmica]. O universo, esta coisa enorme e brutal limitada pelos trajetos que a luz [informação] pode [ou não pode] percorrer.

Refletir sobre infinitos adestra-me certas inquietações. Cérebro não funciona muito bem quando assombrado por mil demônios — anseia pela anestesia, pílula astronômica.

«Pensar demasiado é uma doença», disse Dostoiévski.

Publicado por P. R. Cunha / 10 de outubro de 2024


Diários [quinze]

O problema de escritores muito engajados é que não têm muita margem para trocar de opinião — precisam de seguir a linha de raciocínio dos pares. Eis o luxo de certo anonimato: contradizer-se, liberdade para achar isto hoje e pensar algo completamente diferente amanhã sem que isso leve a julgamentos, reprovações e dedos na cara.

Ela [a memória] é presença efêmera e espectral que passa por janelas fechadas como um espírito de outro mundo. Quando em vigília, esforço consciente para filtrar lembranças ruins. Os sonhos, imprevisíveis, são outros quinhentos — ali o sujeito torna-se passageiro de si mesmo.

Quão fundo é preciso enterrar determinadas experiências para exorcizá-las?

[O diário deixa de ser mera testemunha e torna-se cúmplice de bom grado.]

Escutar Bach duzentos e setenta e quatro anos depois da morte do compositor alemão é um pouco como apontar telescópio para os confins do universo e flagrar o colapso de uma estrela realmente gigantesca [supernova].

Diário que adotasse a técnica claro-escuro, contraste entre luz [momentos aprazíveis] e sombras [os demônios da melancolia] a fim de ressaltar as formas do que se descreve: drama sem afetação.

O escritor acrescenta colérica nota de rodapé às páginas do diário, que aos ouvidos externos soará como um último grito de vingança.

Por vezes os elementos se arranjam tão perfeitamente — a tarde amena e nublada, a caneca com café, a mente equilibrada, o livro prazeroso, o conforto da cadeira de leituras, a temperatura perfeita — que é como entrar numa máquina do tempo e voltar àquela época em que eu me jogava de cabeça nas obras de Paul Auster sem me preocupar com nada, e o coração ainda batia com vigor e ternura [bem longe da versão dilacerada que essa bomba de sangue se transformaria].

Publicado por P. R. Cunha / 9 de outubro de 2024


Diários [catorze]

Todo o diário é, em maior ou menor grau, um autorretrato.

Por uma série se motivos demorei quase dez anos para lidar com o luto da morte do meu pai. Era como se ele estivesse numa das longas viagens que costumava fazer ao estrangeiro. A parte racional do meu cérebro sabia que meu pai nunca mais voltaria, porém a parte sentimentalmente irracional insistia na ilusão de que a qualquer momento ele iria me telefonar para dizer: filho, estou chegando.

Quando lembro do que aconteceu, da forma como tudo aconteceu, só consigo pensar em como somos transitórios e fugazes. Certa manhã de domingo o teu pai comenta: vou para o sul do Brasil fazer trilha com a caminhonete. No dia seguinte, policial rodoviário ligar para a tua casa — «o teu pai não mais está entre nós».

Quantos telefonemas como esse o policial rodoviário deve ter feito para perceber que de alguma maneira «Fulano não está mais entre nós» é menos agressivo/doloroso do que «Fulano morreu»?

O eufemismo dos últimos instantes, uma espécie de estudo da solidão.

Publicado por P. R. Cunha / 8 de outubro de 2024


Diários [treze]

A melhor parte de uma experiência literária é o período de euforia que se segue à escrita de narrativa autoral. Durante bons vinte minutos, o teu cérebro é fonte quase inesgotável de eletricidade — e tens a impressão de que poderias conquistar qualquer coisa: um país, um prêmio de literatura, um grande amor. Aos poucos, os sintomas passam e ficas [obviamente] a querer repetir a dose.

Poder-se-ia dizer que a disposição da mesa de trabalho é reflexo do estado atual [condições neurológicas] do escritor? Os amigos de Musil, que o achavam um arquétipo de homem organizado, não conseguiam acreditar como ele conseguia trabalhar numa escrivaninha tão bagunçada. «Meu cérebro não segue linha reta», explicava Musil.

Iniciamos diário com as menores pretensões possíveis, um mero exercício de autoconhecimento, para dali a pouco percebermos que o diário já nos dera muito mais do que poderíamos esperar.

Eis a potência de um diário: modificar perspectivas sobre as coisas, ter atitude menos belicosa em relação à própria existência. Numa palavra — amenizar-se.

É sintomático que muitos críticos literários nunca tenham tentado escrever romance [há também os que tentaram, falharam sumariamente e logo decidiram voltar à zona de conforto, isto é: meter o bedelho em obras alheias]. Um maratonista que nunca correu dois quilômetros sequer pode mesmo ser considerado maratonista? Ou ainda: confiaríamos o avião a alguém que se diz piloto, mas que nunca tenha pisado na cabine de uma aeronave?

Publicado por P. R. Cunha / 7 de outubro de 2024


Diários [doze]

É como se algo muito terrível e devastador estivesse sempre prestes a acontecer — não importa o que digam.

Vê esta linda paisagem, não consegues apreciá-la?

E surge também a fase do desapego, certos descuidos — a manutenção de objetos já não é mais tão importante. Tudo bem o sol da tarde torrar a capa dos teus outrora sagrados livrinhos [algo que seria insuportável/inimaginável em períodos «normais»].

Tentas de várias maneiras afastar-te desta sombra maligna que te empurra para a beira de uma falésia. Olhas para baixo, um oceano caótico com ondas perturbadoras.

Respiras fundo, deixas a ventania ir-se embora, e se não estiveres exausto de tantas batalhas contra inimigos invencíveis, arriscas-te ao diário: sabes bem que um equilíbrio a longo prazo é mera ilusão, que não podes simplesmente existir da mesma maneira após esses esforços, mas já passaste por isso imensas vezes.

Publicado por P. R. Cunha / 6 de outubro de 2024


Diários [onze]

Mesmo que utilize a segunda pessoa e mais ainda a terceira pessoa do discurso [singular & plural], haverá sempre um eu escondido atrás do muro desses subterfúgios gramaticais.

Seres humanos são memórias, substituímos memórias, selecionamos memórias, descartamos memórias — analogamente, seremos o esquecimento ou a lembrança de um outro alguém.

Passar por imensa angústia, ou antes: sobreviver a uma imensa angústia, faz com que comecemos a observar o sofrimento alheio com olhos mais piedosos, menos inquisidores [confraria da dor].

A arte [qualquer forma de arte] é tentativa [consciente ou inconsciente] de preencher buracos.

Publicado por P. R. Cunha / 5 de outubro de 2024


Diários [dez]

Há esta hipótese de que escritores, especialmente os romancistas, têm vida curta [ou encurtada] porque adotam rotinas sedentárias e são reféns de maus hábitos, a saber: cigarros, entorpecentes, analgésicos, etílicos, etc.

Por outro lado [e claro que um único exemplo não é parâmetro para nada], o escritor japonês Yukio Mishima cultuava o próprio corpo obsessivamente e estava sempre em exercício — suicidou-se aos quarenta e cinco anos, em Shinjuku, Tóquio, 1970.

Um colega que foi visitar a Suíça trouxe-me postal cuja fotografia mostra um Albert Einstein sorridente a pedalar a própria bicicleta. Atrás, a famosa frase do pai da Teoria da Relatividade: «A vida é igual a andar de bicicleta: para equilibrar-se, é necessário manter-se em movimento».

De mensagem elétrica que enviei a uma amiga que me é cara: gostava mesmo de largar tudo, viver de frente para o oceano e dedicar meus dias [que julgo cada vez mais escassos {isto eu não acrescentei, porque soava demasiado dramático}] às pinturas amorfas que brotam dos meus pincéis. Ela achou a ideia magnífica.

As entradas deste diário como registros das minhas emoções, importante ressaltar: «Expressão exterior de uma vida interior — campo vasto».

Insisto em Hopper [um ideal]: pinturas, ou melhor, fragmentos [não necessariamente literários] que pedem explicação sem fornecer nenhuma.

Publicado por P. R. Cunha / 4 de outubro de 2024


Diários [nove]

O ser humano é mesmo uma espécie difícil de agradar: passa boa parte da vida reclamando de cansaços, diz que precisa de sossego, tranquilidade, e quando finalmente dispõe de todo o tempo para o ócio, logo se aborrece, e quer ficar cansado novamente — do contrário, enlouquece.

Sonho de boa parte dos escritores de literatura: escrever livro de sucesso, viver dos royalties desse livro de sucesso, de preferência numa ilha bem longe da chamada «civilização» [vide parágrafo acima].

Comentam por aí que dedicar-se à literatura [ler e/ou escrever] seria uma forma de escapismo, de não encarar a realidade como ela é. Eu cá fico a pensar o que, hoje em dia, não seria uma forma de escapismo — quando nos deparamos com inúmeras opções para vendarmos os olhos e assim simplesmente ignorarmos que o mundo arde e que no fim das contas ninguém sai vivo daqui [nem o próprio planeta, que tem mais uns sete bilhões de anos antes de ser consumido por um sol moribundo].

Uma experiência de quase morte retira de uma só vez todas essas vendas e olhamos nos olhos da própria aniquilação, que parece dizer: não foste um bom sujeito, não pediste desculpas o suficiente, mentiste, decepcionaste uma data de pessoas, brigaste com a tua mãe por uma miudeza insignificante [e agora não há mais tempo para consertos, não há mais tempo para nada, achavas mesmo que eras indestrutível?].

Publicado por P. R. Cunha / 3 de outubro de 2024


Diários [oito]

Há esta faísca no desespero capaz de arder mil frases — algumas sobrevivem, várias transformam-se em cinzas.

Valéry, por que escreves? «Porque é o meu ponto fraco.»

Temporada de tristezas, o sujeito se sente um miserável. Devias tentar jogar tudo isso numa folha de papel… E, segundo os antigos, é assim que se forja um escritor.

Diálogo filosófico: uma solitária diante de outro solitário.

O fracasso que não nos deixar mais modestos [e temerários, e conscienciosos], que não nos colocar, como se diz, no nosso devido lugar, não é fracasso — é farsa.

Escritor de súbito decide parar de escrever. Perguntam-lhe: está curado do vírus literário? Ao que escritor responde: não estou curado, estou cansado.

A verdade é que a obsessão pela escrita faz com que escritores escrevam imensos livros, uma quantidade muito além do que seria necessária.

Não existe ideia realmente original — ela será sempre um conjunto/amontoado/compilação de outras ideias. É como levantar a cabeça para o céu noturno e observar a luz-fantasma de estrelas que há muito já deixaram de existir.

«Um santo diz santamente…», eis a espontaneidade de Montaigne. Um santo diz santamente: o cuidado com as cerimônias fúnebres, a escolha da sepultura, a pompa dos cortejos, são mais um consolo dos vivos do que um auxílio para os mortos.

Publicado por P. R. Cunha / 2 de outubro de 2024


Diários [sete]

Quando determinada pessoa se depara com alguém a pedir esmolas, será que ela nunca cogita na possibilidade de que um dia poderá estar naquela mesma situação? Que defesas funestas o cérebro precisa de construir para proteger-se do imponderável.

A crer em Sartre: o inferno [sempre] são os outros.

Estar tão seguro de que tudo permanecerá tão seguro. Um tio-avô ganhara uma tremenda fortuna no mercado imobiliário, isso nos anos 1980. Quinze anos depois, morreu num sanatório — sem amigos, sem família, sem dinheiro.

Há este vídeo no YouTube de quatro horas e meia a tentar explicar um único parágrafo da obra Ser e tempo, do senhor Heidegger. Algumas ideias são absurdas/abstratas e precisam de outros tantos livros «didáticos» para serem esclarecidas [tentativa que, aliás, nem sempre logra êxito].

Na outra ponta do espectro, temos a transparência elucidativa de um Cioran, que escavara fundo de mais, e tocou em feridas perigosas demais, e mostrou verdades de mais. A sina desse tipo de filósofo é a loucura ou o esquecimento — ou, se calhar, ambos.

Publicado por P. R. Cunha / 1º de outubro de 2024


Diários [seis]

Uma exigência muito estranha fez este poeta da Austrália: ao sentir a morte aproximar-se, pediu à irmã que «assim que meu coração parar, esfolem-me e da minha pele produzam a capa de livro que encadernará todos os meus poemas». Atendendo à demanda do poeta, a irmã mandara fazer a grotesca brochura, mas, atormentada pelo remorso, tão logo segurou aquela capa macabra com a pele do próprio irmão, levou-a depressa para a cidade de Hobart e lançou o livro nas profundezas do mar de Tasman.

O diário escuta os meus lamentos, registra as minhas alucinações — e, ao fazê-lo, sinto cá um vestígio de alívio.

E que tempos bons deviam ser os de Xerxes [rei da Pérsia], em que as pessoas tentavam acorrentar o oceano por causa das ondas irascíveis, lançavam injúrias para o Sol por «fabricar imenso calor», desafiavam vulcões para um duelo e disparavam flechas contra as nuvens quando as chuvas atrapalhavam as cerimônias anuais.

O escritor que conversasse com as personagens que criara na solidão do gabinete: este superaria toda a loucura.

[Faz lembrar daquele romancista chileno que enviava sonetos a uma psiquiatra invisível — para, segundo ele, «retribuir as consultas médicas», que, no entanto, nunca aconteceram.]

Enquanto mantenho o foco nas páginas deste diário, os dias vão-me suportavelmente. [Sobre abraçar a imprevisibilidade: o caos tornou-se o timoneiro e tudo bem.]

O grande equívoco parece ser acreditar que a existência segue uma espécie de narrativa linear com regras estabelecidas, e que, como nos jogos, há recompensas para determinadas atitudes — isso muitas vezes faz com que a pessoa exija certos direitos [a saber: direito de ser feliz, direito de não ser enganada, direito de encontrar alguém e por aí adiante]. Estou a fazer tudo certinho, diz a pessoa, agora é a minha vez de ser retribuída. Mas eis que ela se depara com uma seca indiferença. Pouco importa o quão boa e honesta você se mostre, a vida nunca lhe deverá nada.

Publicado por P. R. Cunha / 30 de setembro de 2024


Diários [cinco]

De todos os impulsos, os biológicos de certeza são os mais traiçoeiros — porque surgem sem que percebamos, de forma que temos pouco [ou nenhum!] controle sobre eles.

Um escritor solteiro e feliz acorda certo dia em pânico, está a ficar velho e a biologia pede-lhe um herdeiro. Como diria Montaigne, nunca estamos em casa, mas sempre alhures. A saber: não importa a vossa condição, haverá ainda qualquer coisa para ser cobiçada [aqui eu acrescentaria um despretensioso etc.].

Fernando Pessoa se abismava com o facto de as canções dos países alegres serem tristes, enquanto a música dos países melancólicos costumam irradiar tremendos regozijos.

Escutamos as serenatas de Josef Suk, temas profundos e cheios de pavor [a Áustria-Hungria {terra natal do sr. Suk} era um império feliz, pelo menos antes do século vinte {o que corroboraria a hipótese de Pessoa}]. Eis um homem ao cantinho do salão de baile, ele observa um casal a dançar — acontece que a moça é uma antiga paixão, e agora dança com outro.

O receio, o desejo, a esperança, diz ainda Montaigne, lançam-nos para o futuro e privam-nos do sentimento e da consideração daquilo que existe [presente], para nos entreter com aquilo que será [futuro], mesmo quando já não existirmos [grifos meus].

É sem dúvida um trecho significativo. O escritor sem filhos [e aqui poderíamos lembrar de Bernhard, Murakami, Poe, Delillo {e do inquietante livrinho Hijos sin hijos do Vila-Matas}], o escritor sem filhos, como eu estava a dizer, acredita que dar à luz uma criatura de papel será o suficiente para propagar a própria memória neste planeta dos esquecimentos.

Morro mas deixo cá estas palavrinhas. Pobre-diabo…

Quando apreciamos um Van Gogh, ou lemos as cartas que ele escreveu ao irmão Theo, estamos de alguma maneira perversa a puxá-lo de volta do mundo dos mortos — quiçá Van Gogh esteja já um bocadinho cansado dessa valsa.

Publicado por P. R. Cunha / 29 de setembro de 2024


Diários [quatro]

O escritor de ficção possui liberdades criativas que poucos conseguem ter — de forma que não compreendo os autores que insistem em abraçar completamente os acontecimentos reais. Expõem personagens, utilizam nomes verdadeiros, fazem buscas minuciosas para não errar qualquer detalhe do cenário — a chávena estava sob ou sobre a mesinha de cabeceira?

Deveriam ir para o jornalismo.

Guy de Maupassant, que é perspicaz nestas coisas, costumava dizer que ao escrever literatura, supostas mentiras, aproximava-se muito mais da verdade [mesmo que seja a «particular verdade de si mesmo»] do que qualquer repórter que se agarra aos factos como náufragos sem terra à vista.

Machado de Assis, que bebeu imenso das fontes francesas, pensava igual.

E que privilégio poder contar com tais ferramentas, principalmente quando o escritor passa por momentos tempestuosos e precisa de recorrer às invenções — como se não houvesse senso comum capaz de representar o grau de complexidade que o devora por dentro.

Publicado por P. R. Cunha / 28 de setembro de 2024


Diários [três]

Saco de pancadas que recebesse quantidade absurda de socos e estivesse prestes a romper-se: algum desavisado desfere o golpe derradeiro — poderá achar que é uma pessoa imensamente forte, afinal, «abriu» o saco de pancadas com o próprio punho, quando, na verdade, a menor sobrecarga teria sido o suficiente para arruinar o objeto.

Poder-se-ia dizer que o mesmo acontece com os seres humanos em colapso emocional — um comentário malicioso, um olhar atravessado, ou mesmo um telefonema que nunca chega serão apenas a última gota d’água em uma bacia que há muito transbordava.

[A queda de aeronave envolve sucessão de equívocos.]

Uma aluna volta entusiasmada de Roma e me explica a polissemia da palavra tristezza, que em italiano significa dor, pesar, humor negro, aflição, malícia: una giornata grigia e piena di tristezza, ela diz.

O diário torna-se uma espécie de vício para o escritor, que procura alimentá-lo a qualquer custo, como quem jogasse feno no estábulo, mas o cavalo está sem fome. «Não devias ter começado», alguém sugere. Agora é tarde, porque estas páginas vieram para ficar.

«Tornei-me Morte, destruidor de mundos», Bhagavad-Gita citado por Oppenheimer depois de uma explosão equivalente a 18 megatoneladas de TNT ter manchado o céu de Los Alamos, Novo México, a 16 de julho de 1945.

Um diário-atômico, pois.

Publicado por P. R. Cunha / 27 de setembro de 2024


Diários [dois]

Antes de se livrar de determinados traumas, o cérebro vai querer revisá-los de forma minuciosa e às vezes sou surpreendido por lembrança ruim justamente num momento em que tudo parecia ir a bom termo — como se a consciência [chame-a como preferir] precisasse primeiro acertar as contas com as causas das feridas para só então vê-las começarem a cicatrizar.

Esta frase que não se encaixou no parágrafo acima: e cuja memória o fere muito tempo depois.

Como um contorcionista [de início, pensei no artista circense de Kafka a andar numa corda bamba sem a rede de proteção embaixo, para o caso de queda {mas já não haveria demasiada referência kafkiana nestes diários?}], portanto, como um contorcionista, fico a procurar o(s) motivo(s) do(s) meu(s) infortúnio(s), e o que encontro senão uma tremenda indiferença silenciosa…

Enxergar as coisas como elas realmente são, e não como gostaríamos que fossem.

Quando temos determinadas imagens de nós mesmos e estamos confortáveis a conviver com elas, até sermos confrontados «por um outro alguém» que tece comentários inimagináveis a nosso respeito, comentários que fazem desmoronar as estruturas daquelas barragens que se mostravam tão protegidas, etc.

[Características psíquicas dos indivíduos como potencial destrutivo, ou criatura imperfeita.]

Um escritor fracassado que escrevesse diários sobre o fracasso e decidisse jamais finalizá-los para não perder a fama de escritor fracassado [e vice-versa].

A alienação deste universo paralelo — há cura? Ou talvez a pergunta fosse: quero ser curado?

Diários = entradas mínimas, escrever apenas o necessário, nada além do necessário, fluidez, palavras miúdas que desvendam imenso — um ideal.

Publicado por P. R. Cunha / 26 de setembro de 2024


Diários [um]

É preciso fazer as pazes com o meu «eu-leitor», que sempre foi a minha melhor versão.

Não seria necessariamente a busca por controle total — mas antes a busca de algum controle, qualquer que seja [por mínimo que seja].

«Em meio às suas ruínas, sinto-me em casa», de uma ex-namorada, a citar Cioran enquanto observava-me em frangalhos.

Quando estou a pilotar a motocicleta, surgem-me ideias de toda a sorte, mas não tenho como anotá-las. Certas angústias.

A própria transparência, nua e crua [como se diz], é utopia. Haverá sempre algum filtro [?], um verbo mascarado de pudores [?].

«Pobre louco que és…», também de uma ex-namorada.

Meu bloco-notas é amarelo, formato vertical, linhas azuis, bordas vermelhas. Como voltar aos tempos de escola.

Amadurecemos ideias? Ou simplesmente as escavamos, como arqueólogos distraídos a escutar Haydn numa noite chuvosa?

Seria, portanto, a filosofia a arte de fazer perguntas sem esperar respostas satisfatórias?

«Uma prática, mais que uma obra», etc.

Acontece que manter diário é atividade capciosa para o escritor: fica-se sempre com a impressão de que ele poderia utilizar estas ideias para alguma narrativa a sério.

Experimenta lançar inseticida numa barata. Agora, observa as atitudes da barata [a barata, de muitas maneiras, representa-me].

O diário possibilita criar para si na solidão [mesmo que eu o escreva num café movimentado, estou sozinho {?}] uma vida voluptuosa — é Montaigne — e aprazível que superaria qualquer outra forma de vida. De aí vêm os vícios da escrita, brincar de criador de mundos.

A ilusão de qualquer praticante de diários: mostrar-me este ser ingênuo e sincero e não falsificado.

Verbalizar pensamentos [falados-e-ou-escritos] é já artificializar-se um bocadinho.

Finalizo com este axioma: todas as grandes mudanças abalam o escritor e põem-no em desordem.

Publicado por P. R. Cunha / 25 de setembro de 2024


Triunfo

As ideias estão ali, mas o ânimo inexiste. Alas! É preciso sentar-se para escrever mesmo quando não se tem vontade de escrever. O texto avança a duras penas. Como uma guerra de exaustão cujo objetivo seria o de dizimar todo o potencial físico da pessoa que escreve, não possibilitando reabastecimentos, tréguas, nem sequer um breve recuperar de fôlego — e isso invariavelmente leva o sujeito ao colapso.

Publicado por P. R. Cunha / 24 de setembro de 2024


Impostor

Há quase vinte anos, diz o sr. Franklin, estou a dar um curso universitário sobre o que é verdade, a importância da verdade, como a verdade é benéfica para o funcionamento adequado da máquina social. Acontece que a minha esposa, diz ainda o sr. Franklin, sim, a minha tão querida esposa comentou comigo hoje ao pequeno-almoço que talvez eu não seja a pessoa mais adequada para ministrar cursos sobre verdade, ela acha, ou melhor, ela tem a certeza de que sou um dos maiores mentirosos da face da Terra.

Publicado por P. R. Cunha / 23 de setembro de 2024


Fantasmas

O escritor tenta abrir diálogos à distância com leitores invisíveis. O escritor não sabe o que pensam os leitores, do que gostam, o que odeiam, se estão com sono, ou se têm o coração partido. Por vezes o escritor escuta a própria voz reverberar no auditório — é porque as cadeiras estão vazias.

Publicado por P. R. Cunha / 22 de setembro de 2024


Simulacro

Tony estava a bebericar o café enquanto aguardava ser chamado para se apresentar no Seminário sobre as divergências conceituais entre Heidegger e Baudrillard. Ele passava os olhos uma última vez no «mapa mental» que fizera na madrugada anterior, o único período em que a confusão doméstica lhe permitia algum sossego para escrever. O esquema, que supostamente deveria ajudar Tony a não se distrair durante a palestra, mostrava-se um labirinto tão confuso e abstrato quanto o abismo que separa o filósofo alemão do filósofo francês. Tony entregou a chávena de café para o assistente de palco e começou a ruminar sobre o propósito daquele seminário, do «mapa mental» tortuoso que de certeza não o ajudaria em nada, antes o colocaria em apuros, sobre a própria habilidade de tratar de um assunto tão disparatado quanto aquele, e, de forma mais ampla, questionou os alicerces das construções filosóficas — não só as bases de Heidegger ou as de Baudrillard, mas de toda a gente que se entregara com afinco ilusório às entranhas do pensamento. Tony, poder-se-ia dizer, não queria estar ali.

Publicado por P. R. Cunha / 21 de setembro de 2024


Multiverso

Eu gostava era de escrever
poemas estilo Raymond Carver
e dizer o inominável
em prosa-verso
ou o inverso de prosa
sem preocupações métricas
escalas
vírgulas
figuras de linguagem
o mostrar sem mostrar-se
as elipses de Raymond
que trocam esta Terra
por planetas imaginários.

Publicado por P. R. Cunha / 20 de setembro de 2024


Rochedo

Como um artista que pegasse pedras e argila para criar uma escultura de pedras e argila, mas a escultura, sabemos, será outra coisa — o escritor também recolhe toda a sorte de materiais para reciclar os próprios pensamentos e espera conseguir transformar esse emaranhado em alguma espécie de «mensagem».

Publicado por P. R. Cunha / 19 de setembro de 2024


Prosas

O escritor de literatura é também um apaixonado. E quando começa a escrever romance de papel ele percorre etapas parecidas com as de um romance humano: observamos ali um sujeito incansável, ávido por conhecer melhor o foco do seu amor, a mergulhar nas profundezas infindáveis da pesquisa literária ou da «alma da pessoa por quem se apaixonara deveras» — afinal, tudo é novidade: as personagens são novidades, o enredo é novidade, as cenas, os locais, o frio na barriga, as surpresas, os sentimentos desvendados aos bocadinhos… Em suma: trata-se de projeto ainda em desenvolvimento, sem os vícios da rotina, e os envolvidos têm maior capacidade de adaptação. No entanto, a parte ardilosa é que, assim como costuma acontecer num relacionamento amoroso, o término de um romance literário causa imensa tristeza no coração do escritor. 

Publicado por P. R. Cunha / 18 de setembro de 2024


Mensagens contemporâneas

Em 1916, durante a Primeira Guerra, um soldado do exército austro-húngaro volta ferido para casa. Na manhã seguinte, ele folheia os jornais com aquela indiferença de quem já não consegue mais encontrar sentido no mundo. Antes de dormir, ainda assombrado pelos fantasmas dos campos de batalha, o soldado escreve no próprio diário: notícias que trazem esperanças inexistem no imaginário deste país em ruínas.

Publicado por P. R. Cunha / 17 de setembro de 2024


Córrego

Faz o teste, ela disse, experimenta sentar-te às margens de um rio e apenas observa em silêncio a água passando, aparentemente sem qualquer outro objetivo senão o de ser água e passar — em um contexto que exige de nós toda a sorte de justificativas, apreciar um rio indiferente é um dos exercícios mais desafiadores, ela disse.

Publicado por P. R. Cunha / 15 de setembro de 2024


Perversidade

As pessoas mudam. Achamos que as conhecemos, mas não as conhecemos, acreditamos ingenuamente que elas se importam, mas no fundo elas não se importam, dizemos para nós mesmos «tal pessoa vai ficar», mas tal pessoa não fica, tal pessoa vai embora quando lhe convém e sequer esboça um vestígio de remorso, sempre foi assim, mesmo que durante um breve período o sujeito prefira se iludir, e garanta: «Pois, esta pessoa é diferente, ela vai quebrar as expectativas», mas ela não é diferente, e tampouco quebra as expectativas, pelo contrário, antes reforça tudo o que se esperava dela — afirmar qualquer outra coisa seria maldade e estupidez.

Publicado por P. R. Cunha / 12 de setembro de 2024


Nevoeiro

E passávamos a tarde escutando Wagner, especialmente Lohengrin, WWV 75, ato I, o prelúdio é qualquer coisa de outro mundo, já escutaste? (Faço que sim com a cabeça.) Sempre achei Richard Wagner um alienígena taciturno. Bem, como eu estava a dizer, aquelas tardes, com a neblina leitosa, o sol fugitivo, a chuva fina e persistente, aquelas tardes não existem mais, aquelas tardes ao som de Wagner em que nos permitíamos nos entregar à melancolia profunda, e tínhamos todo o futuro pela frente, as possibilidades eram ainda incontáveis, podíamos nos dar ao luxo de perder tantas coisas e mesmo assim ainda teríamos tantas coisas a encontrar, países a visitar, pessoas a conhecer. (Esfrega os olhos, está cansado.) Aquelas tardes já não existem mais.

Publicado por P. R. Cunha / 11 de setembro de 2024


Dois irmãos

Eram dois irmãos. Um levava a vida muito a sério, o outro entregava-se de bom grado à ociosidade; um formara-se em medicina com louvor, o outro colecionava selos húngaros; um casou-se e teve filho, o outro permaneceu solteiro; um morreu aos trinta e quatro anos, o outro também morreu aos trinta e quatro anos.

Publicado por P. R. Cunha / 10 de setembro de 2024


Aquilo que se apresenta como algo muito bom, mas que não é verdadeiro

O cérebro é capaz de criar para si uma constituição quase inabalável — enche o animal humano de confiança, impele o corpo a realizar grandes tarefas, cultiva narrativas edificantes em que o dono dessa esponja encefálica é sempre o protagonista. Acontece que o mundo, digamos, «físico» não leva nada disso em consideração, e no momento em que o cérebro se distrai, o gelo começa a trincar, e uma existência desprovida de significado invade as entranhas da pessoa como um vírus maligno e toda aquela confiança primordial cai por terra.

Publicado por P. R. Cunha / 9 de setembro de 2024


Diálogo (VI) — ruína

É impressionante como desmorona tão depressa, ela disse, bom, é claro que se analisarmos o processo retrógrado com atenção iremos perceber os sinais, as rachaduras, mas não deixa de ser traumático — num determinado momento acreditamos veementemente que tudo está sob controle, abaixamos a guarda, relaxamos, e já no momento seguinte o castelo desaba, nada estava sob controle, miragem —, o que estou tentando dizer, ela disse, é que se não fosse pela escrita, pelo amparo da escrita, distrações da escrita, anestesias da escrita, eu teria sucumbido há muito tempo, isso é certinho.

Publicado por P. R. Cunha / 3 de setembro de 2024


Diálogo (V) — fantasmas

Vão me chamar de louca, ela disse, estou acostumada, mas acontece que quando eu escrevo é como se eu sentisse uma presença atrás de mim, uma sombra que fica em silêncio, até que de repente sussurra palavras ao meu ouvido, sabe?, daí eu me esforço para acompanhá-la, chego a pedir para não falar tão depressa, «mais devagar!», eu digo, ela disse, e nem me venha com essa porque me considero uma digitadora muitíssimo habilidosa, a sombra cita aquelas frases avulsas, eu passo tudo para o computador, e quando enfim termino de organizar o texto, arrisco-me a olhar para trás — naturalmente, não vejo sombra nenhuma.

Publicado por P. R. Cunha / 2 de setembro de 2024


Diálogo (IV) — insônia

O que seria um fracasso literário, por vezes eu me pergunto, ele disse: sentar-se à mesa de trabalho e não sair nada?, enviar o manuscrito para dezenas de editoras e ser absolutamente ignorado por todas elas?, não ter leitores?, ou, pior, ter leitores e ninguém compreender o que estava escrito?, a verdade é que a prática de escrever irá nos desapontar de tantas maneiras que, depois dela, poucas coisas serão capazes de tirar o nosso sono.

Publicado por P. R. Cunha / 1º de setembro de 2024


Diálogo (III) — Klosterneuburg

Comigo já é um bocadinho diferente, ele disse, não nutro qualquer fantasia teológica no que escrevo, é antes um processo de aniquilamento, escondo-me atrás das palavras e não me apetece ver/ouvir ninguém — passam-se algumas horas e então volto ao mundo real, como um tuberculoso que saísse do santório do Dr. Hugo Hoffmann, em Kierling.

Publicado por P. R. Cunha / 31 de agosto de 2024


Diálogo (II) — às tintas

Como se eu me sentisse uma entidade mitológica, ela disse, mesmo que os poemas não sejam lá essas coisas, eu escrevo alguns versinhos, fecho os olhos e cá estou: uma imponente deusa nórdica a segurar o meu cajado literário, que nada mais é do que a boa e velha caneta de tinta permanente que vovô me dera quando completei minha vigésima volta ao redor do sol.

Publicado por P. R. Cunha / 30 de agosto de 2024


Diálogo (I) — combate

Se eu tivesse que escolher uma única palavra para representar a minha escrita?, bom, acho que seria «batalha», sim, um completo endurecimento da alma, ele disse, arsenal bélico sem precedentes, um exército irascível cujo general estivesse sempre algures, e sou apenas este soldado raso, perdido nos buracos de uma trincheira há muito condenada — isto por um acaso te provoca mal-estar?

Publicado por P. R. Cunha / 29 de agosto de 2024


(Mais um caso de) síndrome do pôr do sol 

Ela chegou ao restaurante ofegante, estava sempre com muita pressa, cumprimentou-me com uns olhos de águia que atravessavam o peito e faziam o coração bater sem confiança, colocou a bolsa na cadeira, disse-me que durante o dia ela conseguia se distrair com os pormenores da existência humana, dedicava-se ao trabalho com afinco, lidava com burocracias, assinava contratos, marcava reuniões, não tinha tempo para se preocupar com as próprias complexidades, podia inclusive estar ali, a almoçar comigo, sim, e estava tudo bem, o distúrbio surgia à noite, sozinha no apartamento, ela disse, quando começo a me preparar para dormir, e é como se isso abrisse os portões de algum tipo de inferno, pois os demônios saem todos para me azucrinar, e me vejo sem as âncoras da praxe, eu ali, ela disse, absolutamente vulnerável diante daqueles pensamentos terríveis, a desejar com todas as minhas forças que a manhã seguinte não se demore, etc. 

Publicado por P. R. Cunha / 28 de agosto de 2024


Desmembramentos

Por vezes acontece de os pés estarem aqui, a lombar está aqui, escapulas, pescoço, os braços e as mãos estão aqui — em suma: o corpo está aqui, mas a cabeça encontra-se alhures e assim não se escreve uma linha sequer.

Publicado por P. R. Cunha / 27 de agosto de 2024


Evaristo

A «origem» pode ser um acontecimento aparentemente insignificante, minúsculo detalhe, algo quase invisível — moça num café limpa os lábios, o guardanapo fica com marcas do batom, um roxo intenso que de certeza seria relevante aos estudos cromáticos de Goethe, aqueles seres dos séculos das luzes que eram quase tudo: matemáticos, biólogos, poetas, físicos, legisladores, péssimos maridos e escreviam uma infinidade de tratados, porque à época havia tanto ainda para se descobrir, estamos a falar de um período pré-Einstein, pré-Marie Curie, pré-Von Neumann, nada de relatividade, nem universo em expansão, as estrelas eram pontos alcançáveis, os planetas escondiam-se das lentes rudimentares dos astrônomos, mas a verdade é que há quem leia Os sofrimentos do jovem Werther e ache o livro demasiado triste, tão triste quanto o sorriso da mulher ao café que limpara os lábios com o guardanapo e agora espera o garçom digitar o valor da conta na máquina de cartão: débito ou crédito, pergunta o atendente cujo nome, de acordo com o crachá que ele leva ao peito, é Evaristo.

Publicado por P. R. Cunha / 26 de agosto de 2024


Força do hábito

Numa importante festa literária organizada pela cidade de Königsberg, evento em que, de acordo com o material de divulgação, foram reunidos «os escritores mais importantes do nosso tempo», estava presente um atirador de elite finlandês aposentado que nos últimos anos resolveu se dedicar com afinco à literatura, e não somente à literatura finlandesa, mas à literatura, como se diz, de todas as nações, motivo pelo qual ele se programara com certa antecedência para estar na supracitada festa literária de Königsberg, chegando, inclusive, a reservar um excelente quarto de hotel de onde conseguia ver, sem qualquer obstáculo topográfico, todos os autores que eram recebidos com imensa reverência pela organização, e num daqueles terríveis momentos de tédio que costumam assolar o viajante que encontra-se longe de casa, o atirador — que por força do hábito havia levado consigo um fuzil — ficou a apontar a própria arma para os ilustres convidados, que sorriam e bebericavam toda a sorte de coquetéis sem perceber o que realmente se passava. Ao voltar para Helsinki, o atirador relatou esse episódio para alguns amigos e disse ainda que com um simples toque no gatilho poderia ter finalizado aqueles que, ainda segundo o material de divulgação da festa literária da cidade de Königsberg, eram considerados os maiores escritores de literatura da nossa época, atrocidade que, obviamente, o atirador de elite finlandês não cometeu.

Publicado por P. R. Cunha / 22 de agosto de 2024


Primeira constante da radiação espectral 

Cultivar esconderijo, um castelo onde é possível ter continuidade, onde os pensamentos consigam ir ao longe espontaneamente, onde o silêncio se transforma em alimento criativo — à noite, ir para a cama com a certeza de que esse refúgio também estará disponível na manhã seguinte, eis o segredo. 

Publicado por P. R. Cunha / 20 de agosto de 2024


Síndrome do pôr do sol

Minha cabeça funciona relativamente bem durante o dia — ela diz —, faço as minhas tarefas corriqueiras como que no modo automático, pratico alguma atividade física e depois ainda consigo me dedicar à poesia. São poemas despretensiosos, até um bocadinho toscos — ela diz —, não chego a mostrá-los para alguém. O problema começa quando a noite chega, e daí começo a perceber figuras horripilantes caminhando dentro do meu apartamento. Eu grito: saiam daqui!, vocês não são bem-vindos!, mas a verdade é que nunca respondem e não se dão conta da minha presença — ela diz.

Publicado por P. R. Cunha / 19 de agosto de 2024


Haiku 5.

outra estrela explode
no espaço sideral
— nada é permanente

Publicado por P. R. Cunha / 16 de agosto de 2024


Haiku 4.

sol afasta
ventos de tempestade
o ciclo reinicia-se

Publicado por P. R. Cunha / 15 de agosto de 2024


Haiku 3.

sinfonia da minha biblioteca
canta ao coração —
que melodia!

Publicado por P. R. Cunha / 14 de agosto de 2024


Haiku 2.

a lua minguante —
esconde-se atrás das nuvens
acaba o amor

Publicado por P. R. Cunha / 13 de agosto de 2024


Haiku 1.

o som da cachoeira
pássaros planadores
— anseio por reclusão

Publicado por P. R. Cunha / 12 de agosto de 2024


Estrangeiro

Fundamentalmente, tudo o que escrevemos já foi dito por alguém — o escritor como uma espécie de arquivo ambulante de citações.

Publicado por P. R. Cunha / 11 de agosto de 2024


Tranquilizantes

Narrativas amargas que parecem sempre terminar com alguém a meter-se no comboio noturno e nunca mais voltar, meditação sobre o pensamento, sobre ir demasiado longe com certas ruminações, o colapso da própria identidade, reinventar-se, ou até mesmo sobre a impossibilidade de pensar, sedativos tóxicos, estado letárgico que, via de regra, antecede algumas formas de loucura, etc.

Publicado por P. R. Cunha / 10 de agosto de 2024


Ainda o mês ia a meio e já sabias que era ali que querias estar

Por vezes encontras-te dentro do «olho do furacão», e estás a ter um dos anos mais atrozes, e mais incríveis, e mais conturbados, e mais reveladores, e mais hostis, e mais magníficos de sempre. No entanto, tu não percebes nada disso, porque, afinal, como diz o lugar comum: só nos reconhecemos verdadeiramente quando nos tornamos história.

Publicado por P. R. Cunha / 9 de agosto de 2024


Zona abissal

O café da livraria era de todo exemplar — aroma das tortinhas de morango, vapor da máquina espresso, baristas que equilibravam-se entre as mesas e faziam-me lembrar dos melhores contos de Kafka, que sempre foi um dos meus escritores favoritos, de modo que «lembrar dos melhores contos de Kafka» é basicamente dizer: «lembrar de todos os contos de Kafka». Pedi café curto, tosta-mista, soda italiana de maçã verde, e essa simples combinação literatura-café-sanduíche-soda-baristas-Kafka como que me trouxera de volta à superfície depois de meses turbulentos ao subsolo. Satisfeito por enfim reencontrar a minha melhor versão, folheei os livros que estavam sobre a cadeira e senti aquela vontade tola de querer conquistar o mundo — ou, pelo menos, tomar posse de alguma ilha deserta nos confins do Pacífico.

Publicado por P. R. Cunha / 8 de agosto de 2024


Nos pulmões

Toda a ruptura gera desconforto. Por vezes somos jogados às profundezas abissais de um oceano tempestuoso, voltamos à superfície sabe-se lá como, dificuldades para respirar, e ao mesmo tempo em que o quase-afogamento nos oferece uma série de respostas, também traz imensas confusões. Eu acreditava que fosse de determinada maneira e agia conforme essa maneira, diz o náufrago, mas não era nada disso, era outra coisa

Publicado por P. R. Cunha / 7 de agosto de 2024


Astro sem luz própria

Arquiteto que cultiva prédio, e acha que o prédio vai durar para sempre, e dali a algumas décadas o concreto racha, as vigas enferrujam, o prédio está prestes a cair, até que finalmente desaba, e arquiteto não compreende.

Ilusão da permanência, da não-mudança: instabilidade.

Algo (ou alguém) que tivera um enorme impacto, que, como se diz, marcara território no teu coração, de repente, não está mais, desaparece, e logo começa a se metamorfosear em memória, que, sabemos, é já o início de um esquecimento.

Pode ser processo contínuo, por vezes vagaroso, pode ser num rompante, inesperadamente, ou desastre óbvio.

Arquiteto agora se contrai à mesa de trabalho. Primeiro sente um gosto agridoce na boca, depois um peso terrível, o fracasso, o remorso, como se carregasse um planeta nas costas.

Publicado por P. R. Cunha / 6 de agosto de 2024


Prestações

É normal — e até previsível — que escritor de literatura se dê muito bem com mundos imaginários e seja uma verdadeira aberração quando tenta tratar de assuntos do chamado «mundo social». Dizem que certa vez Artaud, muito irascível, bradou: o que se pode fazer com um romancista?, além de ler as fantasias que ele inventou, é claro…

Publicado por P. R. Cunha / 5 de agosto de 2024


Qualidades náuticas

O marinheiro, num estado de estupor deveras incomum, joga a âncora para o mar. O marinheiro balança com a embarcação de um lado para o outro ao sabor das ondas. Dir-se-ia que era perceptível que o marinheiro não estava a ter uma boa tarde. Desde as primeiras horas do dia ele não tira da cabeça a imagem do sorriso congelado da mulher a quem ele se dedicara durante tantos anos e que hoje simplesmente não se importa mais. Alguém toca nos ombros do marinheiro, como se quisesse consolá-lo. Ninguém diz palavra.

Publicado por P. R. Cunha / 4 de agosto de 2024


Teorema

No fundo, a pergunta que se faz atrás de uma barra de ginástica e de uma folha de papel é a mesma: e se eu não conseguir?

Publicado por P. R. Cunha / 27 de julho de 2024


Vicissitudes

Esta luz parcimoniosa que vem da luminária, o vento de uma manhã de inverno, o café, os pés geladinhos, a coletânea de contos do Claudio Magris — o que há de tão mágico e revigorante nestas simplicidades?

[Se ao menos conseguisses abafar as distrações externas que te tiram daquele caminho que sabes ser o mais adequado à tua, como se diz, «alma»… De quantas ruínas tu não serias poupado se ao invés de correres atrás de futilidades alheias percebesses que tudo do que realmente precisas estará sempre no teu gabinete de estudos.]

Publicado por P. R. Cunha / 26 de julho de 2024


No caso dos cometas

Hoje amamos algo ou alguém, ela disse, e amanhã já não amamos mais esse algo ou esse alguém, amamos outra coisa, agarramo-nos em outras coisas, ela disse, agora estás compenetrado em determinada atividade, uma atividade que realmente te apetece, e te leva ao longe, até que também esta atividade se esgota, e ficas de novo à deriva, ficas de novo à procura de algo ou alguém que te tire da beira do precipício, ela disse, e é terrível, ela disse ainda, é de facto terrível quando acendemos a luz e não enxergamos nada.

Publicado por P. R. Cunha / 24 de julho de 2024


Complexo de Dom Quixote 

Comovia-me imenso quando ele narrava sobre os livros que lera ou estava a ler, um verdadeiro barão de Munchaüsen, tecia intricadas redes de esperança, fracasso, desespero, apartado da realidade dos outros seres humanos, sim, alucinado, e já não se importava se estavam a ouvi-lo ou se deixavam-no a falar, como se diz, para as paredes.

Publicado por P. R. Cunha / 23 de julho de 2024


Outras vozes

Quantas coisas maravilhosas e assustadoras e construtivas e destrutivas e vergonhosas e veneráveis escutamos mesmo no mais efêmero átimo de silêncio…

Publicado por P. R. Cunha / 22 de julho de 2024


Delírio

Se o sujeito mora no próprio esconderijo, deixa de ter um sítio para onde ir nos momentos de hostilidade. O refúgio se torna morada fixa e perde o propósito a que se valia quando era uma importante estação provisória na qual recuperava-se o fôlego para «seguir em frente». É um pouco como aquele personagem em Platão que desejou ter férias eternas e passados apenas dois meses já não se aguentava mais de tédio.

Publicado por P. R. Cunha / 21 de julho de 2024


Garganta, peça de teatro

[CENA: CAFÉ, À TARDINHA, TONS AZULADOS QUE PERMEIAM A ATMOSFERA COM MELANCOLIA]

Gosto imenso do cappuccino daqui, ele diz, assim, não é o melhor cappuccino que já tomei, longe disso, é saboroso, aceitavelmente saboroso [DÁ UM GOLE NO CAPPUCCINO, CORTA AS TORRADAS, LIMPA OS LÁBIOS COM O GUARDANAPO]. Acho curioso, ele prossegue, acho curioso quando estamos no modo sobrevivência, quando ficamos muito doentes, quando deliramos de febre, ou mesmo pouco antes de um desastre de automóvel, acho curioso como em situações extremas todas aquelas coisas que achávamos imprescindíveis, aqueles compromissos inadiáveis, aqueles projetos engrandecedores, as nossas mansões, as nossas viagens para o litoral, heranças, amantes, herdeiros, acho curioso como quando sentimos o cheiro amargo da ceifa que se aproxima tudo parece perder o sentido, e enxergamos a nossa vida como ela realmente é, este poço vazio e insignificante [BREVE PAUSA, OLHAR PERDIDO NUM PONTO DE FUGA INVISÍVEL]. No entanto, ele diz, no entanto, calha de sobrevivermos, a febre passa, as dores estomacais cessam, o automóvel não cai no desfiladeiro, sobrevivemos, e, depois de alguns dias, lá estamos nós novamente, hipnotizados pelas ilusões da praxe, sempre foi assim, ele diz, sempre foi assim.

Publicado por P. R. Cunha / 18 de julho de 2024


Concerto diurno

Talvez fosse o caso de considerar — ela diz enquanto equilibra a garrafa de vinho entre os dedos da mão esquerda —, considerar a possibilidade de essas tuas obsessões, horas e horas a fazer a mesma coisa, dia após dia a se dedicar às mesmas atividades, considerar sem fins clínicos, ela diz, sem metodologia específica, apenas considerar se esses buracos nos quais te metes não seriam, percebe bem a conjugação do verbo, se esse foco quase maníaco, se essas fortalezas artificiais não seriam produtos de determinadas rejeições, ela diz, resultados de uma série de frustrações, de fracassos, de derrotas humilhantes… Aqui ela abre a garrafa de vinho: ou talvez não fosse esse o caso, fica do jeitinho que estás, não considera coisa alguma — ela bebe no gargalo.

Publicado por P. R. Cunha / 17 de julho de 2024


Moderato assai / allegro no troppo / tempo 1

Por que não a arquitetura, ou mesmo a medicina — como os teus pais médicos tanto sugeriram: «Faz medicina, terás tudo, serás o nosso legado», etc. Por que a literatura, por que escolheste o deserto de verdades obscenas, estas plantas secas e espinhosas, as tardes roxas ao som de Rachmaninoff, estes desesperos agridoces… Por quê?

Publicado por P. R. Cunha / 14 de julho de 2024


Late o cão amistoso a uma distância difícil de calcular

Há os escritores que escrevem sobre o tempo justamente para escapar do tempo — fugir não apenas do futuro incerto, mas também deste presente contínuo que não lhes apetece. Escondem-se numa cabana alhures, não falam com ninguém, não incomodam ninguém, estudam à luz de uma lamparina enquanto relâmpagos e trovões anunciam a tempestade inevitável. Aqui é difícil não recorrer à figura enigmática de Wittgenstein, um arquétipo de fugitivo. Não se trata de buscar consolos contemplativos. É outra coisa. É encarar a escrita como uma atividade oculta, um amuleto que deve ser preservado da curiosidade alheia. O escritor-espião sofre de mil dores, mas não faz alarde. Sabe que o antídoto literário está justamente no manter o segredo da empreitada.

Publicado por P. R. Cunha / 13 de julho de 2024


O que parece divertido, pode ser desespero

Quem se dedica com afinco à escrita dita «filosófica», quem passa horas e horas e horas a cavar buracos na própria alma, quem decidi mergulhar mais fundo do que toda a gente, e acaba por descobrir a indiferença avassaladora da natureza, cosmos, universo a se expandir, nenhuma compreensão, nenhuma misericórdia, felicidade efêmera, passageira, as nuvens que cobrem o abismo se dissipam e lá está o profundo desespero, um vazio sem qualquer sentido, a futilidade do destino humano — e, mesmo assim, continua a escrever, dia após dia, noite após noite, feito um lunático.

Publicado por P. R. Cunha / 7 de julho de 2024


À deriva

Este negócio de escrever, ele diz, é como um analgésico intravenoso, gotas feitas de palavras, ele diz, e a cada gota o moribundo sente os efeitos inebriantes do esquecimento.

Publicado por P. R. Cunha / 6 de julho de 2024


Ginásticos

Tens esta rotina matinal com certas previsibilidades (todo aquele jazz: a marca de café da praxe, o sentar-se à escrivaninha por volta das 6h, os primeiros raios de sol que iluminam a porta do teu armário), apesar de, às vezes, surgirem imprevistos. Chuveiro elétrico parou de funcionar, e tomas o banho gelado, e isso não te incomoda. Enquanto a água glacial atinge o teu corpo, pensas que a literatura é uma salvação temporária da angústia de morte, breve interlúdio que separa as duas cenas cruciais do animal humano: 1) a ilusão da imortalidade; 2) a certeza da própria finitude. Ontem à noite, conversa com M., ela diz: como alguém que parece se divertir tanto nas barras de ginástica e conta as piadas mais ridículas pode nutrir pensamentos tão macabros?

Publicado por P. R. Cunha / 5 de julho de 2024


Electroencefalograma

O cérebro criativo não precisa dos computadores de última geração, da melhor escrivaninha, das canetas que valem fortunas, das cadeiras reclináveis que fazem massagem, dos equipamentos elaborados por impérios industriais — antes necessita de oxigênio, de um refúgio adequado para respirar.

Publicado por P. R. Cunha / 4 de julho de 2024


Som ambiente das poolrooms

É tudo uma questão de contexto — atmosfera correta, bom café, luz adequada que ilumina com esmero as páginas cor de crème brulée do Moleskine, quadro The Nighthawks do Hopper pendurado estrategicamente no teu campo de visão, canções anos 1950/60 a tocar, sentir a solitude pacífica, desligamentos temporários, estás aqui e ao mesmo tempo estás nenhures: aquele vício.

Publicado por P. R. Cunha / 30 de junho de 2024


Juízo de valor ou canções macabras para marinheiros alucinados

Homero escreve que, para evitar o canto mortal das sereias, Ulisses coloca cera nos ouvidos dos remadores e pede que o amarrem no mastro do navio. Imagina-se Ulisses apreensivo, cerra os olhos, escuta a melodia inebriante, debate-se como uma fera irascível, quer se jogar para a água. O plano, afinal, dá certo, embarcação passa pela ilha da angústia — viagem de volta para Ítaca continua. Como sabemos, esse décimo segundo episódio de Odisseia é muito utilizado por aqueles que se dedicam à escrita para ilustrar os próprios anseios de literatura: as sereias seriam musas irresistíveis que seduzem o escritor, tentam atraí-lo para aventuras ardilosas, mas deveras recompensadoras. O desafio estaria na dosagem, ou, se calhar, no prolongamento desse encontro que não raro leva os escritores algures. Há os afoitos, eles se entregam imediatamente aos encantos capciosos das letras, esgotam-se depressa, são estrelas gigantes prestes a explodir. E há também aqueles que, como Ulisses, resistem, não atendem ao chamado de uma só vez, distanciam-se um bocadinho, acumulam expectativas, sentam-se à escrivaninha somente quando a vontade se torna absolutamente imperativa — e estes, a meu ver, serão sempre os melhores escritores.

Publicado por P. R. Cunha / 28 de junho de 2024


Letárgico

Se estou num período de paz, ou melhor: de trégua comigo mesmo, a vontade de escrever esmorece. Certa necessidade de lutar contra «inimigos externos», situações ardilosas, alguém que me tira do sério, atacar-e-ser-atacado, irascível, decepcionado, desiludido, a busca de refúgio na literatura. Como nos diários de guerra em que Orwell diz: encontro-me no meio de uma carnificina assustadora e nunca me vi tão produtivo, etc.

Publicado por P. R. Cunha / 23 de junho de 2024


Monumentos

Este anseio de colecionador que, como uma sombra inquieta, parece perseguir o corpo daquele que escreve. Quando menos esperamos, somos atacados por vontades de preservação. Pode ser algum lapso despretensioso, os olhos de um ser humano, o ensaio da filarmónica que preenche o auditório, até mesmo o vento gelado de uma manhã invernal. O gatilho vem e dizemos: isto é muito bonito, gostava de fossilizá-lo. Daí, escrevemos.

Publicado por P. R. Cunha / 21 de junho de 2024


Limitações conscientes

A tarefa do escritor também consiste em calar-se quando não há nada a dizer. Deitados, a procrastinar, levantamos a cabeça e lembramos de algum acontecimento inútil. Isso não nos abala e voltamos a mergulhar no silêncio glacial. 

Publicado por P. R. Cunha / 19 de junho de 2024


Metadinamite

A ironia é que muitos escritores que se rebelaram contra os pais puderam fazê-lo justamente graças às capacidades financeiras dos progenitores. Se arruinassem o império familiar, estariam também a derrubar os privilégios que, ao fim e ao cabo, permitiam-lhes aquela vida amena de reflexões e filosofia crítica. Um bocadinho como Ouroboros, a serpente que consome a própria cauda. 

Publicado por P. R. Cunha / 18 de junho de 2024


Frequência

Tu és uma antena de estímulos: toda a sorte de sons, gostos, cheiros, imagens — precisas de filtrá-los, fechar os olhos, tapar os ouvidos. Do contrário, enlouqueces. 

Publicado por P. R. Cunha / 17 de junho de 2024


Conforto rapidamente afastado ou hesitação compreensível antes de deitar as primeiras palavrinhas

Eis que o roteiro se repete: (1) quando escrevo, estou bem; (2) quando não consigo escrever, fico insuportável. Durante o pequeno-almoço alguém comenta: mas ontem estavas tão radiante? Acontece também que depois da serotonina, depois de colocar no papel a energia térmica da minha fornalha cerebral, invade-me aquele vazio triste e inútil — como o viajante de Calvino que perde o trem para Siena e escuta de um funcionário da estação que o próximo só sairá amanhã de manhã.

Publicado por P. R. Cunha / 14 de junho de 2024


Impulsos

Minhas experiências com a literatura austríaca/alemã desde tenra idade fez com que eu ficasse especialmente acostumado com certas tendências trágicas — doses excessivas de Thomas Bernhard, Hanns Chaim Mayer (Améry), Robert Musil, W. G. Sebald, Friedrich Nietzsche, Arthur Schopenhauer: quem sairia ileso? Alguns amigos da juventude que nunca se interessaram por nada disso e enxergavam a vida com toda a sorte de tonalidades cromáticas enquanto o meu mundo era tão colorido quanto a encosta de uma montanha impetuosa que acabara de entrar em erupção.

Publicado por P. R. Cunha / 10 de junho de 2024


Demorar-me no exílio: um ideal

Resolvi seguir os conselhos de um amigo escritor que me é caro e fiz a seguinte pergunta ao começar os trabalhos rotineiros: em que penso antes, durante e depois da escrita, para onde vão meus pensamentos? Depois de algumas ruminações impertinentes, chego ao veredicto: a nenhures. E talvez seja bem este o motivo de eu ainda me mutilar nas máquinas da literatura: não pensar, desligar-me de tudo e de todos, ser abduzido pelo vazio — mesmo que por apenas alguns instantes.

Publicado por P. R. Cunha / 8 de junho de 2024


Looping

Esta força maligna, faminta, traiçoeira, força brutal que me arremessa à escrivaninha a despeito de todos os dissabores da empreitada, a angústia que se segue, a ansiedade que se segue, a melancolia que encontro quando mergulho nos meus abismos, a paralisia, o afastamento, o desgosto, o cansaço — e, mesmo assim, cá estou a escrever de novo e de novo e de novo… «Pode até ter momentos bons, mas se mostra insuportável na imensa maioria das vezes», este é Bertrand Russell a explicar-se sobre a vida, mas se estivesse a falar sobre o trabalho do escritor de literatura quem poderia contestá-lo?

Publicado por P. R. Cunha / 6 de junho de 2024


Orações subordinadas

A estratégia seria estar-se sempre à procura de textos infinitos, ou, pelo menos, algo perto disso. Pensemos em O homem sem qualidades de Musil, no espólio incompleto de Kafka, nas imensas narrativas de Foster Wallace, no receio de terminar e não ter mais com o que se distrair depois. A clássica figura do editor inclinado a tentar dizer com voz benevolente ao romancista melancólico: já não é altura de finalizarmos o manuscrito? Espera-se, portanto, que o ponto final seja um mero sinal gráfico de suspensão, breve silêncio até à próxima frase, cuja imprevisibilidade perturba.

Publicado por P. R. Cunha / 4 de junho de 2024


Ferimentos

Nos últimos vinte anos de existência, Robert Walser tentara manter qualquer coisa parecida com «rotina literária» no hospital de alienados da cidade de Herisau. «O mais complicado», escreveu Walser no próprio diário no Natal de 1956, «o mais complicado é sobreviver ao dia depois que as minhas tarefas literárias se esgotaram». Naquela mesma tarde, enquanto caminhava sozinho à espera da ceia, Walser se perde na escuridão azulada, desaba na neve e desiste de sobreviver. Vejamos também o caso do poeta Ernst Herbeck, que passou praticamente toda a vida num hospital psiquiátrico em Niederösterreich (Baixa Áustria). «Pela manhã», costumava dizer Herbeck, «tenho cá ideias para determinados poemas, e tudo se mostra tolerável. Quando acabam as ideias, restam apenas relíquias de mim mesmo». E esta história muito disseminada no Condado de Blaine, Idaho, que garante que as últimas palavras de Hemingway antes de apertar o gatilho contra si mesmo teriam sido: a fonte secou.

Publicado por P. R. Cunha / 31 de maio de 2024


Protetor auditivo de espuma moldável com cordão

A partir de uma série de experiências desagradáveis, aciono os pedais da minha bicicleta e deixo que o passeio sem rumo amenize meu fatalismo profundo. Nessas ocasiões em que, como já disseram, carregamos o peso da tristeza imposta ao ser humano, fugimos sem sabê-lo, e quando percebemos o que realmente se passa estamos a várias milhas de casa. Quis o destino que eu fosse apaixonado, ou melhor, obcecado por música e ao mesmo tempo tivesse uma relação devastadora com os sons captados pelos meus ouvidos. Ainda criança, lembro de estar diante de um psiquiatra com hálito mentol, ele escreve algo no receituário e diz sem olhar nos olhos atentos da minha mãe: hipersensibilidade auditiva. Qualquer pequeno ruído, continua o psiquiatra, pode se transformar em uma tremenda explosão dentro da cabeça dele — aqui o psiquiatra aponta para mim. Depois desse diagnóstico, a cada explosão dentro da minha cabeça, e digo-o sem pudor, desejei ser surdo, não escutar nada, viver em silêncio absoluto. Sair do meu refúgio no meio de uma crise auditiva é particularmente doloroso. À primeira vista, controlo-me, pareço pessoa normal, mas, se observam de perto, desmascaram um rosto transtornado, suscetível, vingativo. Falam qualquer coisa, vejo os lábios se moverem, não consigo escutar. És surdo?, alguém pergunta. Finjo que sou.

Publicado por P. R. Cunha / 30 de maio de 2024


Epicentro

Pois que a ira, a tristeza, ou mesmo um amor não correspondido servem de combustível — estímulo literário. Há esta verdade indecorosa que se aprende, como se diz, na marra: não importa quão simples, minimalista, organizado você seja, mais cedo ou mais tarde o caos externo dará um jeito de tragá-lo, e dilacerá-lo, e trucidá-lo, e humilhá-lo…

Publicado por P. R. Cunha / 29 de maio de 2024


Adequadamente

Quando surge momento disponível para escrever, a oportunidade não deve ser desperdiçada. Calhou de a noite estar tranquila e propícia ao hábito da literatura, então precisas de sentar e trabalhar. O escritor funciona por acúmulos de imprevisibilidades — amanhã, não se sabe.

Publicado por P. R. Cunha / 26 de maio de 2024


Próprio do campo

5h30 da manhã, sensação de que ainda não acordei, como se entregue aos domínios de um longo sonho. Abro a portinha de madeira da casa. Nevoeiro baixo transforma a paisagem campestre. Percebo-me dentro de uma enorme sauna natural com nuvens glaciares. O frio corta e tenho de abotoar o casaco. Sinto o cheiro da relva molhada, escuto o barulho de animais a pastar, talvez patadas de algum cavalo, mas a neblina nunca me deixa ver.

Publicado por P. R. Cunha / 24 de maio de 2024


Tábula gratulatória

O escritor é feito de palavras, toda a sorte de construções gramaticais. Sabe-se que o dançarino se expressa com o próprio corpo, o pintor tem as tintas, o fotógrafo a fotografia. Lá vemos o escritor a fazer malabarismos com verbos, adjetivos, substantivos. Esse homem excêntrico que fala pouco, anda sempre com algum objeto para tomar notas, evita exposição excessiva ao sol (se formos mais longe, esta metáfora: os holofotes desagradam-lhe). A cada dia o escritor se alimenta de novas palavras, cresce e torna-se um bocadinho mais forte. No entanto, se privado dessa dieta rica em proteínas narrativas, ele desmorona-se, reduz-se a nada. 

Publicado por P. R. Cunha / 23 de maio de 2024


Afeições

Uma noite passada a querer escrever (descrever?) — este desejo louco que perturba, que toma conta de todos os outros desejos. O meu livro predileto está deitado na quinta prateleira, seção «F» da minha biblioteca. Enquanto aguarda pacientemente pela minha releitura, o livrinho nada me cobra, nada exige (como a mãe em determinadas narrativas de Pirandello a esperar pelo filho que se mostra algures), parece antes dizer: toma o teu tempo, pede-me seja o que for, mas não precisas de ter pressa, etc. 

Publicado por P. R. Cunha / 22 de maio de 2024


Dia de cão

Há uma qualquer mudança na rotina («preparei meu café numa chávena diferente porque não consegui achar a chávena da praxe»), mudança de itinerário, acordo um bocadinho mais tarde, sento-me à escrivaninha quarenta e três minutos depois do habitual, minha caneta favorita está sem tinta — e de aí para diante o dia todo mostrar-se-á confuso, transtornado, como aqueles cães de corrida que tentam caçar uma lebre-robô que, sabemos, é sempre inalcançável.  

Publicado por P. R. Cunha / 21 de maio de 2024


Coexistências

A pergunta inicial é esta: devo/quero me esconder atrás da voz de algum personagem ou utilizar o discurso direto em primeira pessoa? «Estava a falar com R. sobre relacionamentos humanos…» Continuo o texto a concluir os pensamentos de R. ou volto-me a mim mesmo? Há também este outro recurso [artifício]: a primeira pessoa do plural — lembremo-nos dos filósofos, etc. Tentamos implementar certas balanças na vida. De um lado da balança, colocamos as coisas boas. Do outro lado, as coisas ruins. Daí lidamos com toda a gente através desses filtros. R., ao café, explica-me sobre o próprio casamento (a torta de morango dele ainda está no prato, intocada): sempre procurei manter a balança inclinada para o lado das coisas boas, mas os desentendimentos continuavam a surgir, pois os meus conceitos e significados de bom e ruim não necessariamente eram os mesmos que os dela. R. continua: a verdade é que passamos imensa parte da vida a cultivar certos «valores», para, numa determinada altura, lidarmos com alguém que questiona, dilacera, invalida e derruba cada um desses «valores». É um pouco como estar a poucos metros da linha de chegada de uma exaustiva maratona e o fiscal de prova avisar que tudo precisava de recomeçar do zero. 

Publicado por P. R. Cunha / 18 de maio de 2024


Cultivar árvores

Se estou atento ou distraído, se me esforço ou se desisto, em pé, sentado, feliz, furioso, se fecho ou abro os olhos, satisfeito, insatisfeito — as folhas de uma oliveira continuam a crescer e a cair por si próprias. A indiferença desse ciclo coloca-me, como se diz, «no meu devido lugar»: controle limitado […], se é que há mesmo algum controle.

Publicado por P. R. Cunha / 14 de maio de 2024


Litoral

Formas de manejar inquietação — não necessariamente sofrimento, conceito interpretativo. «M. observava o entardecer lilás de Norwich, causava-lhe um encanto inominável; G., ao lado, sofria.» As buscas, no fim de contas, são distintas, cada um acaba por produzir estradas mais convenientes para as próprias ambições: e percorrê-las, a isto se chama viver (ou, pelo menos, tentar viver).

Publicado por P. R. Cunha / 13 de maio de 2024


Partida

Ela embarcou, está já dentro da aeronave, não consegue mais me ver, e mesmo assim fico a observar o avião parado. É, portanto, absolutamente inútil continuar ali: porém, não vou a lugar algum, permaneço no aeroporto até o avião ir embora.

Publicado por P. R. Cunha / 11 de maio de 2024


Curvaturas

Encontro com P. P. ao café da livraria. Estar com outro escritor é como observar a própria imagem invertida. Mostra-se portanto apropriada a figura do duplo — estás diante de um espelho (caleidoscópio). P. P. comenta: gostava de viajar e nunca olhar para trás, nunca retornar ao mesmo sítio, sempre adiante, sempre algures. Dir-se-iam que somos «espelhos excêntricos», por vezes côncavos, por vezes convexos.

Publicado por P. R. Cunha / 10 de maio de 2024


Docuficção

No documentário Nanook, o esquimó, o realizador Robert Flaherty tenta retratar o quotidiano dos inuítes «da maneira mais natural e espontânea possível». Um miúdo nativo que andava perto percebeu que aquilo que o senhor Flaherty estava a filmar não eram os esquimós propriamente: estamos actuando, dissera a criança. Também os inuítes do Árctico canadiano queriam se reinventar diante das lentes indiscretas de um roteirista «civilizado» — isso em 1922.

Publicado por P. R. Cunha / 9 de maio de 2024


Funeral

Será apenas coincidência levarmos flores tanto para quem nos apaixonamos quanto para os mortos? Não seriam ambos fantasmas, ruínas — corpos e sentimentos em constante decomposição? Ainda mais quando a pessoa amada recebe tais flores com a indiferença de um cadáver. «Ontem à noite, dei um belo buquê para F., ela nem se mexeu», etc.

Publicado por P. R. Cunha / 8 de maio de 2024


Estudos sociais

Qual o grau de complexidade alheia que se pode aguentar? O cérebro como um armazém, armário com caixas finitas, enchemo-las com toda a sorte de «dados». É nossa responsabilidade filtrar — dizer: isto entra, já isto aqui (apontamos com o indicador), já isto aqui, não entra. Um ser humano representa acúmulo de informações, sujeito que sofre, que arde, que guarda, repele, cogita, expande-se. Não tenho mais paciência para esse tipo de acréscimo. Canso-me. Hoje em dia, quando conheço alguém, invade-me certa preguiça, dói-me o outro.

Publicado por P. R. Cunha / 6 de maio de 2024


Confissões

Eu cá não suporto mais os textos de ficção. (BREVE PAUSA) […] Reformulo: a narrativa tradicional de ficção, com todas aquelas fórmulas batidas, e repetitivas, e enganadoras, com todas as previsibilidades da praxe. Sim, isso me entedia. Narrador onipresente que «lê» o que se passa dentro da cabeça de personagens. Não dou conta. Descrições detalhadas do candelabro da sala de estar da senhorita Gallagher, frases como: ele disse isso com um sorriso leve e estonteante estampado no rosto cuja juventude aos poucos e irremediavelmente se desvanece. Ainda admiram esse tipo de literatura? A mim não faz sentido, mete medo. 

Publicado por P. R. Cunha / 4 de maio de 2024


Meridiano magnético

E numa dessas escolhas imprevisíveis, num momento, como se diz, «conturbado», viramos a bússola da vida para outras direções, e atônitos perguntamos em que sítio, afinal, vai dar esta estradinha por onde não passa ninguém.

Publicado por P. R. Cunha / 3 de maio de 2024


Cumulonimbus

Subir montanha — caminho tortuoso à beira de um precipício indiferente, e isto causa ansiedade. Carrego no bolso do meu casaco de neve o bloquinho de anotações e a caneta. Continuo a percorrer a trilha até ao cume, onde, como me disse um nativo ao sopé da montanha, «o caminhante poderá apanhar todas as nuvens do mundo».

Publicado por P. R. Cunha / 2 de maio de 2024


Desfechos

Estou na chamada «estrada da vida» e percebo a aproximação de um veículo grande e pesado a carregar toda a sorte de problemas, dúvidas, angústias, etc. Certa vertente clínica moderna pede-me para enfrentar o veículo pesado, se possível abraçá-lo, aceitá-lo, ter resiliência. E o que eu faço? — saio do meio da estrada, deixo o veículo pesado passar.

Publicado por P. R. Cunha / 1º de maio de 2024


Geografia

É sempre o mais bonito —
o país em que
nunca estivemos.

Publicado por P. R. Cunha / 30 de abril de 2024


Consequências

Não te parece irônico, ele disse, não te parece irônico que cada escolha com a qual nos comprometemos faz com que deixamos de escolher uma quantidade absurda de outras possibilidades? No fim das contas, o arrependimento, os pensamentos de «e se eu tivesse ido pelo caminho inverso», o remorso, e as negações mostrar-se-ão efeitos colaterais inevitáveis.

Publicado por P. R. Cunha / 29 de abril de 2024


Prazos

É que toda esta tranquilidade — um dia acaba.

Publicado por P. R. Cunha / 28 de abril de 2024


Com muito esmero

Este caso que dá muito o que pensar: filho escritor recebeu a notícia da morte do pai, não se falavam há anos, e quando a pedido das autoridades foi buscar os pertences no apartamento do falecido — morto em um trágico acidente aéreo, conforme nos contam os noticiários —, percebera sobre a mesinha de cabeceira o exemplar do livro que havia publicado no início do ano, e se julgarmos pelas anotações nos cantos das páginas, o pai estava mesmo a ler a obra do filho com muito esmero.

Publicado por P. R. Cunha / 27 de abril de 2024


Ainda sob os galhos de uma macieira

Depois de quase dois anos sem utilizá-las por aqui, eis que aleatoriamente faço as pazes com as vírgulas. Algumas leitoras a perguntar o que, afinal, aconteceu com Bogdanov. Eu mesmo não faço a ideia. O facto é que abandonamos e somos abandonados numa periodicidade assustadora.

Publicado por P. R. Cunha / 24 de abril de 2024


Lições de anatomia LXXI

Vemos ao longe a figura diáfana de Bogdanov — cabeça erudita e exagerada e obscura e indiferente sob galhos de uma macieira que insiste em resistir às intempéries do inverno. As folhas e as mãos de Bogdanov não se mexem e é improvável que tal estado de repouso se altere: chegam portanto ao fim estas Lições de anatomia.

Publicado por P. R. Cunha / 22 de abril de 2024


Lições de anatomia LXX

Bogdanov está cansado. Ele está cansado de construir e de ter que destruir cansado de manter de falar de ouvir e de estar algures ele está cansado do embotamento das próprias ideias do intelectualismo egocêntrico do acúmulo de livros cansado dos seres humanos e dos encontros e desencontros cansado do barulho da claridade da cacofonia dos posicionamentos catastróficos cansado dos jornais cansado da arquitetura cansado dos museus… Sim. Bogdanov anda imensamente cansado.

Publicado por P. R. Cunha / 21 de abril de 2024


Lições de anatomia LXIX

Por experiência própria Bogdanov aprendeu a suspeitar dos sorrisos e das histórias extraordinárias que as pessoas contam e dos momentos de euforia aos quais elas se entregam e dos excessos — o que à primeira vista parece algo socialmente divertido pode ser apenas forma de ocultar certos desesperos internos.

Publicado por P. R. Cunha / 20 de abril de 2024


Lições de anatomia LXVIII

Precisaríamos compreender que depois de se acostumar com a solidão o escritor passa a desejá-la como um alcoólatra deseja o álcool escreve Bogdanov enquanto espera a chegada do comboio e se tivéssemos a possibilidade de comparar o cérebro de um usuário privado de entorpecentes e de um escritor privado de solidão é certinho que teríamos imensas dificuldades para distinguir um do outro.

Publicado por P. R. Cunha / 19 de abril de 2024


Lições de anatomia LXVII

Há qualquer coisa de libertador neste sentar-se à escrivaninha sem ter um tema específico escrever ao léu como se diz porque existe turbilhão de factores dentro de Bogdanov e se calhar demorar-se-ia uma pequena eternidade antes de ele esgotar-se um poço cada vez mais profundo uma onda que nunca vai quebrar à praia e esta confissão diária já que encarar a folha em branco não deixa de ser processo de revelação e revelação do melhor género pois longe do escrutínio alheio e eu cá também acredito acrescenta Bogdanov que o denominador comum do universo não é a harmonia dos corpos e sim a hostilidade a aniquilação indiferente da matéria o assassinato cego dos compostos orgânicos e inorgânicos.

Publicado por P. R. Cunha / 18 de abril de 2024


Lições de anatomia LXVI

A tendência natural de Bogdanov para o caos para a desordem para o inabitável fez com que ele se apegasse ainda mais às âncoras da literatura. Como se quisesse dizer: minha cabeça não coopera não se organiza então que eu pelo menos tenha algum domínio neste microcosmo aparentemente controlável — a escrita. De início essa era a justificativa para uma rotina regrada e inalterável. Porém aos poucos até mesmo essa pequena ilha de calmarias foi invadida por ventos furiosos e deixara de ser refúgio para se tornar outro sítio de autoexorcismo.

Publicado por P. R. Cunha / 17 de abril de 2024


Lições de anatomia LXV

A cama de súbito se transforma em bote salva-vidas e o quarto é todo mar escuro cujo horizonte se perde numa imensidão nocturna — Bogdanov deitado não se mexe. Eis um sonho recorrente que pode se mostrar fantasia aprazível ou pesadelo insondável a depender do desenlace da narrativa onírica.

Publicado por P. R. Cunha / 16 de abril de 2024


Lições de anatomia LXIV

Há manhãs em que Bogdanov sente que a própria vida encontra-se à beira do precipício. Bastaria um passo em falso de repente um olhar distraído para outra direção e a queda. De aí vêm os mecanismos de defesa — desejo de confinamento de agarrar-se aos livros da biblioteca uma conexão ou melhor uma metamorfose tão profunda que de várias maneiras Bogdanov deixaria de ser humano.

Publicado por P. R. Cunha / 15 de abril de 2024


Lições de anatomia LXIII

Não sejamos indiferentes a nenhuma fonte de inspiração escreve Bogdanov no bloco-notas. Mais uma vez esta imagem — olhamos para o vazio das coisas e tentamos descobrir o que o nada tem a nos dizer. O sujeito é expulso de um lugar para o outro um sem-ninho um sem-refúgio sempre em busca de um teto para trabalhar no manuscrito indo esconder-se cada vez mais longe não é mesmo não é mesmo não é mesmo?

Publicado por P. R. Cunha / 14 de abril de 2024


Lições de anatomia LXII

Bogdanov está agora a refletir: quantas pessoas já passaram pela minha vida e quantas ficaram e quantas se foram e que mais cedo ou mais tarde tudo será levado ao esquecimento inclusive eu mesmo — e ter esses pensamentos acalma o meu coração.

Publicado por P. R. Cunha / 13 de abril de 2024


Lições de anatomia LXI

O nada que nos rodeia o vazio que conforta e que por vezes também nos açoita com fúria os caminhos que nos levam ao mar ou às alturas de uma montanha de gelo escreve Bogdanov.

Publicado por P. R. Cunha / 12 de abril de 2024


Lições de anatomia LX

Bogdanov pensa nos livros na própria escrivaninha repleta de possibilidades na folha à espera de ser preenchida a dopamina que estimula os mecanismos de recompensa e aumenta a motivação além dos sentimentos de euforia causados pela noradrenalina a alquimia do cérebro a todo vapor as respostas fisiológicas Bogdanov também percebe a frequência cardíaca acelerada sim «um coração de corrida» como ele costuma dizer os comportamentos obsessivos para simplesmente sumir e entregar-se aos encantos da escrita.

Publicado por P. R. Cunha / 11 de abril de 2024


Lições de anatomia LIX

Há uma cidade no deserto — lá encontramos Bogdanov.

Publicado por P. R. Cunha / 10 de abril de 2024


Lições de anatomia LVIII

«Não me admira que exista uma tendência à loucura entre os escritores» Bogdanov diz isso meio a brincar. O que move a vida desses pobres diabos é a literatura e muitas vezes não conseguem praticá-la com a dedicação que gostariam. Empregos a tempo inteiro filhos dívidas casamentos demandas socializações diversas e ainda precisam de arranjar brechas para escrever e calha que não escrevem nada daí ficam furiosos doentes perdem a cabeça tornam-se melancólicos e quantos são trancados num asilo para poderem se acalmar um bocadinho e de lá nunca mais saem…

Publicado por P. R. Cunha / 9 de abril de 2024


Lições de anatomia LVII

Bogdanov aproveita todo o tempo de espera para ler/folhear qualquer coisa — dentro do táxi ou numa estação de comboios em pé na fila do banco enquanto aguarda alguém à mesa do café está sempre com algum livro no colo. Em casa nada de televisão de forma que Bogdanov dedica-se à escrita e às leituras sistemáticas e quando o faz gosta de dizer a si mesmo: esta altura da manhã é sagrada.

Publicado por P. R. Cunha / 8 de abril de 2024


Lições de anatomia LVI

Isolar-se não ver ninguém não falar não ouvir permitir-se esquecer o refúgio a desintoxicação de informações o cérebro silencioso os distanciamentos cruciais para os hábitos literários de Bogdanov. 

Publicado por P. R. Cunha / 7 de abril de 2024


Lições de anatomia LV

Lidar com a escrita nos períodos em que tudo vai bem e funciona a cabeça criativa e as ideias como que não têm fim — isso é de certo modo fácil. Se queres testar a verdadeira capacidade de resistir de um escritor diz Bogdanov precisas de encará-lo nos dias de trevas quando absolutamente nada acontece e a página vazia é quase um atestado de óbito.

Publicado por P. R. Cunha / 6 de abril de 2024


Lições de anatomia LIV

Bogdanov sentado à escrivaninha toma notas e por mais que tentássemos não conseguiríamos nos aproximar — seria antes uma aproximação meramente física mas ele estaria algures: muito longe.

Publicado por P. R. Cunha / 5 de abril de 2024


Lições de anatomia LIII

Escritores tentam encarcerar as complexidades do mundo dentro dos limites previsíveis de um pedaço de papel escreve Bogdanov no bloco-notas cujas páginas estão quase todas preenchidas com diversos trechos literários inícios que não deram em nada observações aforismos críticas apontamentos filosóficos — «muitos julgam fácil o livro que está pronto nem pensam nas trevas que antecederam a publicação» ou «jamais buscarei aplausos» ou «este navio dos loucos está a afundar» — e com essas anotações a ilusão de ter o caos sob controle anestesia passageira contra os efeitos colaterais da entropia etc.

Publicado por P. R. Cunha / 4 de abril de 2024


Lições de anatomia LII

De uma carta destinada ao amigo húngaro. Bogdanov diz: o incurável hábito de escrever domina muitos mas por que escrevemos? A mesma coisa de novo e de novo e de novo com outras palavras e se calhar repetimos as mesmas palavras em meio a guerras catástrofes toda a sorte de doenças traumas exaustão quase não conseguimos segurar a caneta o corpo dói a mente vacila e mesmo assim lá estamos nós sempre a escrever. Será que o fazemos para atestar que a despeito dos absurdos biológicos nascemos numa pedra cósmica a que chamamos de planeta Terra e vivemos um bocadinho e não vamos sair daqui sem ao menos deixar algum tipo de vestígio?

Publicado por P. R. Cunha / 3 de abril de 2024


Lições de anatomia LI

Bogdanov está a escrever livro e apesar de todas as complexidades e de todos os desafios e de todas as distrações em suma apesar de todos os percalços ele acorda às 5h45 da manhã toma banho gelado prepara o café senta-se à escrivaninha e a narrativa como se diz «ganha corpo». É preciso de ter disciplina/continuidade. Bogdanov não sabe ao certo quando chegará ao ponto final se daqui a alguns meses ou anos se o trajeto será pacífico ou devastador mas já passara por isso tantas vezes — o suficiente para perceber que vai lá chegar.

Publicado por P. R. Cunha / 2 de abril de 2024


Lições de anatomia L

O teu livro predileto será um reduto um bom e fiel amigo que pacientemente aguardará o teu retorno sem criar casos e sem cobrar nada em troca e é bem por isso que Bogdanov sempre preferiu as companhias de papel.

Publicado por P. R. Cunha / 1º de abril de 2024


Lições de anatomia XLIX

Por vezes acontece de Bogdanov ter alucinações literárias logo pela manhã e passará o dia inteiro como se num estado de transe sem saber ao certo em que «lado» está se real ou imaginário se fantástico ou corriqueiro — vê monstros florestas dinossauros voadores impérios arruinados fadas miúdas que falam idiomas estranhos e parecem zombar de Bogdanov sem o menor pudor.

Publicado por P. R. Cunha / 31 de março de 2024


Lições de anatomia XLVIII

Bogdanov coloca o vinil do Frank Sinatra para tocar 78 rpm The Columbia years (1943-1952) bloco-notas aberto: é comum associar a imagem do escritor aos loucos um Quixote desvairado a empunhar lápis e caneta palavras para todos os lados em defesa de honra e de caráter e de privacidade e do direito de poder escrever em silêncio e de manter o castelo protegido — em defesa portanto da própria existência.

Publicado por P. R. Cunha / 30 de março de 2024


Lições de anatomia XLVII

Por mais que Bogdanov se esforce para se mostrar equilibrado ele sabe direitinho que não existe neutralidade enquanto está a escrever — há sempre qualquer expectativa uma dor a ser mitigada a descrição de um encontro adorável com outro ser humano uma fuga um refúgio uma ferida antiga que nunca cicatriza.

Publicado por P. R. Cunha / 29 de março de 2024


Lições de anatomia XLVI

Pela manhã depois de preparar a chávena de café o apartamento em silêncio Bogdanov está sentado à escrivaninha e aos poucos a escrita o leva ao fluxo de consciência àquele estado em que os princípios corriqueiros de realidade já não funcionam de forma plena e as vozes que aparecem nos pensamentos de Bogdanov são dele ou vêm de outros (adicionar ponto de interrogação aqui) a pergunta é pertinente afinal ele transcreve essas vozes e as chama de «minha literatura» mas e se essas vozes não passarem de fantasmas de leituras passadas cacofonia de todas as autoras e de todos os autores que Bogdanov já leu seria então o escritor um aglomerado de miragens?

Publicado por P. R. Cunha / 28 de março de 2024


Lições de anatomia XLIII

Escrever é perseguir alguma coisa escreve Bogdanov no bloco-notas e por vezes essa coisa é tão abstrata e ilusória que o próprio escritor não percebe ao certo do que se trata. A semente no entanto foi lançada germinará se receber os devidos cuidados e Bogdanov sabe: há sementes que se tornam plantas grandes e outras que se tornam plantas miúdas.

Publicado por P. R. Cunha / 27 de março de 2024


Lições de anatomia XLII

Pode acontecer também de Bogdanov sair com tanta pressa e esquecer o bloco-notas em casa ao que enquanto espera para ser atendido pelo oftalmologista é atacado por uma matilha de narrativas e sem ter como anotá-las precisa de inventar testar e memorizar tudo na própria cabeça e eis Bogdanov muito agitado e confuso sem dizer palavra para que as ideias não se dissipem antes de ele voltar à escrivaninha e colocá-las no papel.

Publicado por P. R. Cunha / 26 de março de 2024


Lições de anatomia XLI

Aos domingos Bogdanov entrega-se à prática da pescaria. Rema o pequeno bote até ao meio do lago lança a vara e espera. E como Bogdanov não consegue evitar as associações literárias ele pensa que escrever também é um acto de expectativa. As ideias ele diz boiam num reservatório de possibilidades e o escritor tem de fisgá-las para então encaixá-las no texto — apenas precisamos de ter paciência e aguardar. 

Publicado por P. R. Cunha / 25 de março de 2024


Lições de anatomia XL

Bogdanov sabe que preencher o bloco-notas com toda a sorte de ruminações é apenas mais uma vã tentativa de assimilar as inúmeras complexidades em redor. Queremos afinal compreender ele diz para si mesmo mas a longo prazo nada disso sobreviverá: comidas de vermes tanto eu quanto o meu bloquinho de anotações.

Publicado por P. R. Cunha / 24 de março de 2024


Lições de anatomia XXXIX

A partir do instante em que o escritor traduz pensamentos numa folha de papel essas representações deixam de ser somente dele e Bogdanov passa a observar o texto a ganhar vida própria como Pigmalião diante da estátua de Galateia que de súbito começa a se mover sozinha.

Publicado por P. R. Cunha / 23 de março de 2024


Lições de anatomia XXXVIII

O atleta antes de praticar qualquer modalidade precisa de aquecer e esticar os músculos do contrário sofrerá lesões. Ao que o escritor acrescenta ainda Bogdanov no bloco-notas o escritor também tem que preparar o próprio cérebro se quiser utilizá-lo adequadamente. Vemos portanto o atleta a levantar pesos e a alongar o corpo já o escritor lê livros e absorve filosofias.

Publicado por P. R. Cunha / 22 de março de 2024


Lições de anatomia XXXVII

Bogdanov tem esta irremediável obsessão em terminar tudo o que começa. Com mãos enormes que mais parecem patas de rinoceronte ele avança de maneira hábil e disciplinada através das páginas do próprio manuscrito — como se alguém conseguisse tocar violino com a lâmina de uma foice e o som saísse perfeitamente afinado. 

Publicado por P. R. Cunha / 21 de março de 2024


Lições de anatomia XXXVI

É certo dizer que ideias narrativas podem surgir repentinamente mas o escritor só conseguirá experimentar esse ímpeto criativo se estiver com a cabeça preenchida com os ingredientes apropriados. Daí a importância das leituras prévias e compulsivas não necessariamente como forma de entretenimento mas antes como fonte/arquivo de pesquisas quantitativas comenta Bogdanov enquanto se aquece para praticar a corrida matinal. 

Publicado por P. R. Cunha / 20 de março de 2024


Lições de anatomia XXXV

O surfista observa o oceano diz Bogdanov. O surfista precisa de estar atento porque as ondas são imprevisíveis e traiçoeiras elas se acumulam depressa ao que ele posiciona a prancha no momento adequado para aproveitar a força da água que irá jogá-lo numa praia qualquer. Nesse sentido o escritor seria também uma espécie de surfista?

Publicado por P. R. Cunha / 19 de março de 2024


Lições de anatomia XXXIV

Noutros termos: a cada vez que Bogdanov tenta descrever o que enxerga/escuta ele está a relatar uma realidade fragmentada e insuficiente. Vai à escrivaninha para arquivar a própria memória num pedaço de papel e o passado não é mais o mesmo já foi alterado tantas vezes pelo cérebro misturado com outras lembranças. Aconteceu de facto daquela maneira? E se calhar há uma fotografia e Bogdanov analisa com espanto: eu não me lembro de ter visto a minha tia Galya na festa mas eis ela ali a segurar meus ombros enquanto sorrimos para o fotógrafo etc.

Publicado por P. R. Cunha / 18 de março de 2024


Lições de anatomia XXXIII

Os sentidos que utilizo para perceber as coisas em redor são limitados escreve Bogdanov no bloco-notas. Os meus olhos por exemplo só conseguem enxergar determinadas frequências de luz (banda situada entre 400 THz e 790 THz) os meus ouvidos só escutam uma fração do espectro auditivo (de 0 a 120/130 decibéis) portanto nada mais natural que aquilo que eu tento descrever seja igualmente restrito e insuficiente.

Publicado por P. R. Cunha / 17 de março de 2024


Lições de anatomia XXXII

É uma manhã nublada estamos sentados no terraço do café e vemos passar Bogdanov como que perdido em pensamentos. Bogdanov! alguém se arrisca a chamá-lo ei Bogdanov ao que ele se vira para ver quem diabos está a gritar daquela maneira disparatada e sem responder segue o próprio rumo sabe-se lá para onde.

Publicado por P. R. Cunha / 16 de março de 2024


Lições de anatomia XXXI

A estas Lições Bogdanov gostava de acrescentar ainda a vulnerabilidade do escritor enquanto escreve o próprio livro e o sinistro padrão de que justamente nesse período em que se mostra frágil e exposto ele tem de enfrentar as mais terríveis tragédias que de certeza irão petrificá-lo por meses a fio.

Publicado por P. R. Cunha / 15 de março de 2024


Lições de anatomia XXX

O grande desafio de qualquer empreitada literária de fôlego garante Bogdanov é que ela leva tempo considerável para ser concluída e o escritor precisa de carregar consigo o peso da incerteza já que tantas coisas podem acontecer no meio do caminho que se ele fosse pensar em todas as imprevisibilidades não conseguiria sequer colocar uma única frase no papel.

Publicado por P. R. Cunha / 14 de março de 2024


Lições de anatomia XXIX

A simplicidade o dizer o que precisa de ser dito sem acréscimos desnecessários a linha reta o não se perder em prolixidades o poder ouvir a própria voz numa orquestra desafinada o deixar o floreio para os floristas — assim Bogdanov tenta seguir em frente com prudências.

Publicado por P. R. Cunha / 13 de março de 2024


Lições de anatomia XXVIII

Respondendo à pergunta de um transeunte curioso que reconhecera Bogdanov e quisera saber afinal qual era o segredo da escrita já que ele o transeunte também tinha grande interesse em publicar livros Bogdanov fixou os olhos num horizonte invisível e disse: apenas senta e escreve e trata de não levantares antes do ponto final.

Publicado por P. R. Cunha / 12 de março de 2024


Lições de anatomia XXVII

Ao longo de uma série infinita de ruminações solitárias Bogdanov desenvolvera gostos peculiares aversões e hábitos pouco usuais. Determinadas viagens à guisa de exemplo causam-lhe crises agudas de ansiedade e ele não consegue entender como alguém pode preferir passar por todas as inconveniências de um deslocamento geográfico moderno a ficar tranquila e confortavelmente sentado numa poltrona e perder-se de bom grado numa jornada guiada por Stendhal ou Walser ou Sterne ou Kleist ou Schulz.

Publicado por P. R. Cunha / 11 de março de 2024


Lições de anatomia XXVI

Sentado novamente diante da folha em branco a segurar a caneta — Bogdanov. Quinze vinte trinta minutinhos de alucinações narrativas o bastante para se esquecer do mundo e dos habitantes desse mundo das dores decepções angústias desse mundo a caneta a pintar palavras no horizonte da página Bogdanov anestesiado sente um alívio temporário.

Publicado por P. R. Cunha / 10 de março de 2024


Lições de anatomia XXV

Há este entendimento geral: quando vemos Bogdanov de ânimo recobrado semblante sereno a esboçar sorrisos e a se entender com toda a gente sabemos que ali anda um homem satisfeito consigo mesmo Bogdanov tivera muito boa manhã de trabalhos literários mas quando aqueles olhos castanhos e profundos parecem lançar tempestades de fogo e ele se recolhe dentro do próprio paletó e é quase como se avistássemos um fantasma que voltara do mundo dos mortos sabemos então que a senhora Literatura aprontara uma das suas com o pobre Bogdanov.

Publicado por P. R. Cunha / 9 de março de 2024


Lições de anatomia XXIV

Quando Bogdanov vai passar uns dias com os pais e permanece longas horas em silêncio dentro do escritório e ao sair se depara com a mãe que se surpreende: meu filho a tranquilidade que trazes para esta casa e és tão discreto que é como se nem estivesses aqui. Bogdanov então torna a tirar o bloco-notas do bolso e escreve «ser invisível — um ideal».

Publicado por P. R. Cunha / 8 de março de 2024


Lições de anatomia XXIII

Sobre a construção e a manutenção do próprio refúgio Bogdanov tem isto a dizer: que seja um sítio simples arejado sem supérfluos e sem interferências externas um gabinete onde o escritor saiba estar em segurança consigo mesmo. Recolher-se diariamente nesse refúgio sob a sombra da escrivaninha eis um hábito saudável aos exercícios literários.

Publicado por P. R. Cunha / 7 de março de 2024


Lições de anatomia XXII

A boa e velha analogia obra literária/obra arquitetônica Bogdanov escreve ambas precisam de fundação bases consolidadas ambas precisam de engenheiros materiais resistentes projetos referências e acima de tudo ambas precisam de tempo para serem construídas do contrário desabam sobre si mesmas e deixam ruínas.

Publicado por P. R. Cunha / 6 de março de 2024


Lições de anatomia XXI

A vida de Bogdanov para quem vê de fora é monólito estático sentado à escrivaninha mas se ao menos pudessem enxergar o outro Bogdanov que se passa dentro daquela cabeça literária… 

Publicado por P. R. Cunha / 5 de março de 2024


Lições de anatomia XX

Depois que termina de ler e/ou de escrever vasta obra literária o escritor não consegue evitar a tentação de se sentir invencível — diz Bogdanov enquanto recoloca na estante o exemplar de O homem sem qualidades do sr. Robert Musil.

Publicado por P. R. Cunha / 4 de março de 2024


Lições de anatomia XIX

«Nada está tão ruim que não possa piorar» é nisso que acredita Bogdanov que de várias formas possíveis se aproveita da escrita como quem procurasse por medicamentos paliativos. Perdi as contas de quantas vezes uma frase adequada amenizara crises profundas e mitigara a ceifa implacável da melancolia ele confessa sem pudores.

Publicado por P. R. Cunha / 3 de março de 2024


Lições de anatomia XVIII

Deparar-se com algo grotesco com perturbações devastadoras Bogdanov insiste enquanto maneia a cabeça em sinal de reprovação e ultrajes de toda a sorte traições guerras ira vilezas mortes complô e já passara da hora de se retirar sim de abaixar as cortinas do palco esse movimento de onda esse pêndulo louco essa atração que expulsa o escritor do próprio escritório e ao mesmo tempo demonstra que até o mais recluso dos indivíduos ainda será refém de um corpo cheio de apetites sedento de necessidades prisioneiro de uma cela feita de carne osso doença e sangue eis em suma o que Bogdanov estava tentando explicar nas últimas Lições mas por algum motivo não conseguiu fazê-lo.

Publicado por P. R. Cunha / 2 de março de 2024


Lições de anatomia XVII

Há um momento ou melhor uma espécie de átimo em que o escritor se percebe absolutamente submerso num oceano de possibilidades criativas alguns o chamam de fluxo Tarkovsky de Зона (Zona) região misteriosa esconderijo transiente onde os sentidos se afastam da realidade e aquele que escreve pode agir com alguma soberania como o rei de um planeta distante que estivesse condenado a ser destruído pela própria estrela em expansão. Para Bogdanov essa é a parte mais significativa do dia e quando o átimo se despede só lhe resta esperar que o mesmo comboio passe para buscá-lo na manhã seguinte — embora nunca se tenha tanta certeza disso. 

Publicado por P. R. Cunha / 1º de março de 2024


Lições de anatomia XVI

É preciso criar cenário insustentável situações irremediáveis cair num poço artesiano para então ter as motivações os pretextos e as justificativas para a escapada rumo às atividades literárias — a escrita diz Bogdanov como a última mão que alguém estende para o náufrago que do contrário se afogaria. 

Publicado por P. R. Cunha / 29 de fevereiro de 2024


Lições de anatomia XV

Bogdanov gosta de se divertir com a seguinte anedota — dois escritores trancados numa cela escura e para um deles a ausência de luz é significativamente criativa enquanto para o outro a escuridão é enfadonha e sem valor. Se colocássemos mais duzentos ou trezentos escritores ali dentro perceberíamos o mesmo padrão a se repetir diz Bogdanov. Não estão a ver absolutamente nada e mesmo assim seriam incapazes de entrar num acordo a respeito desse nada.

Publicado por P. R. Cunha / 28 de fevereiro de 2024


Lições de anatomia XIV

Em menino Bogdanov costumava passar o inverno com o avô numa pequena cidade búlgara chamada Melnik e no segundo andar da casa tinha uma porta que estava sempre trancada de forma que Bogdanov se perguntava constantemente onde estaria a chave para abri-la. Certa manhã enquanto tomavam o pequeno-almoço o avô de Bogdanov à época um dos escritores mais respeitados da Bulgária confessou que a chave não existia e quando não encontramos a chave ele disse num tom taciturno quando não encontramos a chave arrombamos a porta só para percebermos que do outro lado não há nada.

Publicado por P. R. Cunha / 25 de fevereiro de 2024


Lições de anatomia XIII

Bogdanov segura a chávena de café e tenta se livrar de um pigarro inexistente: para compreendermos do que a escrita é capaz ele diz talvez fosse o caso de nos demorarmos um bocadinho em Kafka a quem tudo o que não fosse literatura era encarado como aborrecimento supérfluo. Kafka portanto sujeito composto de letras que se protegia da realidade dentro das muralhas de um castelo construído com as próprias projeções. Estamos em 1914 continua Bogdanov a Europa prestes a se automutilar numa carnificina invencível enquanto Kafka se tranca no quarto da Oppelt house (Mikulášská) e toma notas sobre aquele fatídico dois de agosto: Alemanha declarou guerra à Rússia — à tarde natação. Essa indiferença esse virar as costas para o mundo em frangalhos esse irresistível alheamento essa firmeza de ânimo ante a catástrofe eis a força motriz da escrita.

Publicado por P. R. Cunha / 22 de fevereiro de 2024


Lições de anatomia XII

Acontece de por vezes o escritor se mostrar um ótimo conselheiro mas ser absolutamente incapaz de resolver os próprios problemas — Bogdanov se identifica com esse aparente paradoxo pois já o acusaram de algo parecido. Bogdanov o escritor filosófico que trata das intempéries da vida enquanto ele mesmo se afoga num lago de melancolias. Um pouco como ler os ensinamentos amorosos de Nietzsche depois de saber como foram os casos amorosos de Nietzsche.

Publicado por P. R. Cunha / 21 de fevereiro de 2024


Lições de anatomia XI

Do que realmente precisa o escritor e pergunto isso com o devido respeito diz Bogdanov. De livros sim de uma biblioteca que seja tão importante tão crucial tão imprescindível que tirá-la dele seria como amputar-lhe o próprio coração.

Publicado por P. R. Cunha / 20 de fevereiro de 2024


Lições de anatomia X

Cada escritor deveria desenvolver as próprias idiossincrasias é nisso que acredita Bogdanov. Cultivar hábitos peculiares rotinas específicas maneirismo incompreensível ao julgamento alheio — não importam as excentricidades se ao fim e ao cabo elas ajudam a manter o equilíbrio durante as caminhadas à beira do abismo.

Publicado por P. R. Cunha / 19 de fevereiro de 2024


Lições de anatomia IX

Bogdanov com aquele ar pensativo que lhe é característico comenta que escrever requer disciplina e essa disciplina pode se manifestar com diversas indumentárias — pesquisas inspirações passageiras fobias acertos de contas memórias passeios de bicicleta períodos de profunda tristeza a gravidade oceânica um gatilho… E qual seria o aspecto de uma falha ele se pergunta como que diante de um público invisível: não dar ouvidos a essas estranhas e contraditórias sinfonias que levamos na nossa cabeça.

Publicado por P. R. Cunha / 17 de fevereiro de 2024


Lições de anatomia VIII

O pêndulo da praxe: há dias de sol e há dias de chuva dias de lágrimas e dias para se esboçar um qualquer sorriso dias para aparecer dias para se arrepender dias para desaparecer novamente. Bogdanov percebe o movimento dessas ondas e tenta alinhar a própria embarcação literária de acordo com marés às vezes a lograr êxito noutras vezes nem tanto.

Publicado por P. R. Cunha / 16 de fevereiro de 2024


Lições de anatomia VII

Numa manhã entusiasmada Bogdanov transfere ao bloco-notas parágrafos que o agradam deveras mas apesar do resultado satisfatório ele parece não conseguir tirar da cabeça que esses fragmentos mostram-se tão frágeis fúteis e vulneráveis quanto qualquer outro fragmento. Durante a catástrofe cai toda a sorte de edifícios os monumentais e os desagradáveis às vistas. Sempre foi assim.

Publicado por P. R. Cunha / 15 de fevereiro de 2024


Lições de anatomia VI

Dúvidas incertezas querelas mal resolvidas contradições dores receios cóleras acumuladas desejos perdas insatisfações — eis em suma o que leva Bogdanov à escrivaninha.

Publicado por P. R. Cunha / 14 de fevereiro de 2024


Lições de anatomia V

Escrever é sem dúvida um exercício de frustração escreve Bogdanov. Tenho cá pensamentos edificantes e coesos tudo muito maravilhoso de aí decido colocá-los no papel e as ideias estraçalham-se em cinco mil pedaços. É como um automóvel movido a combustíveis fósseis que perde mais de 90% de energia potencial antes de mover as próprias rodas.

Publicado por P. R. Cunha / 13 de fevereiro de 2024


Lições de anatomia IV

Ao que parece a solidão só faz sentido se queremos fugir de algo ou alguém isto é se temos algo ou alguém à nossa espera do contrário é uma solidão implacável que devora tudo — Bogdanov está sozinho e anota isto no bloco-notas. Na página anterior duas listas: o escritor é «antena» «esponja» «para-raios» «airbag» «aparelho digestivo» / amadurecer as próprias reflexões antes de colocá-las no papel 1) abrir os canais 2) absorver 3) inspecionar 4) misturar 5) digerir 6) elaborar 7) finalmente escrever. Ao rodapé lemos a seguinte sugestão PERCORRE ESSE CAMINHO TANTAS VEZES ATÉ QUE A TRAJETÓRIA SE TORNE [QUASE] IMPERCEPTÍVEL E DAÍ ENTRARÁS NO MODO AUTOMÁTICO etc.

Publicado por P. R. Cunha / 12 de fevereiro de 2024


Lições de anatomia III

Bogdanov diz que a partir do momento em que o escritor começa a se preocupar com vantagens e lucros a saber: dinheiro fama angariar/mobilizar leitores ele imediatamente se transforma num escritor ruim e desprezível. Aproveitar portanto os períodos de autonomia em que ninguém te conhece em que ninguém espera nada de ti e podes simplesmente escrever de graça sem aquela aniquiladora necessidade de prestar contas a este ou àquele público.

Publicado por P. R. Cunha / 11 de fevereiro de 2024


Lições de anatomia II

Bogdanov tem os ouvidos sensíveis — precisa de utilizar protetores auriculares. «Sou muito parecido com um submarino» ele diz «se quero me manter à superfície tenho de escrever porque a escrita é o que regula a quantidade de água dentro da minha estrutura». Trocando em miúdos: quando escreve Bogdanov submerge do contrário afunda.   

Publicado por P. R. Cunha / 10 de fevereiro de 2024


Lições de anatomia I

Depois de se deparar com algumas ciladas Bogdanov finalmente aprendeu a não confiar na própria memória percebera que mesmo as ideias mais robustas as imagens mais significativas os momentos mais esplendorosos são irrecuperáveis se não forem anotados. Hoje não raro observamos Bogdanov perambulando entre ruas e cafés da cidade ele de súbito se inclina para observar qualquer coisa tira orgulhosamente um bloco-notas do bolso do paletó e põe-se a escrever ali mesmo mas a respeito do quê — isso não sabemos.

Publicado por P. R. Cunha / 9 de fevereiro de 2024


Partes menores 

As palavras podem ser válvulas de descompressão ou pedras nos bolsos do náufrago. E nisso elas se parecem um bocado com o urânio — se o enriquecemos na medida certa produzimos energia sustentável mas se passamos dos limites estaremos diante de uma bomba atômica (now I am become Death the destroyer of worlds [eis que me torno Morte a destruidora de mundos]). Não é portanto de admirar que o escritor batalhe constantemente contra as limitações das ferramentas gramaticais e que a própria cabeça pareça querer explodir quando deixa de encontrar termos apropriadas para os sentimentos que o perseguem.

Publicado por P. R. Cunha / 8 de fevereiro de 2024


Paliativos

Necessário admitir à guisa de honestidade que se praticada habitual e obsessivamente a escrita transforma-se numa espécie de ópio um vício a mexer nas estruturas cognitivas mais sensíveis do indivíduo que escreve. Observamos o escritor entrar num transe ele agora tem a sensação ou melhor tem a certeza de que levita acima de tudo o que é terreno mesmo que esteja a tratar das mais ridículas patifarias.

Publicado por P. R. Cunha / 7 de fevereiro de 2024


Energia térmica

No momento em que o triste cérebro entra no modo sobrevivência o mero cogitar na possibilidade de ler livro transforma-se em tortura. O sujeito tão acostumado a se abastecer do combustível literário e a criar ilusões de reciprocidade de súbito se depara com a total indiferença da empreitada — como gritar para um precipício que não produz eco.

Publicado por P. R. Cunha / 6 de fevereiro de 2024


Sem fazer muito barulho

A qualidade fugitiva da biblioteca o sujeito diante das montanhas de papel quer expressar o que absorveu das leituras e aquilo que inicialmente era apenas uma despretensiosa antologia de citações alheias passa a ter sabores próprios e já não sabemos mais quem é quem.

Publicado por P. R. Cunha / 5 de fevereiro de 2024


Estudo do tempo

Talvez o escritor se dê por satisfeito se a obra que escreveu envelheça bem menos depressa do que ele mesmo.

Publicado por P. R. Cunha / 4 de fevereiro de 2024


Quietude #2

À noitinha: documentário sobre bunkers construídos durante a Guerra Fria. Sem me ater às amarras da plausibilidade e da lógica só conseguia pensar em como esses abrigos subterrâneos blindados seriam lugares fantásticos para se escrever em paz.

Publicado por P. R. Cunha / 3 de fevereiro de 2024


Quietude #1

Escritor acostumado aos paraísos artificiais logo percebe que nunca se está imune ao turbilhão da chamada «vida real» — há sempre uma correnteza imensamente mais forte que irá arrastá-lo para o precipício.

Publicado por P. R. Cunha / 2 de fevereiro de 2024


Subsídios

Estás sempre a aludir ao livro que se aproxima uma obra literária que enfim te apeteceria imenso mas repetes tantas vezes «tenho trabalhado no manuscrito» que chega a altura em que simplesmente não esperam mais nada de ti — e sentes o sabor amargo do inadiável como um caixeiro-viajante que perdesse o comboio porque cochilara no banco da estação. A cada revés um novo gesto de defesa contra as circunstâncias difíceis que se seguem. Num dos incontáveis pesadelos da semana passada recebeste reprimenda de certa figura fantasmagórica que diz não protegeste a tua vida literária o bastante não mantiveste segredo livra-te dos amplificadores. 

Publicado por P. R. Cunha / 1º de fevereiro de 2024


Zona árida

Havia tantos livros e ninguém mais acreditava em livros sequer davam-se ao trabalho de folheá-los.

Publicado por P. R. Cunha / 31 de janeiro de 2024


Reavaliações (Café Wittgenstein)

Café Wittgenstein estava como se diz fechado para balanço porque lidar com seres humanos me é cada vez mais custoso de forma que na medida do possível tento evitá-los mesmo que não passem de criaturas imaginárias ou seja clientela da minha própria cabeça. [O tempo é curto e as forças são escassas] as reflexões deste Café têm um efeito determinante sobre mim — ao fazê-las entrego-me às turbinas [se Nietzsche era dinamite Wittgenstein era avião de propulsão rumo a nenhures] técnicas de autocontrole meditações que direta e indiretamente amenizam aquela minha «outra» existência deveras pragmática. Por vezes é como se o próprio filósofo viesse na minha direção e se apresentasse: Wittgenstein destruidor de certezas.

Publicado por P. R. Cunha / 30 de janeiro de 2024


Convivência

P. acordou de um sono sem sonho a luz cinza da manhã nublada que preguiçosamente preenchia o quarto e ficou deitado observando a própria mesa de trabalho com pilhas de livros e cadernos preenchidos e todas aquelas anotações avulsas a cena de um crime qualquer e P. buscava pistas tentava compreender o que havia se passado ali nos últimos meses um rumor se calhar uma promessa vazia mas não encontrava nada e sabia que mais uma vez teria de se acostumar àquela desesperança hostil que insistia em fazer longas visitas embaraçosas.

Publicado por P. R. Cunha / 29 de janeiro de 2024


Em linhas tortuosas

O epicentro da minha vida sempre foi a escrita e arrisco-me a dizer que sempre será pois nesta altura estou com quase quarenta anos e não sei se tenho forças adequadas para remover este enorme cometa que ocupa meus pensamentos praticamente a tempo inteiro. Não me considero um escritor fracassado até porque se o fosse os substantivos não surgiriam na folha em branco com certa facilidade mas sou na maior parte um autor fracassado não sei angariar leitores como se diz no jargão comercial buscar editoras tampouco me apetece e só de pensar em noites de autógrafo e/ou leituras em público a agorafobia consome as minhas entranhas. Em suma eu sei o que quero escrever mas não sei vender o que escrevo. Não exageraria se dissesse que a construção de universos paralelos é uma atividade que torna a minha existência interior suportável e penso que quando estou um bocadinho predisposto a vida exterior é bem mais fácil de domar ainda mais quando aprendemos a sair do esconderijo com os disfarces adequados. A coisa toda obviamente não pode durar muito tempo há limites. Se fico longe da escrivaninha meu estado emocional se deteriora e deve ser uma cena dolorosa para quem está perto. Então tento explicar sem sucesso que meus modos são voltados para a escrita minha rotina minhas neuroses minha energia minhas obsessões minha impaciência meu desespero tudo tem a ver com a escrita pois se escrevo as coisas tendem a ficar bem mas se não escrevo torno-me ainda mais insuportável. O que quero dizer é que as ondas da escrita me definem. Posso estar na crista em puro êxtase e num intervalo de poucas horas cair numa depressão abissal como um oceano que nunca se decidisse. A verdade é que se trata de uma batalha constante para conseguir escrever ter o meu momento com a escrita e quando as pessoas simplesmente me deixam em paz eu logo desconfio: ora isso não pode estar certo por que me deixam escrever qual é o ardil desta vez etc. etc. etc. Como tantos outros escritores também fiz listas detalhadas de tudo o que já sacrifiquei pela escrita — série de carnificinas pessoas objetos relacionamentos oportunidades desperdiçadas pedaços para todos os lados. De aí a escrita falha ou talvez a manhã não tenha sido assim tão produtiva e é quase impossível não se perguntar: vale a pena?

Publicado por P. R. Cunha / 28 de janeiro de 2024


Fôlego ou combustível ferroviário

Poder-se-ia dizer que este escritor não está a correr para demonstrar vitalidades intelectuais — é que ele simplesmente seria despedaçado pela locomotiva da irrelevância caso desacelerasse.

Publicado por P. R. Cunha / 27 de janeiro de 2024


Mamute

O meu animal favorito é o mamute. Mas o mamute já não existe ela disse. Sorrio e digo sim já não existe. Isso explica muita coisa ela disse.

Publicado por P. R. Cunha / 26 de janeiro de 2024


Progressões

Escritores têm potencialidades diferentes alguns falam direto ao nosso coração outros nos colocam numa corrida de obstáculos e como sabemos nem todas as corridas de obstáculos valem a pena. 

Publicado por P. R. Cunha / 25 de janeiro de 2024


Ostrowski

Podemos ler no diário do sr. Ostrowski: acabo de me candidatar à vaga de orador/palestrante de uma renomada empresa de comunicação que oferece além de ótimo salário condições de trabalho exemplares mas há este pequeno e talvez insignificante detalhe — sou gago.

Publicado por P. R. Cunha / 24 de janeiro de 2024


Fundamentos

Realidades sufocantemente insanas e fantasias fugitivas que renovam os próprios sentidos — aquelas justificam estas.

Publicado por P. R. Cunha / 23 de janeiro de 2024


Insatisfeito

Talvez o único desapontamento verdadeiramente genuíno seja a impossibilidade intrínseca de traduzir com palavras certas ruínas de pensamentos abstratos que te assolam a cada par de segundos — ficas sempre com a impressão de que algo está a faltar de que estás diante de um vazio que não se pode preencher.

Publicado por P. R. Cunha / 21 de janeiro de 2024


Pré-histórico

Escrever pelo simples facto de escrever sem esperar nada sem tampouco almejar algo nenhum eco nenhuma reverberação nem resposta apenas o primitivismo da empreitada ideias-caneta-pedaço-de-papel e do que mais precisaríamos?

Publicado por P. R. Cunha / 20 de janeiro de 2024


Repouso

O que buscas na escrita — um qualquer alheamento porque enquanto escreves deixas de pensar no teu próprio acto final mesmo que apenas por alguns instantes. E não é assim com todas as distrações? Anestesias momentâneas do facto de estarmos a desvanecer um bocadinho mais a cada dia.

Publicado por P. R. Cunha / 19 de janeiro de 2024


Serenata

Depois de tantas recusas e esconderijos é um prodígio que ainda me convidem para alguma coisa.

Publicado por P. R. Cunha / 18 de janeiro de 2024


Estorvo

Outra madrugada insone tu fechas os olhos e escreves com aquelas luzes esverdeadas que surgem e desaparecem atrás das pálpebras estás cansado não somente por não conseguires dormir é um cansaço geral mais amplo é um cansaço das pequenas coisas é um cansaço das grandes coisas é um cansaço dos mínimos detalhes e também da falta de detalhe macro/micro cansaço quando as atividades que antes tanto te apeteciam agora passam diante de ti feito espírito maligno e zombeteiro que estivesse à procura da própria cova.

Publicado por P. R. Cunha / 17 de janeiro de 2024


Atuais parâmetros de felicidade

Deitado na cama ele folheia romance de Stendhal e se recorda de que ela antes fugir com o agente imobiliário costumava dizer «não achas que estás demasiado velho para esses mundos alternativos» ao que ele suspira desliga a luminária e aos poucos o escuro é preenchido por outras decepções abafadas.

Publicado por P. R. Cunha / 16 de janeiro de 2024


O que seria

O que seria da literatura do monsieur Proust se não fosse a cama se não fosse o universo claustrofóbico do próprio quarto com a chávena deitada sobre a mesinha-de-cabeceira à espera de mais uma manhã insensata…

Publicado por P. R. Cunha / 15 de janeiro de 2024


Investimento de risco

Todos os dias ele acordava cedo preparava o café e escrevia um par de linhas sempre com a ilusão de um futuro livro «a ser atingido» mas esses pequenos trechos diários não passavam de fragmentos de fragmentos de fragmentos que não levavam nada a cabo.

Publicado por P. R. Cunha / 14 de janeiro de 2024


Caça-fantasmas

Escrever é de muitas formas uma busca pelo invisível e escritor se depara com qualquer coisa abstrata e tenta enjaular o espectro nos limites da página — eu por exemplo gosto deste caderno com folhas cremosas sobre as quais a caneta desfila a própria tinta cujo contraste é prazeroso às vistas — enjaular o invisível como estava a dizer um pouco como carregar água com as mãos ela simplesmente escorre entre os dedos e a sede é imensa.

Publicado por P. R. Cunha / 13 de janeiro de 2024


Traços ilegíveis

Numa manhã chuvosa da primavera de 1999 eu me sento à escrivaninha do vovô e tomo notas. Eis ali um pré-adolescente solitário confuso e perdido que de súbito encontra âncoras nas chamadas fantasias literárias. É tudo muito tosco primitivo sem pé nem cabeça mas o bastante para me estabilizar. Vovô então entra no gabinete observa a criança rabiscando e pergunta com a docilidade da praxe o que estás a fazer ao que simplesmente respondo não faço a ideia vovô.

Publicado por P. R. Cunha / 12 de janeiro de 2024


Colheita

Vida: és traiçoeira
prometes tudo na juventude
abres tantos caminhos
tantas possibilidades
que cada escolha é
deixar mil escolhas para trás
enquanto tu passas
veloz e impertinente
voltas em redor do sol
semeias amarguras
quantas perdas
corpos enterrados
olhos atónitos
diante da dolorosa condição humana.

Publicado por P. R. Cunha / 11 de janeiro de 2024


Entre seres

Situações aleatórias objetos que são apresentados sem qualquer contexto nenhum esforço para explicar o que se passa apenas blocos textuais sem vírgula e quem se predispõe a ler ou antes quem se arrisca a ler fica com a sensação de que algo está errado e algo definitivamente está errado isto só pode ser obra de algum louco de algum neurótico obsessivo porque tudo fora do lugar e narrador (ou aquele que poderia ser considerado narrador) estabelece estas perguntas ONDE ESTAMOS QUE ALGAZARRA É ESTA QUE TIPO DE PLANETA É ESTE uma estrutura que de longe parece excerto literário comum mas quem olhasse de perto logo perceberia que se trata de outra coisa.

Publicado por P. R. Cunha / 10 de janeiro de 2024


Mármore

A verdade é que se alguém fala bem ou mal de algo que escrevo eu cá não sinto nada — é como chicotear uma estátua. 

Publicado por P. R. Cunha / 9 de janeiro de 2024


Excesso de serenidade anestesia as vontades criativas do pobre escritor

Parece necessário sempre existir algum tipo de intimidação uma ameaça de ser interrompido a qualquer momento como bomba-relógio escondida num canto do escritório e dissessem «a bomba-relógio pode ou não estar ativada» ou um atirador à espreita que pudesse apertar o gatilho quando menos esperamos de aí perceberíamos a própria escrita fluir sem as afetações da praxe.

Publicado por P. R. Cunha / 8 de janeiro de 2024


Garganta

Não fazia sentido nunca fez sentido e duvida-se que um dia fará qualquer sentido narrativa aleatória com cenários duvidosos personagens desconfiados e quem se deparasse com este absurdo tatear-se-ia no escuro em busca de possíveis pistas e ao encontrar supostas explicações não teria tempo de concluir nada porque o texto acabaria abruptamente como costu…

Publicado por P. R. Cunha / 7 de janeiro de 2024


Medida de energia não disponível para a realização de trabalho

Hotel ao qual o sujeito vai em busca de sossego um lugar mais silencioso do que o de costume pois em casa há toda a sorte de ruídos e quando se abre a janela é um microcaos incontrolável vêm sons de todos os lados microcaos ele repete em voz alta microcaos é que ultimamente tem se dedicado ao neologismo substantivo de aí que o sujeito se livra de toda a parafernália de hotelaria e transforma a mesa do quarto nº 805 em escrivaninha demora-se diante daquele pedaço retangular de madeira com quatro patas finas e diz consigo mesmo devo dar prosseguimento ao manuscrito se calhar escrever uma ou duas páginas e quando o sujeito finalmente se ajeita para anotar a próxima frase a caneta cantarola uma antiga poesia finlandesa oh pobre infeliz lança-me logo ao teu coração.

Publicado por P. R. Cunha / 6 de janeiro de 2024


Arpeggio acorde quebrado ou acorde em que notas individuais são tocadas uma por uma e não todas juntas de uma vez

A página em branco tornara-se a própria amante um conjunto finito de possibilidades infinitas peço imensas desculpas estava a compor esta sinfonia para ti e foi o mais longe que consegui chegar (TOCA A SINFONIA A AMANTE DÁ DE OMBROS E SUSSURRA SIM ESTÁ MUITO BOA MESMO) mas só muito de vez em quando se experimenta qualquer coisa que poderia ser chamada de música escolhe algumas notas que te apetecem e compõe sinfonia estás agora escondido numa pousada florestal e escreves a partitura imaginas as melodias as cordas a percussão baixo médio grave a coisa toda ganha corpo mas não consegues terminar nunca conseguiste terminar nada eis o fardo nunca terminar nada repetes isso em voz alta não termino nada não compreendo há impeditivos tentas trabalhar em pé não funciona tentas trabalhar sentado deitado inclinado sem sucesso ah olá tu dizes à funcionária da pousada florestal que de súbito entra no quarto não sou compositor tu insistes sou biólogo estudo as árvores não percebo diz a funcionária da pousada florestal achava que estavas a compor sinfonia não não não tu dizes apenas estudo as árvores.

Publicado por P. R. Cunha / 5 de janeiro de 2024


Outras vozes

Livros sobre o nada que mergulham no nada que não saem do nada sem narrativa sem progressão ou qualquer elemento que faça alguém pensar pois bem isto que estou a ler é um livro os pés gelados porque o cobertor está a cair da cama elementos combinatórios como equação matemática deveras complicada resolvida por miúdo que nunca chegasse a uma resposta certa sempre rabiscos e toda a sorte de números e palavras incompreensíveis sobre a página afinal é apenas um miúdo diante de problema absolutamente incompreensível para as próprias capacidades mentais diferentes mecanismos que se juntam e não se formam (PAUSA) nenhuma estrutura estás a sonhar alguém diz atrás de ti sim estás a sonhar mas a escuridão não te permite ver de onde vem a voz e tens apenas que lidar com a voz com os tons melancólicos da voz e pensas que é a voz de alguém realmente muito triste parece a voz da tua tia-avó quando te telefonara três dias antes de ir até à sala com o revólver em mãos bala na têmpora estou mesmo a escrever isto (?) estou a sonhar é insónia colocam-te nestas narrativas sem contexto sem informação adicional nenhum objetivo aparente procuras âncoras e não encontras âncoras o teu navio naufraga (?) insiste a voz tu apenas estás ali parado EXPLORA ATÉ QUE O TEU TEMPO DE EXPLORAR SE ACABE ENTÃO RETIRA-TE foi o que a tia-avó te disse ao telefone e três dias depois ela não estava ela mesma decidira se retirar escrevo num estado de quase sono e quase não consegues manter os olhos abertos os teus pobres e cansados olhos o que fizestes com os teus olhos simplesmente narrativa sem pé nem cabeça como se diz sem propósito repetições narrativa disparatada a morte dos sentidos estás realmente a construir estas coisas isto é real tudo o que fazes é ler e escrever tudo o que fazes é explorar porque o teu tempo de explorar ainda não acabou estás a ter mais um daqueles episódios e pensas em colocar a culpa na insónia novamente quando sabes muito bem de que a culpa não é lá da insónia A CULPA É DA TUA CABEÇA diz a voz tia-avó é a senhora a dizer essas coisas tu enfim balbucias é a senhora a brincar mas a voz não te responde são três e vinte e cinco da manhã não consegues dormir então decides ir ao computador e agora escreves todas essas coisas sobre o nada livros sobre o nada mergulhos no nada &tc. &tc. escreves por uns oito ou nove minutos até caíres no sono e tua cabeça desaba no teclado o editor de texto aberto as tuas bochechas pressionam botões aleatoriamente e as bochechas escrevem numa língua alienígena está lá na tela está lá no editor de texto a língua de outros mundos poderás averiguar quando acordares por enquanto não consegues perceber pois estás a dormir o mesmo acontecerá quando morreres as pessoas continuarão a escrever coisas aleatórias a falar coisas aleatórias a comprar coisas aleatórias a sofrer coisas aleatórias e tu não estarás aqui não perceberás nada as pessoas não sentirão a tua falta da mesma forma que não sentiram a tua falta antes do teu nascimento o nada-antes um piscar de olhos o nada-depois sempre foi assim e não consegues parar de pensar por mais que tentes por mais que digas NÃO QUERO PENSAR é um esforço desumano esforço inútil os pensamentos estão ali independentemente das tuas vontades e todas as árvores que já morreram e todas as chuvas que já caíram e todos os poemas que foram escritos e incinerados e todos os poemas que ainda serão escritos e a voz a mesma voz a voz persistente como as notas de um sintetizador quebrado a voz a repetir ONDE ESTÁS é hora de acordar.

Publicado por P. R. Cunha / 4 de janeiro de 2024


O artista

Ela se sentou apressadamente e pediu café duplo ao garçom e me disse que aquilo tudo era uma tremenda loucura sim ela nunca imaginou que ele fosse embora que o artista a deixaria e agora que ela estava sozinha passou a dar valor às banalidades do artista à simples convivência com o artista às manias do artista à rotina do artista à bipolaridade do artista ela disse enquanto aproximava o café duplo dos lábios bebericava e recolocava o café sobre a mesa quando o artista resolveu não voltar ela continuou quando o artista desapareceu levara consigo a criatividade as aventuras a bomba-relógio a poesia o modo louco e imprevisível de encarar as coisas e agora já não tenho mais nada disso e é terrível aguentar todo aquele silêncio em casa ela disse enquanto olhava para os lados talvez à procura do próprio artista.

Publicado por P. R. Cunha / 3 de janeiro de 2024


Dois mil e vinte e quatro

E chega uma altura em que nem a tua própria mãe lê mais as coisas que tu escreves.

Publicado por P. R. Cunha / 2 de janeiro de 2024


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