Blogue — 2023 (arquivo)

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Ouvia-se o ruído simples e convidativo da chuva

Paradoxo é este: se o escritor se sente desconfortável em toda a parte então toda a parte será sítio propício à escrita porque como com as outras coisas o nosso cérebro se acostuma mas desde que o escritor não se entregue a miragens dissimuladas pois a imensa maioria nunca poderá fugir para um castelo bucólico no interior de Inglaterra.

Publicado por P. R. Cunha / 31 de dezembro de 2023


Intransigência

Ao lidar com a catástrofe a família volta-se ao escritor que está devastado dilacerado fora de si com a morte do próprio pai mas a família mostra-se intransigente e diz anda escreve logo o obituário tu que fazes essas coisas.

Publicado por P. R. Cunha / 30 de dezembro de 2023


Processo

Uma ideia grandiosa pela manhã geralmente sob o efeito da cafeína mas uma ideia que se desvanecesse à medida que o próprio dia decaísse até se tornar apenas um pensamento ingênuo e melancólico como os tons de um fim de tarde nublado.

Publicado por P. R. Cunha / 29 de dezembro de 2023


Limites

Daí pedem ao escritor que entre num balão e suba até à estratosfera e da superfície com o auxílio de binóculos conseguem observá-lo sufocando-se aos poucos à medida que o balão ultrapassa as camadas atmosféricas e enquanto o rosto do escritor fica cada vez mais roxo e contorcido alguém grita daqui de baixo ora dê-nos pelo menos um sorriso é para uma fotografia etc.

Publicado por P. R. Cunha / 28 de dezembro de 2023


Perfilados

Há diversos tipos de escritores há os escritores que escrevem sem parar dia tarde e noite escrevem e escrevem transpiram e escrevem o mundo lá fora desaba e não param de escrever há os escritores que adiam que estão sempre ocupados com outras tarefas que prometem a si mesmos que «amanhã será outro dia» e que neste outro dia estarão se calhar mais dispostos para iniciar um trabalho como se diz de fôlego e há também os escritores silenciosos que ficam ali à espreita como um barco ancorado que balança ao sabor das ondas antes da chegada da tempestade não falam nada não prometem nada e quem os observasse de longe talvez pensasse que são uns desocupados mas na verdade são indivíduos meticulosos que escrevem com as penas do pensamento antes de se colocarem diante do papel vazio.

Publicado por P. R. Cunha / 27 de dezembro de 2023


Perdas transitórias

Olá escrivaninha minha velha amiga eu digo isso enquanto me ajeito na cadeira e cantarolo a melodia de The sound of silence Simon & Garfunkel e um jato de adrenalina invade meu corpo como no réveillon de dois mil e dezoito em que experimentei ecstasy com uma ilustradora carioca cujo nome já não me recordo e agora a escrivaninha abre novamente todas as possibilidades todas as barreiras desabam e a máquina de escrever tradutora dos meus fluxos com o teclado barulhento teclado furioso que há muito não recebe a manutenção que deveria teclado que parece gritar não me abandones assim de novo ou te deixarei para sempre e desta vez falo a sério.

Publicado por P. R. Cunha / 23 de dezembro de 2023


Toda a sorte de superfícies para esgotar ideias

Os fantasmas pegam-no desprevenido ele estava de pé talvez a pensar em alguma árvore específica com os pensamentos algures e de repente é como se tropeçasse e quando cai escutam-se barulhos graves e abafados e uns grunhidos resignados e pelos vistos a cada queda o acto de se levantar exige mais esforço um esforço descomunal como se diz e os fantasmas ficam ali a rodeá-lo e não esboçam qualquer reação não riem não tiram sarro não demonstram tristeza não se envolvem com a cena de maneira nenhuma e por serem translúcidos nada mais natural que a imprevisibilidade faça parte da índole desses espectros.

Publicado por P. R. Cunha / 14 de dezembro de 2023


Sempre a correr sempre atrasado sempre a tropeçar sempre a perder qualquer coisa sempre no sítio errado

Estirado no sofá feito um Oblómov tropical ele observa a própria escrivaninha o formato da escrivaninha a madeira da escrivaninha os materiais de papelaria sobre a escrivaninha e aquilo lhe causa tremenda aversão uma angústia um pavor e diante desta cena grotesca ele começa a cogitar seriamente: não escreverei mais acabou etc.

Publicado por P. R. Cunha / 11 de dezembro de 2023


Vigilância

Damian perambulava pelo salão como se fosse um marinheiro à deriva enquanto segurava o próprio copo de vodka finlandesa com aquele sabor forte e maligno que ainda o levava de volta para casa mesmo que casa fosse hoje um termo tão subjetivo e abstrato para Damian que ergueu a cabeça e viu os noivos descendo as escadas para receber os convidados ansiosos e por mais que tivesse prometido a si mesmo que não olharia para ela que não prolongaria aquele desespero inútil que em suma respeitaria o matrimônio alheio Damian capturou as pupilas da noiva cujo vestido agora parecia mortalha silenciosa a se arrastar sobre os degraus de granito.

Publicado por P. R. Cunha / 5 de dezembro de 2023


Aparelho digestivo

Quando tu morres a tua matéria se transforma num pão ele disse e tu estás agora à vitrina de uma padaria percebes dedos se aproximando e se afastando de ti até que alguém te escolhe e tem imensa fome e te devora e te mastiga e só então é que tu morres de facto ele disse e como ninguém sabe o que vem «depois» está é uma hipótese tão plausível e absurda quanto qualquer outra.

Publicado por P. R. Cunha / 27 de novembro de 2023


Penhascos

A imagem de Kafka é perfeita: o fazedor de literaturas como um equilibrista mas ao contrário do artista de variedades que possui rede de proteção para eventuais quedas no caso do escritor não colocam nada e ele precisa de manter a compostura por sua conta e risco. É uma travessia que exige portanto firmeza e um bocadinho de insanidade. Daí que o perigo de nos recusarmos a escrever por demasiado tempo de evitarmos colocar como se diz mãos à obra não é tanto «perder a habilidade de escrever» mas antes não ter mais a coragem necessária para encarar essa travessia ao desfiladeiro.

Publicado por P. R. Cunha / 25 de novembro de 2023


Ação oxidante da água do mar

Assim que falamos «estou a trabalhar num manuscrito» ou «tenho me dedicado à fazenda literária» ou «escrevo um romance» ou «coloco ideias no papel» ou «pratico as filosofias introspectivas» assim que cometemos erro grave como esses erro gravíssimo e por vezes irremediável assim que nos vemos expostos e vulneráveis e à mercê das imprevisibilidades externas do escrutínio alheio percebemos a nossa obra de adoração o produto de nossas obsessões diárias definhar como determinados objetos que se desintegram caso fiquem demasiado tempo sob os efeitos da maresia.

Publicado por P. R. Cunha / 22 de novembro de 2023


Como se tornar locomotiva obsoleta

A locomotiva já foi um dos maiores símbolos do chamado progresso social sinônimo de robustez de força moderna das vontades humanas de passar por cima de tudo e de todos. Hoje há museus dedicados única e exclusivamente às locomotivas.

Publicado por P. R. Cunha / 20 de novembro de 2023


Transtornos

Poucos lugares refletem com tanta precisão e com tanto constrangimento o meu carácter instável do que uma grande livraria onde num primeiro momento posso me sentir acolhido/protegido/enamorado pelas imensas prateleiras para no instante seguinte coisa de segundos eu me sufocar me desesperar até finalmente naufragar diante daquele aniquilador oceano de livros infinitos.

Publicado por P. R. Cunha / 28 de outubro de 2023


Esta não é uma pergunta retórica apenas gostava de saber se sentes falta da escrita do acto de escrever da simplicidade da coisa toda

Tu és um ser cheio de buracos e vícios e reincidências e ciclos do tipo altos-e-baixos e por vezes precisas mesmo de ficar longe de permanecer em silêncio durante períodos indeterminados momentos em que tu enfim podes observar a ti mesmo porque todas essas falhas sempre estiveram ali como que à espreita mas tu estavas a correr demasiado para conseguir percebê-las.

Tuas anotações os livros que escreves os bilhetes largados sobre a escrivaninha — teus mausoléus.

Daqui a cinco bilhões de anos este planeta será devidamente incinerado pelo Sol que transformará em cinzas tudo aquilo a que os animais humanos gostam de chamar de «imprescindível».

Não resta nada: nem arquivo nem arquivista.

Ficas longe das narrativas e pensas estou a perder a prática escrever requer disciplina não é algo que se negligencia sem consequências devastadoras. Até que voltas às narrativas e apesar dos teus passos em falso do cambalear intoxicado da caneta percebes que na verdade nunca foi uma questão de prática é outra coisa.

A imagem do escritor aparentemente perdido no milharal que agora cata os milhos que mais lhe apetecem.

As narrativas que tu escreveste por mais fictícias por mais que tivesses utilizado uma data de personagens inventados por mais absurdas e inverosímeis sempre trataram de ti mesmo e poderíamos acrescentar a isso o facto de que narradores literários (sem juízo de valor [alguns melhores outros nem tanto]) o facto de que narradores literários como estava a dizer são pouco confiáveis e nem mesmo este fragmento com ares de confissão pode ser levado completamente a sério.

Publicado por P. R. Cunha / 24 de outubro de 2023


Torneio de xadrez

Há sempre uma qualquer incerteza ela disse e somos arrastados empurrados dilacerados para tudo quanto é sítio sem piedade sim porque nunca houve piedade quem fala faço tal e tal coisa por piedade de certeza está mentindo porque no fundo não sente piedade antes sente cobiça avareza soberba gula quer algo que o satisfaça que o beneficie ela disse e amanhã participarei do torneio de xadrez eu me matriculo nessas coisas e na hora tudo faz sentido eu à mesa de matrículas para o torneio de xadrez o rapaz que faz as matrículas me olha com cara de paisagem rural e pergunta com voz amena típica de quem faz matrículas para torneios de xadrez pergunta e então senhorita vais participar do nosso torneio de xadrez e na hora eu respondo claro que vou porque é a resposta mais sensata do mundo a resposta mais apropriada na verdade a única resposta possível é dizer claro que vou participar do vosso torneio de xadrez ela disse mas logo que me afasto da mesa de matrículas meu coração se aperta e penso comigo mesma o que é que estou fazendo da minha vida…

Publicado por P. R. Cunha / 29 de setembro de 2023


Refeição

Anoitecer
sozinho —
janto com a chuva

Publicado por P. R. Cunha / 28 de setembro de 2023


Linhagens

Já na abertura de Anna Karénina o sr. Tolstói compartilha connosco este aforismo que transformar-se-ia numa espécie de «ode aos desajustados»: todas as famílias felizes são parecidas mas cada família infeliz é-o à sua maneira. 146 anos e duas guerras mundiais depois e pelos vistos a máxima continua deveras oportuna principalmente quando ficamos a saber das ameaças que muitos escritores ainda recebem dos próprios parentes após cada livro publicado: é melhor parares de escrever essas coisas sobre a nossa família do contrário podes te meter em sérios apuros etc. etc.

Publicado por P. R. Cunha / 26 de setembro de 2023


Machado

Ao café da Rua 7 esta cena inusitada: uma jovem lia Dom Casmurro e mexia o próprio cappuccino com o marcador de página. Os outros frequentadores do café não escondiam a antipatia enquanto fitavam o «acto-de-mexer-cappuccino-com-objeto-tão-estranho» já eu não parava de pensar: uma jovem moça está a ler Dom Casmurro.

Publicado por P. R. Cunha / 24 de setembro de 2023


Asas

A ressaca pós-febre quando o indivíduo se sente como se tivesse sido atropelado por um trator de médio porte e a própria razão ainda cambaleia algures e estás sentado na varanda tal qual um réptil preguiçoso que se estende ao sol e é neste momento incerto sem dimensão estabelecida com a claridade a fustigar os teus olhos depois de uma semana inteira de trevas e dores é neste momento que as revoluções internas acontecem e teus pensamentos ganham novas asas e com elas tu aos poucos abandonas o abismo como um outro alguém.

Publicado por P. R. Cunha / 22 de setembro de 2023


Ondas turbulentas

Doença ardilosa e constante pode servir de filtro boa ocasião para reajustar/recalcular rotas livrar-se de supérfluos reabastecer o temperamento focar nas coisas que realmente importam batalha contra o intruso biológico e também contra o vírus da procrastinação porque mar calmo como se diz nunca fez bom marinheiro.

Publicado por P. R. Cunha / 20 de setembro de 2023


Nitroglicerina

Ler Nietzsche quando se está igualmente doente febre alta perturbado etc. adiciona sem dúvida um cobertor empático à leitura e sentimos de forma ainda mais acentuada o gosto macabro da dinamite.

* * *

Na rua onde morávamos sabíamos que algum vizinho havia morrido de acordo com o estado de decomposição da própria casa e a isso chamávamos de «arquitetura como atestado de óbito».

Publicado por P. R. Cunha / 19 de setembro de 2023


Impasses

E como explicar aos familiares da tua futura esposa que tu és tanto aquele sujeito engraçado e expansivo das confraternizações quanto aquela figura sombriamente introvertida e problematizadora dos livros que tu escreves?

Publicado por P. R. Cunha / 18 de setembro de 2023


Alistamento

Na espreguiçadeira
— bola de lã
toma sol


A analogia belicosa apesar de tosca mostrar-se-ia elucidativa: quando está a escrever o próprio livro o escritor seria uma espécie de general taciturno e quem vive próximo dele acaba sendo recrutado por osmose para um exército monomaníaco que luta contra inimigos invisíveis e nas guerras como se sabe o general por vezes está disposto a se sacrificar cegamente por um determinado objetivo neste caso o livro que precisa de ser escrito agora no entanto resta saber se os outros soldados basicamente esposa-filhos-pais-irmãos-amigos estão igualmente dispostos ao mesmo sacrifício ou se pretendem fazer motim e desertar diante de batalhas absurdas nas quais invariavelmente o supracitado general perde os botões. 

Publicado por P. R. Cunha / 17 de setembro de 2023


O quarto está vazio mas antes talvez fosse necessário perguntar vazio de quê ou de quem

Bebo o café
ao longe
cães latem

Publicado por P. R. Cunha / 16 de setembro de 2023


Reflexo do som

Tu já tens as imagens na tua cabeça um enredo pré-estabelecido mas a literatura per se só acontecerá quando estabeleceres o tom correto a forma narrativa mais apropriada quando em suma encontrares a própria voz.

Publicado por P. R. Cunha / 15 de setembro de 2023


Máquina

Ah vejo que o senhor cuidou muito bem da máquina sim percebo claramente que cuidou direitinho passo os dedos na superfície e nenhum arranhão perfeitas condições um apreço pela máquina isso logo se vê um carinho intrínseco pela máquina poucas vezes me deparei com algo parecido e falo isto com toda a honestidade preciso dizer ao senhor que o estado desta máquina é qualquer coisa de admirável ainda mais se levarmos em consideração a idade que ela tem sem dúvida estou diante de um feito digno de notas e dou-lhe os meus sinceros parabéns mas sabe não consigo deixar de perguntar se o senhor não se importa é claro mas é que não consigo mesmo deixar de perguntar por que motivo afinal o senhor deseja se livrar da máquina isso eu realmente ainda não compreendi de todo.

Publicado por P. R. Cunha / 14 de setembro de 2023


Arquipélagos

Sou chacoalhado pelo mundo jogam-me em aglomerações sociais nas quais nunca desejei estar para logo anunciarem com a maior desfaçatez que estão de partida e embarcam nos respectivos navios me abandonam à deriva naquele mar de gente e nem sequer me lançam um bote salva-vidas e depois se espantam imenso quando digo que não quero ver ninguém que desapareçam que me deixem em paz na minha própria ilha etc.

Publicado por P. R. Cunha / 13 de setembro de 2023


Terapias de choque

À noite
desintoxicação
cerebral


Todo o sujeito criativo que sente grande apreço pelo silêncio deveria tentar criar num ambiente absolutamente hostil à quietude no meio de uma fábrica de tijolos por exemplo ou na algazarra de um parque de diversões durante o verão.

Apesar dos tumultos das turbulências do caos e das tempestades esta obsessão intrínseca pela escrita e depois de tantos anos de prática o hábito de escrever transforma-se em compulsividade já não se pode resistir é um pouco como o viciado em doces que entra numa confeitaria portuguesa e ninguém está olhando.

Publicado por P. R. Cunha / 12 de setembro de 2023


Béla Tarr é um segredo

Há os filmes coletivos aos quais podem ser assistidos com a família com amigos com a noiva filmes que se tornam eventos de domingo filmes tipo sala de cinema lotada filmes às confraternizações da firma festas de formatura.

Outros tantos filmes neutros a meio do caminho filmes ruins filmes que mereciam ser esquecidos.

E há também os filmes introspectivos filmes para serem apreciados longe de toda a gente filmes que se assemelham à leitura discreta e solitária de um livro medieval e a mim me parece que a obra do cineasta húngaro Béla Tarr pertence a esta categoria.

Lembremos que Sátántangó o tango de Satã opus magnum de Béla Tarr tem mais de sete horas de duração.

Já não é segredo para ninguém que estamos a viver no mundo das velocidades atrozes do tempo-real-notícias-recicladas-e-descartáveis os netos não se lembram dos rostos dos avós e o desarticulado automóvel a que por vezes não sem um resquício de remorso chamamos de sociedade dirige-se ao abismo como nos romances de Arto Paasilinna [o mais importante na vida é a morte e nem sequer esta tem muita importância] mundo portanto da indiferença da melancolia mascarada e da insondável apatia.

Béla Tarr navega num cometa de gelo e envia sinais aos terráqueos sem a menor pretensão de ser compreendido ele ignora as partículas aceleradas ficamos imenso tempo a observar o vazio a decrepitude uma chávena que transborda com água da chuva sítios desolados com poucos humanos a não ser em ocasiões específicas e todos estão enclausurados num bar etílico em bailes com danças macabras numa delegacia de polícia dentro de apartamentos fantasmagóricos.

Eis um artista que corta-nos a carne não com a navalha mas com a película do próprio filme este húngaro ferido cujas dores abrem os olhos aos desastres que a despeito das inúmeras tentativas de ignorá-los sempre vêm.

Você usa óculos e não limpa as lentes há meses e numa altura tudo lhe parece lúgubre e despropositado então Béla Tarr levanta a câmera para o céu e observamos as nuvens cinzas que cobrem o panorama e John Constable outro admirador da nebulosidade teria decifrado a mensagem.

A verdade é que talvez não seja mais tão apropriado falar de simbolismo e metáfora na cinematografia de Béla Tarr visto que muitas cenas que poderiam ser analisadas como visão-particular-do-artista se assemelham demasiadamente com a realidade lá fora basta desacelerar um bocadinho e abrir as janelas para percebê-lo.

Publicado por P. R. Cunha / 11 de setembro de 2023


Tu és o maquinista

Bondinhos enfileirados que sobem-e-descem o declive da colina sempre na mesma morosidade são cerca de cinquenta bondinhos todos vazios e hoje é domingo.

Publicado por P. R. Cunha / 10 de setembro de 2023


Campestre

Grupo disperso de touros e vacas estão a pastar numa quinta de animais e a meteorologia é brutal um frio imenso e grossa manta de névoa cobre toda a região ao perder das vistas é manhã cedo e touro se aproxima de vaca para copular mas vaca logo se afasta com modos ligeiros e desengonçados como se dissesse ao touro agora não é altura para isso o escritor está nos observando.

Publicado por P. R. Cunha / 9 de setembro de 2023


Arpoador

No quarto de um hotel carioca deparei-me com imensa barata voadora e enquanto eu corria atrás dela e tenho de confessar que por vezes também corria e me escondia dela enquanto portanto eu travava estranha batalha com o inseto voador tive como se diz incontáveis ideias para uma nova narrativa se calhar um romance ao qual disse a mim mesmo eu começaria a me dedicar tão logo resolvesse o imbróglio com a barata.

Publicado por P. R. Cunha / 5 de setembro de 2023


Vertigens

Em criança eu sempre tive muito medo de altura de forma que uma pessoa que pulasse de paraquedas era vista por mim como uma espécie de herói mitológico um Ícaro invencível até que percebi que toda a gente estava a pular de paraquedas que isso se tornara tão banal quanto ir à praia ou andar numa roda-gigante e aquilo foi uma decepção como um alpinista que escala o Evereste e contam-lhe ao cimo da montanha que ele é apenas mais um numa lista de milhares que já fizeram o mesmo.

Publicado por P. R. Cunha / 4 de setembro de 2023


Processo de decomposição

No momento em que o escritor escreve algo não importa o quê esse algo entra num processo de decomposição e a partir daí cogita-se quem se desvanecerá primeiro texto ou escritor e aquele que porventura tentasse reverter esse processo deparar-se-ia com a futilidade absurda.

Publicado por P. R. Cunha / 3 de setembro de 2023


Medo mórbido dos pequenos espaços

Isto não é fácil de explicar ela disse mas é como se eu precisasse sempre me sentir encurralada como um animal indefeso cercado por feras bestiais numa floresta e daí eu me viro para escrever ou melhor para escapar planos de fuga mesmo sabendo que a empreitada é inútil que a floresta é escura e sem saída de forma que pelo menos para mim ela me disse enquanto sorvia o café pelo menos para mim a escrita é um ato absolutamente claustrofóbico.

Publicado por P. R. Cunha / 2 de setembro de 2023


Chave do automóvel

Ernesto chega à garagem do shopping mall e apalpa os bolsos procurando a chave do automóvel e não encontra a chave e tampouco se lembra onde estacionou o automóvel na verdade ele agora se pergunta se realmente veio de automóvel se não estaria como se diz ficando louco etc.

Publicado por P. R. Cunha / 1º de setembro de 2023


Sem titubear

Em um curso de escrita criativa na cidade de Niterói Rio de Janeiro um escritor prometeu aos alunos que compartilharia a fórmula definitiva para o sucesso literário garantindo que todos absolutamente todos que participassem daquele curso estariam aptos a escrever romance extremamente bem-sucedido um bestseller e enquanto o escritor anotava na lousa alguns pontos sobre a palestra uma jovem sentada na quarta fileira levantou a mão e sem titubear perguntou ao escritor qual teria sido afinal o livro de sucesso que ele havia publicado porque ela mesma nunca tinha ouvido falar de nenhum e o escritor visivelmente tresloucado decidiu sair do auditório sem dar satisfações e não retornou mais atitude que como era de se esperar causou grandes transtornos para os organizadores do evento.

Publicado por P. R. Cunha / 31 de agosto de 2023


Aterrar-se

Na cabeça:
ideias celestiais
no papel:
ruínas mundanas.

Publicado por P. R. Cunha / 30 de agosto de 2023


Caminhadas espaciais

Não escrever ou melhor não terminar o texto permanecer naquele estado de suspensão como um astronauta que por imprudência se desprendesse da estação espacial e flutuasse num eterno presente. 

Publicado por P. R. Cunha / 29 de agosto de 2023


Êxtase diante do mar esverdeado numa fria manhã de nevoeiros

O oceano —
esta fábrica de ondas
que emitem gritos
ora de desespero
ora de admiração.

Publicado por P. R. Cunha / 28 de agosto de 2023


Sair da rotina bem-estabelecida para as imprevisibilidades e se faz necessário recalcular rotas períodos de readaptação colocar como se diz o comboio nos trilhos novamente

Minha abstinência literária ou melhor minha ausência de escrita cada vez mais se assemelha a um peixe que fica encalhado na praia e se alguém perguntasse ao peixe quanto tempo tu conseguirias ficar aí na areia sem água o peixe responderia não muito.

Publicado por P. R. Cunha / 24 de agosto de 2023


Regresso

Da janela do meu quarto de infância dava para ver o lago pois a casa do outro lado da rua era bem miudinha e não obstruía o horizonte. No dia do meu aniversário de oito anos um amigo do meu pai disse-me para aproveitar aquela vista toda porque num futuro próximo alguém compraria o terreno em frente e a casinha tornar-se-ia um casarão e não daria mais para ver o lago nem as árvores nem os pássaros. Essa possibilidade me parecia absolutamente inadmissível a casa do outro lado da rua seria miudinha para sempre o lago estaria ali para sempre as árvores e os pássaros também estariam ali para sempre o meu quarto de infância seria o meu esconderijo para sempre. Poucos meses depois a família de um famoso comerciante mudou-se para a casinha e tal como o amigo do meu pai havia previsto ela logo se transformou em casarão etc.

Publicado por P. R. Cunha / 23 de agosto de 2023


Eixos

O ciclo é mais ou menos assim: se não escrevo desejo escrever estou portanto infeliz então vou e escrevo satisfaço a minha vontade de escrever e não desejo nem almejo e tampouco estou feliz porque o prazer é fugidio a satisfação só se mostra durante o breve processo da escrita aqueles minutinhos introspectivos em que o planeta para de girar e depois volta a girar e eis um outro abismo a ser superado mais uma espera mais um purgatório até a vontade de escrever ressurgir talvez na manhã seguinte talvez não.

Publicado por P. R. Cunha / 22 de agosto de 2023


Translúcido

No canto esquerdo da minha escrivaninha uma coruja de pedra me observa e os olhos vítreos da coruja contam segredos silenciosos.

Publicado por P. R. Cunha / 20 de agosto de 2023


O que há de errado com a felicidade finlandesa

Eu conheço a Finlândia O PAÍS MAIS FELIZ DO MUNDO em Helsínquia no entanto a taxa de suicídios e altíssima.

Publicado por P. R. Cunha / 19 de agosto de 2023


Paródia com intuitos contemplativos

Se o escritor escolhe a solidão é para ficar só e não para convidar amigos e familiares e passar o dia a fazer fofocas. O escritor não é professor nem mestre tampouco um guia a ser seguido o escritor não precisa ensinar nem servir de exemplo nem passar reprimendas. O escritor escreve. Lembra-te não és modelo para nada nem para ninguém. É de suma importância guardar silêncio só falar quando for absolutamente necessário e caso o escritor tenha que falar como numa qualquer emergência que o faça brevemente. Se curiosos importunam o escritor para que ele leia trechos de livros ou para que dê toda a espécie de conselhos literários em que casa editora publicar qual a melhor hora da noite para escrever que tipo de café tomar então o escritor deve se afastar ainda mais e não lhes dar nada e esperar e se tiver sorte eles acabarão indo embora.

Publicado por P. R. Cunha / 18 de agosto de 2023


Abatidos pelo mar

sonho
que tu buscas
— miragem de areia

Publicado por P. R. Cunha / 16 de agosto de 2023


Formas breves ou tentativas de diminuir ruídos internos

Acordar cedo
e não falar
não pensar
não pronunciar palavra
não se dirigir a ninguém
não dever nada a ninguém
as primeiras horas do dia
com chávena de café em mãos
enquanto observa o sol
levantar-se do horizonte
— eis um prazer
deveras subestimado.

Publicado por P. R. Cunha / 14 de agosto de 2023


Crânio macabro

Quando estudei em São Petersburgo um colega de classe contou-me que durante a Segunda Guerra Mundial um filósofo russo que se alistara por questões epistemológicas foi decapitado numa sangrenta batalha e os soldados admiravam tanto esse filósofo que fizeram uma espécie de amuleto com a cabeça decepada e sempre que se sentiam inseguros fracos ou sem inspiração abraçavam forte o amuleto ou seja abraçavam a cabeça decepada do filósofo e logo recobravam tanto força quanto astúcia e contou-me ainda o colega de classe que caso algum soldado sofresse de alucinações noturnas sugeriam que dormisse com o crânio macabro ao lado e ao que parece as alucinações desapareciam.

Publicado por P. R. Cunha / 9 de agosto de 2023


Ilusões mágicas

Ao que o escritor o mais estranho dos homens termina algum tipo de projeto literário e esconde-se novamente como uma criatura das trevas e fica remoendo por dias se calhar por semanas e meses em plena quietude num estado de repouso período de descompressão tu não precisas de escrever não precisas de absorver nada silêncio cerebral dir-se-ia quando o escritor entrega-se às ilusões mágicas ao surrealismo forjado nos sonhos da imaginação a despeito das inúmeras cordas da realidade que insistem em puxá-lo de volta.

Publicado por P. R. Cunha / 8 de agosto de 2023


Robôs não se sentem sozinhos não pedem férias não acordam tarde simplesmente trabalham e seguem adiante com as próprias tarefas até que concluam a missão ou até que alguma avaria os impeça de funcionar

E o que vai acontecer quando a tua vontade de literatura atrofiar-se quando a escrita não mais te oferecer propósitos quando os livros encolherem quando o caderno de anotações encolher quando a imaginação encolher quando a baixa imunidade não conseguir te reerguer do pântano de procrastinações quando as portas do castelo permanecerem fechadas e as ondas levam-te para longe da ilha e tateias no oceano escuro em busca de qualquer âncora mas não há âncora alguma nunca houve.

Publicado por P. R. Cunha / 7 de agosto de 2023


Por vezes achamos que perdemos a capacidade de escrever e nos desesperamos e levamos as mãos ao rosto mas a capacidade de escrever continuava ali não se perdera apenas adormecia etc.

Pois não é bem isto o que acontece? Eles me telefonam mandam correios electrónicos aparecem de supetão e dizem não precisas de ter medo são boas gentes tu estás demasiado recluso tens de sair de respirar novos ares falar sobre as tuas obras as pessoas têm curiosidade não podes ser um caveman a tempo inteiro e só um escritor vil e contraditório aceitaria uma proposta dessa escritor sem escrúpulos a verdade é que qualquer ser humano dotado de um mínimo de carácter e bom senso recusaria de pronto uma proposta tão parva proposta desaforada e indecente eu pensei e refleti e ponderei horas a fio sobre tudo isso enquanto aceitava a proposta para falar em público enquanto simplesmente respondia à casa editora e dizia sim e perguntava afinal onde seria a leitura e esse modo de agir não é fácil de explicar.

Publicado por P. R. Cunha / 6 de agosto de 2023


Supernova

Definitivamente não controlamos aquilo que as pessoas pensam a nosso respeito e aqueles que tentaram fazê-lo frustaram-se ou meteram-se em guerras mundiais e essa analogia disparatada e belicosa me remete aos trejeitos do poeta Augusto de Campos verdadeiro adepto da GENTIL ARTE DE FAZER INIMIGOS que é basicamente quando alguém não vai como se diz com a nossa cara por mais que tentássemos contemporizar por mais que acirrássemos os ânimos calha de alguém simplesmente se irritar imenso connosco e incomoda-se com o nosso jeito de escrever com a nossa indumentária até a nossa mera presença causa-lhe toda a espécie de ira e fúria e esse alguém agora parece mais uma estrela opaca sem combustível cujo núcleo maciço e denso está fadado a entrar em colapso e logo despedaçar-se-á sobre o próprio peso. 

Publicado por P. R. Cunha / 2 de agosto de 2023


Minerais preciosos

Escritor-garimpeiro busca ideias disparatadas para fundi-las num corpo inicialmente amorfo um garimpo que precisa de levar em consideração as limitações do rio porque quando escreve muito o escritor fica com a impressão de ter dito mais do que devia sente-se estufado/saturado a ponto de explodir e invade-lhe uma espécie de culpa um terrível esgotamento e compreende que é necessário afastar-se do rio aguardar até que ele ofereça novamente as condições adequadas para o garimpo quiçá na manhã seguinte quando o escritor insiste e torna a escrever mesmo que esteja a se repetir mesmo que esteja a garimpar pedras parecidas e pensa ainda naquela analogia sobre o tempo sobre alcançar o rio o escritor portanto não consegue tocá-lo duas vezes da mesma maneira porque a água que passa nunca mais passará ali o escritor pisca e já é outra água outro rio.

Publicado por P. R. Cunha / 30 de julho de 2023


Constelações

Se palavras são sistemas solares com planetas e luas e asteroides as frases seriam galáxias enquanto os parágrafos se organizam em grupos galácticos e o texto um universo em si mesmo e é a gravidade que mantém unidos esses aglomerados força de atração da massa dos elementos linguísticos conjunto simbólico formado por vírgulas travessão aspas interrogações letras exclamações e pontos finais.

Publicado por P. R. Cunha / 29 de julho de 2023


Discordâncias

Da mesma forma que muitas vezes tu entras numa livraria e abres determinado livro e simplesmente odeias esse livro achas o livro enfadonho livro tosco e até um bocadinho irritante da mesma forma alguém abrirá o teu livro e simplesmente odiará o teu livro achará o teu livro enfadonho livro tosco e até um bocadinho irritante isto é coisa corriqueira pois se colocarmos quatro ou cinco seres humanos sentados à mesa logo perceberemos que têm preferências tão variadas quanto as estrelas no céu e quase nunca conseguem entrar num consenso e é tudo ira vileza desentendimento e toda a sorte de parvoíces até que alguém se levanta da cadeira e diz BASTA NÃO VOS AGUENTO e vai-se embora deveras carrancudo etc. sempre foi assim.

Publicado por P. R. Cunha / 28 de julho de 2023


Corredor de fundo

O cometa
cai sozinho
— silêncio.


As batidas das teclas da máquina de escrever os martelos da zona industrial atrás dos blocos de apartamentos onde vives enquanto ao teu lado sobre a mesa de madeira o café esfria e tu és maratonista ofegante o próprio escritor sentado à máquina de escrever a refletir se TEREI FÔLEGO PARA CHEGAR-ME AO PONTO FINAL e a cada linha de chegada outra linha de chegada e mais outra linha de chegada é como os conjuntos de Mandelbrot que expandem-se em sequências sobrepostas mapas interativos representações gráficas flocos de neve réplicas e mais réplicas e mais réplicas ad infinitum e só a limitada capacidade do escritor faz com que a partir de certa altura isso deixe de acontecer.

Publicado por P. R. Cunha / 27 de julho de 2023


Grande planície húngara

Abismo infinito
no céu —
luas se chocam

A Terra pelos vistos desenvolveu as próprias maneiras de se reciclar disse-me o Laszlo enquanto preparava sopa goulash na cozinha do pequeno apartamento em Debrecen a Terra se livra ele disse a Terra cospe e basta ver como ficou Chernobyl após o desastre radioactivo a paisagem em Pripyat a floresta que engole tudo e se brincarmos demais com os ingredientes deste planeta disse ainda o Laszlo ao mexer a sopa goulash cujo aroma delicioso preenchia todo o apartamento se brincarmos demais com os ingredientes deste planeta ele repetiu e colocou um pouco da sopa na boca para averiguar se bem temperada daí brincamos com os ingredientes deste planeta e a Terra causa-nos cancros e não só. Após cinco ou sete doses de pálinka e com o rosto enrubescido pelo álcool e com aquela aparência taciturna à qual havia me acostumado nos últimos tempos principalmente depois que a esposa do Laszlo cometera suicídio ali mesmo naquela cozinha cometera suicídio com corda e cadeira como disseram friamente os noticiários depois de portanto ser possuído pela pálinka o Laszlo disse-me também que 99.9% de todas as espécies de plantas e animais que já viveram por aqui desde sempre estão extintas a Terra as devorara sem pudor e o Laszlo disse isso enquanto olhava para a janela cor de chumbo que dava para um pátio interno sem árvores.

Publicado por P. R. Cunha / 26 de julho de 2023


Truque das livrarias

E nos dias em que eu era simplesmente invadido não pela tinta da caneta ele disse mas pela tinta da própria melancolia tinta roxa-escura portanto tinta crepuscular tinta venenosa e permanecia prostrado diante dos meus cadernos permanecia imóvel diante do meu Moleskine e as palavras me davam medo meus cadernos me davam medo meu Moleskine acima de tudo me dava imenso medo e pensava comigo mesmo ele disse pronto é isso acabou e o que eu sempre temi enfim me acontecera a escrita me causa náusea ele disse o simples acto de escrever a simples tentativa de esboçar texto na minha cabeça me botava num estado de tensão numa atmosfera aniquiladora ele disse e daí eu tinha de colocar certas medidas em prática eu precisava de recorrer aos remédios da praxe aos antídotos como se costuma falar aos medicamentos e eu saía depressa do meu escritório e me enfurnava numa livraria como um viciado em busca de mais drogas viciado a correr o risco de overdose risco de morte eu entrava ou melhor eu invadia ele disse eu me jogava numa livraria e apanhava um punhado de livros uma quantidade impossível de livros pilhas e mais pilhas de livros e sentia o jato dos entorpecentes inundando a minha circulação sanguínea e me acalmava sim e pensava ele disse e pensava que muita gente vai às aulas de yoga outros praticam a natação muita gente vai ao cassino aos cultos outros fogem para as montanhas enquanto eu me escondia numa livraria buscava asilo numa livraria injetava-me numa livraria sempre foi assim a livraria é o meu hospital psiquiátrico ele disse a livraria é meu templo ecuménico ele disse e só de lembrar que ainda posso contar com ela ou seja que ainda posso desaparecer numa livraria e me distrair e me amenizar ali dentro só de cogitar nessa possibilidade penso ele disse que assim a vida de certa forma se mostra um bocadinho menos insuportável. 

Publicado por P. R. Cunha / 25 de julho de 2023


Condições atmosféricas

Havia dias em que de acordo com o clima escrevia-se quase tudo e a caneta como se diz dançava por conta própria e todas aquelas ideias enxurradas de ideias galáxias de ideias as palavras a preencher o universo de possibilidades da folha de papel e outros dias também de acordo com o clima em que não se escrevia nada nenhuma ideia nem sequer uma palavrinha e me parece brutal pensar nessas influências climáticas basicamente se há chuva se há sol escaldante se há nuvens tempestades nevões se há literatura ou não há literatura.

Publicado por P. R. Cunha / 23 de julho de 2023


Ensaio sobre a coruja

Na rua onde me instalei depois de várias tentativas de como se diz dedicar-me aos meus estudos das corujas estudos esses que estavam de muitas maneiras a consumir-me a levar a minha própria sanidade até aos limites recomendados estudos portanto que destruíam-me os nervos estudos aos quais eu tencionava me dedicar integralmente nessa rua simples e pacata e por isso mesmo traiçoeira as ruas simples e pacatas sempre foram as mais traiçoeiras e perigosas quem afirma o contrário ou é louco ou um verdadeiro desconhecedor de tudo o que envolve as ruas simples e pacatas mas é preciso ter foco do contrário me disperso na mesma rua em que me instalei como estava eu a dizer havia coincidentemente uma coruja tão bonita e enigmática quanto as outras aves de rapina que eu estudara de maneira minuciosa durante todos aqueles anos semanas que se tornaram meses que se tornaram décadas sim décadas a dizer para este ou àquele que estou a estudar corujas eu dizia-lhes sou um estudioso das corujas e a forma com que recebiam essa afirmação ou seja que sou um estudioso das corujas ainda hoje me perturba mas não é sobre isto que estou a falar o que importa é que depois de inúmeras tentativas frustradas e abortadas e fracassadas de dedicar-me a tempo inteiro só-e-somente-só aos meus estudos das corujas já num grau verdadeiramente insuportável de angústia e procrastinação recolhi-me finalmente numa casa simples na supracitada rua onde repito havia uma bela ave de rapina nocturna cujo nome conforme me disseram depois era Eustácia. 

Publicado por P. R. Cunha / 22 de julho de 2023


História oculta dos escritores

Iglu —
um ideal

Este vício de estar sozinho esta obsessão pela solitude a vila dos escritores é o ártico à volta do urso polar ou dos pinguins que marcham para o vazio alviceleste da Antárctida. Há o perigo nada desprezível de resfriar-se e como nos cumes de Nietzsche o frio é monstruoso sempre próximo traiçoeiro. Dir-se-ia portanto com uma ou outra alteração que literatura ou melhor a prática de literatura é também vida voluntária no gelo morada de neve transitória.

Publicado por P. R. Cunha / 21 de julho de 2023


Espetáculo macabro

Novamente a analogia a metáfora do açougueiro linguístico que vai colectar as tulipas e volta a casa com uma data de pétalas em decomposição. O escritor-ceifador que não escreve com lápis nem caneta mas com machados afiados.

Publicado por P. R. Cunha / 20 de julho de 2023


Se não posso desfrutar de determinadas experiências ao menos escrevo a respeito e assim amenizo angústias

Insisto mais uma vez nesta imagem no silêncio absoluto na reclusão no estar-se-em-repouso há quantos séculos as pedras de Stonehenge deitam-se naquele sítio e certas necessidades de se esconder de tempos em tempos de não ver ninguém não falar nem participar não absorver nem ser absorvido e também oculto o próprio escritório tão confortavelmente simples apenas os objetos essenciais os livros imprescindíveis os elementos primários e lá fora o mundo parece implodir mas estás seguro no teu escritório não dás a mínima para o apocalipse.

Publicado por P. R. Cunha / 19 de julho de 2023


Maratona

Barulho da fechadura
será ela ou algum
outro fantasma?


Influências externas contaminam a minha própria criatividade ele disse. É por isso que não pergunto aos outros o que estão a ler o que estão a ouvir o que estão a pintar etc. Nada disso me interessa. Se escuto alguém falando PUXA VIDA TAMBÉM LESTE FULANO QUE FANTÁSTICO VAMOS CÁ ENTÃO CONVERSAR SOBRE A LITERATURA DE FULANO eu tapo os ouvidos com os indicadores e me ponho a correr muito depressa e é certinho que evitarei esse sujeito inconveniente para o resto da vida.

Publicado por P. R. Cunha / 18 de julho de 2023


Colapsos e insuficiências cardíacas

Próprio gabinete. Noite. Brown noise nos auscultadores a lembrar o som de ondas que quebram num oceano cósmico ou cachoeira que transborda depois de longa tempestade e por alguns instantes fugidios sentir-me como se num veleiro medieval rumo a nenhures.

Daqui a poucos meses irei te ver pela última vez escreve o marujo no diário de bordo enquanto a embarcação é abastecida com toda a sorte de cargas marítimas e no convés reina a imobilidade: macabro presságio.

Pessoa que esteja constantemente sob holofotes sociais foco eléctrico feixe de raios luminosos será de certeza alvo de escrutínio perverso escrutínio brutal e não poderá como se diz pisar na bola do contrário devoram-na. Isca de tubarão.

Marujo não estava louco mas acusaram-no de sê-lo porque não quis participar de PLANO MAIOR absteve-se calou-se escondeu-se e assim o consideraram alienado lançavam descrédito sobre o que quer que ele dissesse/pensasse/insinuasse pois temiam que outros seguissem rotas parecidas.

Vento range a porta e sou retirado do fluxo de consciência. O dia acabou.

Publicado por P. R. Cunha / 17 de julho de 2023


Passeio ao centro da cidade dentro do táxi

Será que pessoas de facto moram e trabalham e sobrevivem dentro desses blocos de concreto ou não seria tudo renderização 3D áudio e vídeo do meu cérebro o Demónio de Laplace ou Descartes cogito ergo sum os discursos por vezes nos pregam ciladas a luz crepuscular os transeuntes como que ausentes os autocarros fumam benzina: atmosfera de sonho como se Kafka estivesse cá a passar férias. 

Publicado por P. R. Cunha / 15 de julho de 2023


Não subestimemos a capacidade humana de adaptação

Efeito cascata efeito dominó catalisadores mudanças ínfimas mudanças minúsculas e irrisórias nas condições iniciais de qualquer sistema podem levar a resultados muito diferentes dos previstos. Andarilho que se perdesse numa floresta fechada e se perguntasse como cheguei até aqui. Passo em falso destino desconhecido. Ninguém escuta. Pode à guisa de exemplo o espirro de uma anciã numa quinta de animais no estado do Missouri causar ciclone digamos na Nova Zelândia? Impactos-não-lineares o bater das asas da borboleta de Lorenz a meteorologia o tempo o vagar das nuvens: meros condenados às imprevisibilidades a longo prazo.

Publicado por P. R. Cunha / 14 de julho de 2023


Às vezes ele escrevia qualquer coisa a respeito do cosmo mas isso o deixava particularmente frustrado e deprimido pois assim que se entregava aos pormenores do espaço sideral lembrava-se também do que poderia ter acontecido caso tivesse feito outras escolhas ou se a vida tivesse tomado outros rumos

Muita gente instruída ainda menospreza o nosso Sol e falam que é apenas uma estrelinha miúda qualquer como tantas que permeiam o universo. Essa atitude desdenhosa é como dizer a um filho que a mãe dele não é assim tão importante afinal há bilhões de mães parecidas por aí etc. 

Publicado por P. R. Cunha / 13 de julho de 2023


Planos-não-lineares

Exame crucial que escritores deveriam fazer-se constantemente: eu iria gostar de ler este livro que estou escrevendo? E se uma pergunta análoga fosse feita aos arquitectos a saber VOCÊS MORARIAM NO EDIFÍCIO QUE ESTÃO PROJETANDO talvez não nos depararíamos com prédios tão feios e arruinados.

Publicado por P. R. Cunha / 12 de julho de 2023


Causas motivas

Proporção de homens e mulheres que leem por prazer reduz vertiginosamente. Mais da metade da população mundial não chega a ler sequer um livro por ano. Pessoa moderna passa em média menos de dez minutos lendo livros e mais de seis horas ao telemóvel. Vendas de livros despencam. Editoras desistem de publicar obras de ficção. Numa palavra: se estás a escrever para o mercado para angariar multidões de leitores para acumular riquezas para te tornares best-seller esta talvez não seja a melhor altura para isso.

Publicado por P. R. Cunha / 11 de julho de 2023


Ceifador

Mutilar palavras degolar vírgulas a guilhotina gramatical: nesse sentido o escritor seria mais um açougueiro do que um artesão delicado?

Publicado por P. R. Cunha / 10 de julho de 2023


Quando meu pai morreu foi como se grande parte do mundo tivesse ficado em silêncio

Meu pai sentado numa cadeira praiana. Barra de São Miguel. Alagoas. A maré subindo e pai estático olha para o nada para o fundo do mar para as ondas aos joelhos. Certos monges tibetanos acreditam que a morte faz visita prévia como que para avisar: não me demoro. Acho que ali elusivo no banco de areia pai percebeu qualquer coisa. Eu me aproximo silenciosamente e pergunto pai está tudo bem? E nós dois rimos. 

Publicado por P. R. Cunha / 9 de julho de 2023


Provedoras

Ainda escuto muitas gentes instruídas a menosprezar o nosso Sol e falam que se trata apenas de uma estrelinha qualquer estrelinha ordinária como tantas outras que permeiam o universo. Essa abordagem desdenhosa é como dizer a um filho que a mãe dele não é assim tão importante porque afinal há bilhões de mães por aí etc.

Publicado por P. R. Cunha / 8 de julho de 2023


Tentativa de dactilografar em pé tipo Hemingway

Meu maior medo é perder a capacidade de escrever de misturar palavras é um medo que se intensifica à medida que o dia anoitece.

Publicado por P. R. Cunha / 7 de julho de 2023


Distâncias abissais

Afasto-me da cidade da balbúrdia das disputas dos atrasos das incontáveis exigências da cidade da poluição luminosa da cidade e olho para o céu nocturno com todos aqueles pontinhos brilhantes. Quanto mais longe mais fraco o brilho da estrela. E não acontece o mesmo connosco? Gostava de escrever livro com o título TEORIA DA LUZ. Deixo as palavras conduzirem a maquinaria narrativa mesmo que se mostrem erráticas / ambíguas. Professora de física da época do colégio me ensinara a localizar nossos vizinhos estelares. Eis Proxima Centauri a «apenas» quatro anos-luz de distância ou seja a luz dessa estrela demorou quatro anos para chegar aos meus olhos neste momento em que estacionei o automóvel à berma da estrada e coloquei-me a apreciá-la. Isso também significa que se algum observador de algum planeta que orbita Proxima Centauri estiver agora a apontar o próprio telescópio para a Terra ele receberia um filme distorcido de como as coisas eram por aqui há quatro anos. Não há simultaneidade diante das distâncias abissais do cosmo. Somos todos fantasmas de alguma forma.

Publicado por P. R. Cunha / 6 de julho de 2023


Formiguinha

Do ponto de vista «racional» isto é SER HUMANO PROCURA DESCOBRIR PADRÕES E PROPÓSITOS E MOTIVOS o cosmo não faz muito sentido. É um pouco como colocar formiga bem miúda dentro de um prédio colossal com milhares e milhares de andares vazios e dizer pois vai formiguinha se vira. E se a formiguinha por acaso quiser chegar ao cimo do prédio talvez para apreciar as vistas dirão que isso é impossível pois o prédio expande-se muito mais rapidamente do que os passos da formiguinha ou do que qualquer meio de transporte que ela pudesse projetar. De aí a angústia da formiguinha que naturalmente passa a se sentir um bocado só.

Publicado por P. R. Cunha / 5 de julho de 2023


Átomo passageiro

A Lua é um objeto estranho ou seria melhor descrevê-la com termos menos informais satélite da Terra corpo celeste em rotação sincronizada com o nosso planeta sempre a mesma face visível penso nisso enquanto volto para o apartamento e procuro não pisar nos dejetos caninos que preenchem a rua ladeirenta como se campo minado. Observar a Lua cheia Lua vampiresca Lua do lobisomem o círculo de prata com o fundo negro do infinito e isso perturba. É como ler os livros do Bernhard os mesmos sintomas a mesma sensação de deslocamento um sentir-se-miúdo-efémero-átomo-passageiro. Poeta honesto que olhasse para a Lua e decidisse não se entregar a ela: nenhum hino nenhum soneto nem haikus nenhuma ode apenas o silêncio sepulcral. 

Publicado por P. R. Cunha / 4 de julho de 2023


Casa nocturna

É cedo. Estou a me preparar para a escrita diária momento tão aguardado. Dois de julho de dois mil e vinte e três. Algumas pessoas meditam algumas pessoas abrem a porta da varanda e levantam os braços e recebem a luz do sol e dizem: estou a me alimentar de sol mas é domingo e eu escrevo. Lá fora passa alguém e os cães se agitam. É solitário escrever. A palavra solidão é carregada de conceitos prévios. Se alguém fala ESTOU SÓ logo sentem pena desse alguém. O que há de errado nisso quero dizer o que há de errado com a solidão com o acto de estar alhures/nenhures… Uma fresta na minha janela deixa o vento entrar um vento matutino que dura pouco mas enquanto dura refresca o escritório. Ao mesmo tempo se alguém fala ONTEM ESTIVE COM CENTENAS DE PESSOAS NUMA CASA NOCTURNA E DANÇÁVAMOS é certinho que acharão isso absolutamente normal o sujeito está a divertir-se. Viver no mundo estar com outras gentes ouvir música ruim o dançarino quase cai do palco porque bebeu demasiado. O livro não é companhia tentam explicar o livro não vos olha nos olhos. Anoto isto no meu caderno: viver no mundo idealizado / biblioteca redações narrativas histórias & estórias personagens de ficção AQUI A PALAVRA «TRANSIÇÃO» RODEADA POR UMA NUVENZINHA mapa mental —> participar no mundo dos outros / sair estar junto abandonar o aconchego da previsibilidade. Tudo muito desafiador. Se um estranho diz: és maluco que vida terrível tu estás a levar se um estranho me diz isso eu cá não dou a mínima. Mas e se fosse uma pessoa que me é caríssima i.e. e se minha própria mamã dissesse: filho acho que passaste dos limites perdeste os botões etc. (?)

Publicado por P. R. Cunha / 2 de julho de 2023


Literatura é um diálogo de loucos zangados

A revista desta universidade* pede-me para escrever um bocadinho a respeito do meu relacionamento com os livros e digo-lhes que já há algum tempo estou-me nas tintas para as vírgulas não me importo em colocá-las eis um sinal ortográfico de pontuação que se tornara inútil aos meus objetivos porque escrevo num fluxo incontrolável por vezes incompreensível fluxo-não-académico portanto ao que me dizem: escreve da forma que preferires e eu digo sucintamente que está bem aqui vai uma notinha avulsa sobre o meu relacionamento com os livros. Se estou a escrever livro próprio isto é se estou no meio de alguma narrativa fruto da minha imaginação eu tendo a odiar os livros e não quero saber dos outros livros lê-los me enche de dores de cabeça e os olhos me ardem como num deserto escaldante e entram areias nos meus olhos e fico com as vistas turvas. Mas se não estou a escrever livro próprio isto é se não estou no meio de alguma narrativa fruto da minha imaginação daí adoro os livros amo os livros venero os livros compro dezenas se calhar centenas de livros rodeio-me de livros ficção história mundial filosofia romances policiais poesia teatro toda a espécie de livros e desse acúmulo dir-se-ia desvairado acúmulo louco doentio e desse acúmulo obsessivo intragável ilegível sempre surge uma qualquer sementinha e coloco essa sementinha numa gaveta do meu cérebro e cultivo essa sementinha com esmero aos poucos sem pressa sem pretensões regar a sementinha diariamente eu digo alimentar a sementinha com adubo até que a sementinha se transforma numa certa ideia que me põe a ruminar a construir a planejar e quando dou por mim mesmo estou novamente sentado à escrivaninha dedicando-me ao meu próprio livro e volto a odiar todos os outros livros e sinto-me como se diante de um pai degenerado que diz VOU ALI COMPRAR CIGARROS e o pai nunca retorna.

*Trata-se da revista literária da Universidade de Aveiro.

Publicado por P. R. Cunha / 1º de julho de 2023


Cometa Halley

Cometa Halley tem aproximadamente quinze quilómetros de comprimento por oito de largura prenúncio de calamidades durante o Império Otomano Reino da Hungria Cerco de Belgrado está na Tapeçaria de Bayeux crónica em Inglaterra fez o monge beneditino Eilmer de Malmesbury suplicar aos céus quando observado no século onze TU VIESTE FONTE DE LÁGRIMAS PARA MUITAS MÃES O MAU EU O ODEIO cometa Halley causa de toda a espécie de angústias perturbações iminentes tem período orbital de setenta e cinco anos e enquanto está algures bem longe da Terra poucos falam sobre ele. A última visita do cometa Halley foi em nove de fevereiro de 1986 e assim como Mark Twain eu também nasci perto desse aglomerado de gelo e poeira cósmica. Twain dizia: eu cheguei com o cometa Halley em 1835 brevemente ele surgirá de novo e será uma imensa decepção se não formos embora juntos. O escritor morreu em abril de 1910 no dia seguinte à aparição do cometa.

Publicado por P. R. Cunha / 30 de junho de 2023


Cosmos

Depois de várias perdas e decepções reais e subjectivas acostumei-me a ficar sozinho o silêncio e a solidão como combustíveis necessários para o meu funcionamento. Vou e desapareço e leio os diários de Kafka e os diários de Gombrowicz e os diários de Lima Barreto ao cemitério dos vivos e tomo as minhas notas e depois volto ao chamado MUNDO REAL e tento sobreviver até à próxima fuga quando o ciclo recomeça etc. A verdade é que se eu tivesse um foguete iria todas as manhãs para o espaço e dedicar-me-ia com afinco às diversas literaturas e retornava à superfície do planeta devidamente revigorado mas eu não tenho o foguete.

Publicado por P. R. Cunha / 29 de junho de 2023


Traiçoeiro

A ambiguidade é fundamental para o meu processo criativo ele disse. O sarcasmo a ironia. Elementos extremamente difíceis de serem traduzidos numa folha de papel. De aí a importância do contexto daquilo a que os ingleses chamam de stage. O marido perverso morre uma morte estúpida e perguntam para a esposa: estás triste? Ao que a esposa responde: nossa… muito. Não sabemos se ela está a brincar ou se fala a sério.

Publicado por P. R. Cunha / 28 de junho de 2023


Problema de três corpos

Parece-me agora estar certa a velha analogia que diz que quando num estado de angústia permanente o ser humano assemelha-se a um sistema solar fora de ordem e seria preciso de passar uma outra estrela para os devidos ajustes nas órbitas dos planetas que perdiam-se em todas as direções.

Publicado por P. R. Cunha / 27 de junho de 2023


Arquétipos

É necessário tocar nesta ferida: o escritor de literatura está cada vez mais desprestigiado. Não que alguma vez tenha sido unanimidade nunca foi há sempre qualquer coisa qualquer asterisco é-famoso-mas-beberrão / escreveu-livros-bonitos-mas-era-intratável / texto-imaginativo-mas-demasiado-melancólico e de forma geral o escritor de literatura ainda é rotulado como preguiçoso insolente contraditório fantasista utópico fanfarrão inútil tratam-no com deboche e desdém tratam-no como uma criança a criar mundinhos próprios mundinhos idealizados e dizem POIS FICA LÁ COM AS TUAS MIRAGENS e dão três tapinhas nas costas do escritor de literatura.

Publicado por P. R. Cunha / 26 de junho de 2023


Fantasma da inércia

Bloco de notas julho de 2023 tardezinha ao CAFÉ METROPOLITANO. Ajustei-me desengonçadamente na cadeira e disse a ela: por favor sê discreta tenho algo para te contar e comentei a sério que não havia mais nada dentro da minha cabeça que as ideias desapareceram que pelos vistos chegara a hora de acompanhar a queda do meu império passageiro a destruição ou pior a aniquilação desse império passageiro e que não sabia mais o que fazer que já tentara de tudo e à medida que eu lamentava a visita do fantasma da inércia fantasma da procrastinação fantasma tinhoso ela começou a se agitar e olhava para os lados e batucava um ritmo africano sobre a mesa e assim chamava a atenção de toda a gente no café para o meu infortúnio literário etc.

Publicado por P. R. Cunha / 25 de junho de 2023


Rosa-dos-ventos

Há um gatilho e esse gatilho pode ser qualquer coisa pode ser detalhe aparentemente insignificante pode ser catástrofe pode ser raiva sentimento de estar a ser enganado uma agressão um golpe uma vulnerabilidade repentina algo de diferentes proporções algo que desassossega irremediavelmente algo que leva o sujeito a reorganizar tudo a eliminar coisas a livrar-se de relacionamentos a buscar mudanças geográficas a pedir demissão a agir de maneiras imprevisíveis ponto de viragem ponto de saturação e aqui o sujeito percebe que nada será como antes que ele mesmo tornara-se uma base naval a proteger as fortalezas da própria ilha.

Publicado por P. R. Cunha / 24 de junho de 2023


Queimaduras

Poucas coisas me trazem mais paz ele disse me trazem mais tranquilidade do que livrar-me de supérfluos. Simplificar a própria vida cultivar apenas o necessário dedicar-se a um número diminuto de seres humanos para não perder a razão pois lidar com muita gente gera toda a sorte de perturbações simplesmente não damos conta a não ser que seja um relacionamento superficial e portanto descartável. Um quarto pequeno já basta os livros adequados já bastam uma cama a escrivaninha a velha chávena de café. Mas antes é preciso de passar por angústias por tormentas cair na terra arrasada para perceber do que se trata. Como alguém que só compreende o que é uma queimadura depois de queimar-se ao fogo.

Publicado por P. R. Cunha / 23 de junho de 2023


As lágrimas acabam depressa

Longe
em silêncio
tão longe
que eu a chamo
e não me escuta.

Publicado por P. R. Cunha / 22 de junho de 2023


Que à noite dormem de olhos bem abertos

Diz a lenda que Geoffrey Chaucer trancava-se num quarto com uma quantidade inimaginável de pergaminhos enquanto tentava criar aquilo que seria segundo os historiadores a BASE DA POESIA INGLESA e quase nunca saía desse quartinho claustrofóbico e Chaucer sentia inveja dos versos de um amigo italiano chegando inclusive a perguntá-lo qual era o segredo como ele conseguia escrever poemas tão simples e espontâneos poemas que diziam imenso com tão pouco ao que o amigo italiano respondera: não podes ficar enclausurado a tempo inteiro precisas também de estar fora para perceber melhor os detalhes do teatro humano e pelos vistos/lidos Chaucer assim o fez.

Publicado por P. R. Cunha / 21 de junho de 2023


Ele acreditava ter tudo sob controle quando em verdade não tinha controle nenhum

Os objetos de ruminação (livros e documentários e filmes do sr. Kubrick e peças teatrais e sinfonias de Mussorgsky e o Piranesi e o Akutagawa) recomendados a mim pela prática literária tinham/têm a função de afastar-me do mundo. Leio Boccaccio e esqueço-me de que estou sempre a ponto de perder os botões e as feridas pelo menos momentaneamente já não machucam «tanto». Ao que também me questiono se não seriam essas vozes a que dou ouvidos uma espécie de eco ou reverberações de outras vozes-fantasmas que nem a morte conseguiu silenciar. Alguém que se deparasse com estas linhas e dissesse TU ESCREVES DE UM JEITO ESTRANHO E CONFUSO NÃO TE ENTENDO ETC. Os hominídeos tinham as paredes das cavernas às memórias da caça do fogo da família do ataque do bisão ao meio da madrugada: desenhos rupestres. A escrita com finalidades análogas às necessidades de contar de gravar de não sermos esquecidos ou que as lembranças se alastrem um bocadinho mais daí o Sol a se transformar em gigante vermelha e consumirá tudo em redor inclusive as ingénuas tentativas humanas de permanência. Estrelas devoradoras de planetas. Entretanto um texto enquanto sobreviver será infinitos textos que metamorfoseiam-se de acordo com a consciência de quem lê. 

Publicado por P. R. Cunha / 20 de junho de 2023


Distraído

Aqueles que passam imenso tempo a correr atrás de objetos ouro automóveis Learjet mansões quadros superfacturados ilhas particulares estátuas de marfim tapetes diamantes todo o género de bens materiais posses-que-não-sufocam-o tédio-que-lhes-atormenta e que têm como dizia um antigo «carácter invejoso ávido perverso» carácter tinhoso e observam o sujeito sentado à escrivaninha e não compreendem a paz desse sujeito introspectivo a vestir trajes simples sujeito distraído que lê Schopenhauer e toma notas avulsas no caderno pautado.

Publicado por P. R. Cunha / 19 de junho de 2023


Presságio

O presságio dos rompimentos das desintegrações das ruínas não é a fúria mas a vã indiferença.

Publicado por P. R. Cunha / 18 de junho de 2023


Janela

Eu não suporto mais isto ela diz baixinho para si mesma enquanto abre a janela da sala e respira e recupera o fôlego. Vento fresco do fim de tarde preenche o apartamento. Na rua uma orquestra de sopro toca marchas fúnebres. É dia dos mortos.

Publicado por P. R. Cunha / 17 de junho de 2023


Ponteiros

Precisas sempre de abrir as cortinas assim que acordas e deixas a claridade entrar qualquer luz mesmo aquela luz leitosa das manhãs de inverno. Na tua juventude permitias-te certas extravagâncias acordavas muito tarde e passavas o dia inteiro na cama mas hoje aos trinta e sete anos observas as prateleiras da tua biblioteca e há tantos livros e tão pouco tempo para lê-los e os ponteiros do relógio cortam o teu coração como espadas afiadas de um esgrimista distraído. 

Publicado por P. R. Cunha / 16 de junho de 2023


Conformidade big data ou a cafeína eléctrica

E se tu pudesses com os avanços exponenciais na biofarmacologia e ampliações neurológicas nano-robôs incorporados dentro do teu sistema cognitivo ler dezenas de livros em uma semana centenas se calhar milhares de livros por mês e se tu pudesses conhecer uma pessoa aproveitar essa pessoa e descartar essa pessoa tudo isso em menos de vinte e quatro horas e se tu pudesses estar conectado a tempo inteiro comprar a tempo inteiro ser estimulado a tempo inteiro pornografia a tempo inteiro vigiado controlado domesticado a tempo inteiro e se tu pudesses ir a um café virtual tomar um café virtual ter todo o género de sensações virtuais e conversar com a barista virtual e se ela te dissesse: és absolutamente supérfluo não percebeste? 

Publicado por P. R. Cunha / 15 de junho de 2023


Rua arborizada

Quando estou a voltar para casa sempre passo por uma pequena rua arborizada e fico com vontades de sair do autocarro e perceber melhor a pequena rua arborizada porque como sabemos o efeito desses esconderijos geográficos não é o mesmo quando se caminha por eles ou quando estamos apenas de passagem e os observamos à velocidade do autocarro. Pensei: somente aquele que percorrer a pequena rua arborizada a pé dar-se-á conta da magia da rua arborizada dos mistérios e dos encantos da rua arborizada de forma que ontem a despeito de um cansaço devastador finalmente desci do autocarro e fui averiguar a rua arborizada in situ e confesso que não conseguiria transmitir com palavras o tamanho da minha decepção. 

Publicado por P. R. Cunha / 14 de junho de 2023


O fantasma de Thoreau

Gostava de insistir neste ponto: COMO O CÉREBRO DECIFRA EXPERIÊNCIAS. Estou a caminhar com Bernhard em Gmunden ou a admirar Walden com Thoreau se calhar Tranströmer me leva aos confins gelados da Suécia e para mim essas divagações mostram-se mais reais do que qualquer outra coisa. Então o que está a acontecer no meu cérebro o que se passa dentro dessa estrutura encefálica que sem juízo de valor empilha as minhas observações que armazena guarda estoca que percebe e mistura e recria?, faz diferença o meu «não-estar-fisicamente» com Bernhard ou que Thoreau seja já um fantasma ou que eu jamais tenha pisado de facto na Suécia?, o mundo convencional e reconhecido como «verídico» também não está repleto de incoerências e erros e falhas e toda a sorte de ilusões?, alguém que esteve em Norfolk e voltasse e dissesse NÃO ME LEMBRO DE NADA teve uma experiência melhor ou pior do que os meus passeios livrescos guiados por W. G. Sebald que entendia imenso sobre a East Anglia?

Publicado por P. R. Cunha / 13 de junho de 2023


Resiliência

Sei que há tempos ludibrio-me com a história (ou seria estória) do escritor ter de se adequar às circunstâncias do escritor não poder romantizar o sítio onde trabalha ter resiliência etc. mas precisava de encarar tantas intempéries assim precisava mesmo de ser tudo tão belicoso e instável e turbulento?

Publicado por P. R. Cunha / 12 de junho de 2023


Pormenores modernos

Se leio livro que trata dos pormenores modernos quase sempre saiu dessa experiência como um soldado com shell shock i.e. neurose de guerra aguda transtorno por stress pós-traumático porque ao que parece as coisas modernas estão sempre a seguir um processo irreversível de autodestruição.

Publicado por P. R. Cunha / 11 de junho de 2023


Dinamite

És uma panela de pressão e estão a fazer sopa contigo e adicionam toda a sorte de verduras e caldos e temperos e chega uma altura em que a panela transborda e já ali não cabe mais nada e das duas uma: ou te livras de ingredientes ou explodes.

Publicado por P. R. Cunha / 10 de junho de 2023


Princípios

Basicamente sentar-se à escrivaninha e não pensar nos fracassos do passado nos êxitos do passado nas angústias e perturbações do passado nas alegrias nas palavras certas do passado nas renúncias nas noites insones nas batalhas brutais contra si mesmo em suma não pensar nas inconsistências do passado porque hoje quem sabe tudo pode se passar de outra forma.

Publicado por P. R. Cunha / 9 de junho de 2023


Vazio cósmico

A verdade é que tateamos no escuro em busca de qualquer âncora ele diz em busca de algum suporte de uma corda que seja e não encontramos nada além de ilusões fugidias um eu-ilusório ele diz realidade-ilusória sonhos-ilusórios e é um bocadinho como estar no vazio cósmico um corpo sempre a cair sem pontos de referência sem ar espaço onde o tempo enfim mostra-se o que realmente é ou seja abstração seletiva.

Publicado por P. R. Cunha / 8 de junho de 2023


Varanda

Fui visitar H. e achei o apartamento muito bonito especialmente a maneira como estavam organizados os poucos móveis num minimalismo que não pude perceber se por estética ou por necessidade económica e a vista da pequena varanda é agradável mas a nossa conversa não se desenvolveu pois H. está constantemente sob o efeito de drogas e é difícil compreender o que ele fala.

Publicado por P. R. Cunha / 7 de junho de 2023


Livro de papel

Livro de papel não se desgasta facilmente e quase nunca precisa de reparos. Segurá-lo traz certa paz e abrir as páginas sem qualquer dispositivo digital e perder-se na leitura desconectada sem avisos sonoros dos correios electrónicos SMS mensagens das redes sociais e todos os supérfluos tecnológicos que vão e vêm e deixam toda a gente longe e por vezes geram uma data de angústias. Seguramos portanto o livro de papel e interrompemos mesmo que momentaneamente as avalanches intermináveis de obrigações fugimos e fazemos cabana com a brochura aberta e nos sentimos um outro alguém mais tolerante mais sensato mais presente mais tranquilo.

Publicado por P. R. Cunha / 6 de junho de 2023


Ponto de vista

Este jeito improvisado de escrever e não suporto mais as vírgulas se é que um dia as suportei.

Publicado por P. R. Cunha / 5 de junho de 2023


Que tempos eram estes?

Tudo o que sei fazer na vida é ler e há dias em que ler me é um verdadeiro estorvo e consequentemente o resto também se torna um verdadeiro estorvo e eu mesmo me torno um verdadeiro estorvo e acto contínuo nada me apetece.

Publicado por P. R. Cunha / 4 de junho de 2023


Rio com águas turvas

Alma solitária e taciturna que amarrasse umas pedras pesadas nos tornozelos de quem tentasse se aproximar e levasse ou antes empurrasse consigo toda essa gente para o rio com águas turvas.

Publicado por P. R. Cunha / 3 de junho de 2023


Ameaças

Tal e qual aquele supervisor que diz ALFREDO TIRE IMEDIATAMENTE OS PÉS DA MESA A SUA BOTA ESTÁ IMUNDA enquanto ele mesmo o próprio sr. supervisor tem os pés com botas ainda mais imundas sobre a mesa e os funcionários naturalmente ficam sem entender que diabos de firma é aquela e um deles ameaça dizer que BASTA NÃO SUPORTO ESTE ABSURDO ESTA FIRMA IDIOTA mas não chega a dizê-lo ou seja fica apenas na ameaça.

Publicado por P. R. Cunha / 2 de junho de 2023


Breves observações sobre o agora e o depois (Café Wittgenstein)

• Se vos digo que ontem estive com duas pessoas e que ambas pareciam ter uma idade e uma altura diferentes conforme estivessem sentadas ou em pé e que ambas também levavam consigo um livro de Pushkin mas uma eu a encontrei de facto à mesa de um restaurante e a outra era Kubin muito forte e rosto de movimentos monótonos isto é a primeira pessoa era um indivíduo real como se diz de carne e osso enquanto a outra era figura livresca Kubin o desenhador dos diários de Kafka 26 de setembro de 1911 se vos digo portanto que estive ontem com essas duas pessoas faz qualquer diferença se uma existe e a outra é mera representação num pedaço de papel?

• Ilusões de controlo da natureza domar e adestrar a natureza fazer com que a natureza «trabalhe» para os interesses da humanidade mas nunca é preciso de ir muito longe para perceber que não controlamos nem dominamos nada etc.

• Certos fracassos se bem dosados podem servir de força motriz que faz movimentar as engrenagens do próprio coração.

• O oceano foi-se aproximando cada vez mais devorando as barreiras de refreamento até finalmente dar umas dentadas nos prédios à beira-mar que não aguentaram a sequência de intempéries e viram-se fustigados pela fúria marítima.

Publicado por P. R. Cunha / 1º de junho de 2023


Espaço sideral (ou baixa densidade de partículas com radiação electromagnética [poeira cósmica])

Uma estrela que estivesse farta de ser estrela que desistisse de errar pelo universo e já não tivesse que falar com as outras estrelas de lidar com os problemas das outras estrelas muito menos de se aglomerar com outras estrelas que não precisasse mais de brilhar de fornecer calor de preencher espaços uma estrela que de súbito desse consigo em rota de colisão com a Terra e que se aproximasse do planeta numa velocidade vertiginosa sim velocidade brutal e toda a gente notaria que havia algo de estranho no céu porém diriam que se trata apenas de um meteoroide fugaz e inofensivo que não há mesmo com o que se preocupar.

Publicado por P. R. Cunha / 31 de maio de 2023


E sempre deixo o último gole do café para antes de sentar-me à escrivaninha

Se colocassem um escritor numa cela ou num manicómio como tantas vezes já o fizeram e dizem com aquela ordinária ingenuidade que o escritor daria conta porque afinal o escritor possui a própria cabeça ou seja trabalha com a própria cabeça não precisa de nada além da própria cabeça etc. mas talvez isso funcionasse apenas durante alguns dias até que as imagens internas também atrofiassem por falta de oxigenação ou se calhar estou a escrever bobagens pois nunca me trancaram numa cela e nem num manicómio a despeito das vontades de certos familiares.

Publicado por P. R. Cunha / 30 de maio de 2023


Panorama #2

Dez/onze/doze anos a colectar a estudar a dissecar W. G. Sebald prateleiras repletas com ensaios de-e-sobre W. G. Sebald cadernos organizados cromaticamente com infindáveis anotações a respeito de W. G. Sebald meu escritor favorito preciso de repetir o escritor que me instigara que me tirou da zona de conforto que me fez segurar a pena que me levou a Norwich Dunwich Suffolk Antuérpia e não só meus estudos sobre W. G. Sebald apesar da grande ameaça aqui ao lado das inúmeras misérias internas e externas apesar dos abandonos dos distanciamentos das batidas na porta apesar da janela aberta numa noite de inverno particularmente fria e tempestades de neve e é sabido que os pesquisadores de Sebald quase sem exceção a tudo aguentam ou seja permanecem ficam-se no mesmo sítio com uma curiosa mistura de deslumbramento e pavor e os danos causados por estas empreitadas as ruas sem saída pesquisador de Sebald prostrado com aquela triste convicção de não ter tempo para um trabalho desta magnitude trabalho de fôlego como se diz trabalho minimamente bom etc. etc. etc.

Publicado por P. R. Cunha / 28 de maio de 2023


Panorama #1

Há dez/onze anos tenho colectado uma data de materiais a respeito de W. G. Sebald meu escritor favorito de sempre um dos responsáveis ou melhor o maior responsável preciso dizê-lo agora que reflito e me coloco a escrever sobre essas coisas O MAIOR RESPONSÁVEL portanto o W. G. Sebald por eu ter me interessado pela literatura primeiro por toda a sorte de livros obscuros com temas não menos obscuros e depois pelo próprio hábito da escrita uma escrita diária obsessiva escrita de muitas formas avassaladora escrita-buldozer que devastou não somente aqueles que tentavam se aproximar de mim mas antes e principalmente a devastar as minhas entranhas enquanto eu mesmo já não me reconhecia de todo.

Publicado por P. R. Cunha / 27 de maio de 2023


Monotonia

Ao que parece muitos animais humanos não conseguem simplesmente levar uma vida com baixa entropia e o tédio e o marasmo os levam a praticar vilezas os absurdos mais disparatados e o fim do dia é todo remorso.

Publicado por P. R. Cunha / 26 de maio de 2023


Corpo rompido

Há qualquer coisa de irresistível no discreto assistir de um documentário sobre o sistema solar enquanto deitado na cama antes de adormecer a voz de barítono do narrador explica a órbita excêntrica de Tritão a lua glacial de Neptuno e os anéis translúcidos do planeta a distância mínima que um objeto que se aproxima de um corpo tão massivo consegue suportar antes de desintegrar-se devido às forças de marés gravitacionais ou seja limite de Roche.

Publicado por P. R. Cunha / 25 de maio de 2023


Paródia

Estamos distraídos e passamos por um bom momento e olhamos em redor com olhos criativos e queremos de certa forma guardar/arquivar este bom momento que nos traz toda a sorte de sentimentos prazenteiros como se lê nos livros de poesia. Depois o bom momento se dissipa e há quem sinta imensas saudades e faz de tudo para resgatá-lo ou seja ressuscitá-lo mas isso já não é possível justamente por serem irrepetíveis os contextos as distrações as espontaneidades daquele bom momento etc. etc. 

Publicado por P. R. Cunha / 23 de maio de 2023


Desequilíbrios naturais ou darwinismo atualizado (Café Wittgenstein)

Nunca deixar de insistir na importância dos esconderijos mesmo que temporários para a fazenda de qualquer trabalho como se diz introspectivo. Hannah Arendt escrevera que sem o espaço ou o tempo da privacidade «longe da luz implacável e crua da constante presença de outros no mundo público não se pode alimentar a singularidade do eu». Um automóvel pode ser abastecido durante imenso tempo mas chega a altura em que o depósito não suporta mais gasolina e a coisa toda transborda ou explode. O mesmo parece acontecer com o criador que não se permite regenerar-se que está sempre à mostra em suma que não cultiva para si um espaço acolhedor protegido das inundações externas. E saber também que qualquer coisa produzida nesse refúgio uma obra literária digamos será jogada às livrarias e devorada e abandonada quase tão rapidamente quanto surgira no mercado livreiro.

Publicado por P. R. Cunha / 22 de maio de 2023


A vida privada de determinados escritores não é suficientemente espalhafatosa para despertar interesse

O excesso de livros por vezes me fatiga de uma maneira tão brutal que preciso de sair ou antes de fugir do escritório e respirar e não ver apenas fechar os olhos com ruído branco nos auriculares. Bernhard e Sebald e Cioran que me parecem maravilhosos escritores monumentais são para muitos desprezíveis e sem valor de maior. Não «compreendem» os venenos de Bernhard acham Sebald ardiloso e ironicamente prefeririam matar-se a ler Cioran que já nos cumes do desespero dissera que o suicídio sempre chega demasiado tarde. A antítese é um mau truque penso nisso enquanto volto para o escritório como que revigorado e tomo notas.

Publicado por P. R. Cunha / 20 de maio de 2023


Janelas para o vale

Certo colega ilustrador explicou-me que trabalhava com afinco demoníaco dia e noite pois pretendia adquirir para si os melhores equipamentos que um ilustrador pudesse ter o melhor estúdio e de facto logrou êxito e adquiriu tais equipamentos montou o próprio estúdio mas agora ele permanece horas deitado no luxuoso sofá e diz que não tem vontades e que o desenho tornara-se um pesadelo hostil etc. Gostava de insistir nessas idealizações artísticas de conforto de lugares-equipamentos-adequados como aquele escritor que reclamava imenso das algazarras urbanas e quando finalmente consegue fugir para a tranquilidade do campo para o ar sereno do campo para o isolamento do campo a casinha do campo a janela com vista desimpedida do campo quando finalmente encontra silêncio e solidão sente-se morto por dentro e já não escreve nada.

Publicado por P. R. Cunha / 18 de maio de 2023


Repetidas vezes

Personagem de Sartre sente as náuseas ao se deparar com o absurdo da própria existência ou antes com o absurdo de todas as coisas e oscila dentro de um autocarro que segundo nos parece dirige-se a nenhures. Albert Camus abre o já demasiadamente citado O mito de Sísifo com a pertinente provocação a saber se a vida merece ou não ser vivida o problema verdadeiramente sério aos filósofos suicidar-se ou permanecer-se. E num salto espalhafatoso esta hipótese de que a escrita só se faz possível enquanto tais questões ainda não invadiram completamente as ideias do sujeito que escreve um tipo que precisa de cultivar a inocência a ingenuidade do contrário é devorado pela angústia pelas ruminações pelo vazio pela paralisia e certa manhã levanta-se depois de uma noite terrível e ao escovar os dentes observa no espelho um mutilado como o rosto de alguém que sobrevivera a um desastre brutal.

Publicado por P. R. Cunha / 16 de maio de 2023


Falar sozinho

A cafeína é absorvida pelo organismo aumento considerável de energia a bloquear receptores específicos no cérebro liberação de norepinefrina dopamina acetilcolina serotonina sente-se alerta e disposto pupilas dilatadas enquanto levanta a chávena de café para um interlocutor invisível afinal ele andava a pensar muito no pai no avô no tio-avô andava portanto a pensar muito em fantasmas e escreve e está como que suspenso do espaço-tempo-momento-angular-momento-tridimensional-da-gravidade como a flutuar digamos a ter uma experiência reveladora/mística e depois que passasse o efeito da cafeína e relesse o que acabara de escrever todo aquele material tosco ridículo pastiche cafona/piroso coletânea kitsch de móveis almofadados e decrépitos dos 1980 quando voltasse a si talvez tentasse tirar o atraso do sono ou jogar-se-ia mais uma vez no precipício etílico o que já se tornara praxe um padrão.

Publicado por P. R. Cunha / 15 de maio de 2023


Recreio

Há um playground e vários escritores a brincar com os legos. Encaixam as peças e formam diversos tipos de blocos alguns blocos funcionam outros blocos ficam feios e imoderados alguns blocos desabam outros hesitam e os escritores roubam peças alheias e tentam salvar a própria construção de alguma maneira e vemos os legos de cores diferentes espalhados pelo playground. Quem passasse por ali talvez não compreendesse como aqueles excêntricos escritores conseguiam se mostrar tão satisfeitos diante dos legos e todas aquelas combinações possíveis e impossíveis mas a verdade é que se tentassem tirar os bloquinhos dos escritores eles de certeza iriam fazer um tremendo berreiro.

Publicado por P. R. Cunha / 13 de maio de 2023


Ziguezagues

O artista prepara as ferramentas e começa a se dedicar à obra com afinco. De facto um momento aprazível de gestação criativa e o artista se sente muito à vontade com as melhores expectativas pois está a fazer aquilo que sempre o apeteceu está a construir algo do nada convicto de que possui certo talento para o ofício e as casinhas miúdas e aconchegantes em redor e os troncos de árvore na diagonal e o gato tinhoso a dormir à porta da cozinha. Nada se move. Como costumam dizer poder-se-ia escutar um alfinete caindo. Até que pensamentos indecorosos assaltam o fluxo de consciência do artista até que uma obrigação ou uma conta a pagar ou uma memória que não cicatrizou expulsa o artista da redoma que criara para si mesmo e de súbito começa a ter toda a sorte de dúvidas e questiona-se de modo impiedoso e não está mais assim tão convicto e muito menos confiante e as mãos vacilam novamente.

Publicado por P. R. Cunha / 11 de maio de 2023


Nutrir-se à custa de outro

Eu não me lembro exatamente quando comecei a escrever mas de certinho que não foi cedo não nasci segurando um lápis como muitos contam por aí à guisa de mitologia ou monomania e dizem: desde que entendo-me por gente escrevo etc. mas se calhar isto assim se passa porque eu mesmo só fui me entender por gente demasiado tarde se é que de facto entendo-me por gente nesta altura já não faço a ideia talvez eu nunca me entenderei por gente de modo que antes eu tinha outras preocupações outras atividades e jogava o futebol colecionava selos com motivos aeroespaciais tinha o videojogo madrugadas e madrugadas de videojogo os olhos ficavam secos de tanto videojogo e mamã brigava: não vais longe se só ficares aí para o videojogo a tempo inteiro e papá não sabia o que dizer papá não achava tão ruim eu ficar para o videojogo a tempo inteiro ele inclusive muitas vezes jogava comigo escondido da mamã mas eu também ía muito ao cinema naquela época era moda ir ao cinema e uma garota nos convidava para ir ao cinema e segurávamos a mão dela durante algum filme assustador e quando voltava para casa enchia-me de televisão uma data de televisão programas vespertinos com aquela duvidosa qualidade 1990 e insisto só muito depois é que comecei a tomar notas ou melhor a rabiscar palavras e o desastre é mostrar esses rabiscos para outra pessoa e essa outra pessoa diz: nossa como tu escreves direitinho e é o início do fim alguém elogia algo que escrevemos e já era não há mais volta o parasita foi implantado.

Publicado por P. R. Cunha / 9 de maio de 2023


Remos

Há um rio com
águas turvas porque
tempestades
ao meio um bote
demasiado pequenino
luta contra a correnteza
que com imensa força
carrega tudo para o
penhasco da cachoeira
— tu estás naquele bote.

Publicado por P. R. Cunha / 7 de maio de 2023


Disciplinas

Quando há angústias e ansiedades e desassossegos desta natureza sabe bem escrever numa folha de papel. O operador de máquinas comparece à fábrica quase todos os dias igualmente o médico vai ao hospital o barbeiro ao salão e os desportistas treinam e participam de toda a sorte de competições por que razão haveria de ser diferente com os escritores? Se escrevo um bom trecho o seguinte já não sai com tantas semelhanças mas dirijo-me à escrivaninha mesmo assim motivado ou desmotivado pois as palavras dormem ou antes hibernam até que decidem que são horas de acordar.

Publicado por P. R. Cunha / 6 de maio de 2023


Casa de campo

O velho sr. Von Baier não lê jornais não acompanha os noticiários não sabe o que está a se passar ao Médio Oriente não faz a ideia do preço do petróleo se o homem já foi para Marte se a Terceira Guerra Mundial está para eclodir. O velho sr. Von Baier aprecia o próprio pequeno-almoço colonial às traseiras da quinta e alimenta aves com alguns bocados de milho. As aves adoram o velho Von Baier.

Publicado por P. R. Cunha / 5 de maio de 2023


Ao(s) leitor(es) do blogue

Há um público leitor no caminho? Público a respeito do qual o escritor nada sabe? Se calhar um curioso de passagem ou alguém que lê duas/três linhas e se aborrece ou mesmo alguém que percebe que sim de facto existe uma série amorfa de palavras por aqui mas não se dá ao trabalho de ler e desta forma poderíamos chamá-lo de leitor? Leitores-espectros e aparições esporádicas enquanto o escritor acorda no meio da madrugada com aquela inquietadora sensação de estar a ser observado? Esses questionamentos deixam o escritor impaciente ou antes exasperado talvez relutante os leitores bagunçam a vida do escritor ou seria o contrário?

Publicado por P. R. Cunha / 4 de maio de 2023


Pergaminho

Atormentado pelo fim da fazenda livresca fim do livro ou fim do próprio mundo um mundo passageiro bem verdade mundo efémero que durou quatro anos atormentado por não ter mais o objecto de adoração o motivo o propósito o levantar da cama o trabalho diário atormentado em suma pelo vazio e ele acaba por sucumbir a um esgotamento nervoso. O livro agora preserva a memória de algo longínquo. Como se tudo tivesse ocorrido numa «outra vida». E durante alguns dias se instalavam umas tréguas não declaradas. Momento de descompressão. Vai e respira. Ambos escritor-e-escritura comportavam-se como dois elementos suportáveis como se não houvesse conflito como se o futuro guardasse boas novas. O que nem sempre ocorre. Por vezes o futuro é apenas desolador e irremediável. Mas nunca se sabe nunca se sabe nunca se sabe.

Publicado por P. R. Cunha / 3 de maio de 2023


Estar-se nas tintas

Tomar sol
ao terraço
do café.

Publicado por P. R. Cunha / 2 de maio de 2023


Articulado

Não era bem o ruído que o incomodava mas o barulho humano artificial e impositivo e egoístico o barulho violador barulho do qual não se pode escapar.

Publicado por P. R. Cunha / 1º de maio de 2023


Escrevo este microensaio sobre fantasmas e não sei ao certo para onde ir. Minha ideia talvez fosse começar assim:

«Os fantasmas existem.»

Digo isso em voz alta e me parece uma afirmação tola e ingénua e até um bocadinho disparatada.

Meu pai morreu em julho de 2010. Acidente de automóvel. Durante anos não consegui lidar com essa perda. Ou não quis lidar não quis ter período de luto não quis fechar-me num quarto para reflectir. Não quis nada.

Meu pai vai voltar eu mentia para mim mesmo sabia muito bem que ele não voltaria mas repetia igual: meu pai vai voltar.

Se lembramos de alguém que amamos profundamente e esse alguém não está mais como se diz entre nós em suma esse alguém morreu e nos restam as saudades as lembranças.

Se calhar ainda «vemos» esse alguém caminhando pela casa ou está sentado silenciosamente na velha cadeira de leitura de sempre. Não sei.

Escutamos o artista favorito desse alguém e dizemos oh! é o Frank Sinatra o alguém gostava imenso do Frank Sinatra.

O perfume um tom de voz parecido que ecoa no mercado municipal que nos faz olhar para trás confusos e procuramos o alguém no meio da multidão as botas que utilizava os conselhos que exprimia os alimentos que evitava.

Fantasmas são criaturas da nossa cabeça? Isso é certinho. Mas no fim de contas o que não é criatura da nossa cabeça? Estás a ler este microensaio e o teu cérebro re-cria significados.

O texto não é absolutamente real. Permite uma data de interpretações e metamorfoseia-se de acordo com as circunstâncias. Espectros gramaticais.

Podes ter perdido alguém há pouco e tudo o que lês parece carregar uma sombra intolerável?

Ou nunca perdeste alguém e estás a ler o microensaio com uma leveza absurda quase a te divertires?

Os fantasmas tocam flauta.

Publicado por P. R. Cunha / 29 de abril de 2023


Bomba nuclear (Café Wittgenstein)

Quando escolhemos uma frase deixamos de escolher infinitas outras frases quando escolhemos uma palavra deixamos de escolher infinitas outras palavras quando escolhemos uma letra deixamos de escolher infinitas outras letras e quando escolhemos o ponto final fechamos portas.

Publicado por P. R. Cunha / 27 de abril de 2023


Irrealidade de se terminar (propriamente)

Ao final do primeiro esboço — cerca de quatro anos depois —, não houve lágrima, apenas um suspiro anestesiado.

Publicado por P. R. Cunha / 26 de abril de 2023


Dissipar-se

Escrevo o livro que é bem uma mensagem para a vida esta ilha distante mensagem para aqueles que me causaram dores àqueles que fiz sofrer para aqueles que acreditaram e apoiaram para aqueles que duvidaram e nunca acreditarão mensagem de vingança de rancores mensagem pacífica mensagem reconciliatória acordo tácito aproximações distantes vãs tentativas de participar (fazer/parte) um grito silencioso uma efémera nota de rodapé uma seda que desvanecesse na fogueira um alerta-a-mim-mesmo etc.

Publicado por P. R. Cunha / 24 de abril de 2023


Para resistir à decomposição

Personagem coadjuvante que tivera poucas experiências, e que preferia ficar trancada no próprio apartamento a lembrar, ou antes, a idealizar essas poucas experiências, cortava, acrescentava, multiplicava, subtraía, como se diz, a seu bel-prazer, sempre as mesmas lembranças, o mesmo romantismo, os mesmos suspiros — algo que ocorrera em 1973! —, as novidades, novas imagens, novas informações não contaminariam essas reminiscências, mausoléu do passado. Personagem teria uns 90/95 anos. 

Publicado por P. R. Cunha / 23 de abril de 2023


Lenitivo(s)

Ela, pedra magnética
— e tu tens os pés de ímã.

Os livros te afastam:
de quem querias
afastar-te e de quem
não querias te afastar.

Da árvore com galhos
retorcidos pendia uma corda,
mas ninguém estava ali.

Jukebox toca
melodias inquietas
«Isto não é música de bar!»,
alguém grita.

Simples pensamentos
profundos como um lenço
impregnado de lágrimas.

Publicado por P. R. Cunha / 17 de abril de 2023


Estar algures em busca de distração, mas também de fracassos, esta mania de fracassos, de malogros, desilusões, este eterno arrepender-se

Electro-carta para o amigo das letras (com um ou outro acréscimo à guisa de efeito semântico): terminar livro é como terminar um longo e exaustivo relacionamento amoroso — «ainda não estou realmente pronto para te largar», «ainda não é a altura», «fica mais um bocadinho», etc. O sujeito se ilude imenso, cria toda a sorte de pretextos, lembra que não foi sempre assim, que um dia amaram-se como nenhum amante se arriscara amar, que o tempo parava, que o futuro era infinito, que o coração funcionava, esse tipo de coisa. Força do hábito, não termina, apenas espera o momento certo, afia a ceifa, observa. Até que numa determinada tarde (geralmente está a chover ou aos nevões), o livro se cansa de ser enganado, percebe a situação. Ou seja, na ausência de atitude, é o próprio livro que toma as rédeas, que se vai embora, e não há muito o que se possa fazer a respeito, foi nada mais do que uma consequência lógica.

Publicado por P. R. Cunha / 15 de abril de 2023


Dias contados

Lembro bem de ela falar: acabou, é isto… — disse com uma calma dispersa, com tamanha indiferença que até hoje essas palavras avulsas me assombram quando me vejo à toa num fim de tarde melancólico.

Publicado por P. R. Cunha / 14 de abril de 2023


Centro geométrico

E eis que me tornei aquilo que sempre temi: ser estranho que balbucia consigo mesmo diante dos livros de uma biblioteca.

Publicado por P. R. Cunha / 13 de abril de 2023


Aparentemente, não consegues ficar mais de dois dias sem escrever: do contrário, enlouqueces

rua da infância
cai uma pétala —
sismo de silêncio

Publicado por P. R. Cunha / 11 de abril de 2023


Schmidt

Depois de um longo dia a ser puxado, como se diz, para-cima-&-para-baixo, de ir para este e àquele sítio, a tomar chuva, a passar frio, a socializar, comportar-se desta e daquela maneira, sempre à espera de um colapso mental, em suma: depois de um longo e exaustivo dia a ser um outro, seguindo ordens alheias, as vontades alheias, os interesses alheios, (mais uma vez a ideia do boneco [marioneta {ver Fantoches, 6 de abril de 2023}]), Schmidt finalmente gritara: chega!, deixem-me em paz no meu gabinete.

Publicado por P. R. Cunha / 8 de abril de 2023


Fantoches

A ideia é basicamente esta: se o escritor vive algures, demasiado tempo fora, a lidar com gentes, com a imprensa, e dá palestras, e fala sobre os próprios livros, sobre as próprias técnicas, sobre as próprias rotinas, que tipo de caneta utiliza, a que horas senta-se à escrivaninha, se toma café ou chá, se chá verde ou de erva-cidreira, se tem tolerância à lactose, então acontece que não está a trabalhar, pode até iludir-se dizendo: ora, isto é também uma espécie de trabalho, mas não é, não está a exercer o ofício, não se dedica às leituras, não se alimenta de ideias, não dialoga com os mortos, não experimenta novas possibilidades, não se aprimora, em suma: torna-se marioneta, veste lá as roupinhas de escritor, óculos de escritor, poses de escritor, mas não passa de representação — mero boneco manipulável.

Publicado por P. R. Cunha / 6 de abril de 2023


Tábua

Estás na livraria diante de milhares-&-milhares de livros, e um deles dialoga com os teus sentimentos, com o teu contexto, com as tuas vontades, dir-se-ia que o livro é compatível, como uma peça que completasse (ou ajudasse a completar) o puzzle. Qualquer coisa de mágico quando isso acontece.

Publicado por P. R. Cunha / 5 de abril de 2023


Vira o disco e toca o mesmo*

*Como publicado na revista Cantina, Moçambique, jan/fev de 2023

Ao café com um amigo, confesso-lhe que estou saturado de romances (enquanto género narrativo e/ou relacionamento afetivo). Moço-encontra-moça-superam-dificuldades-e-permanecem-juntos. Fico com os azeites, porque a fórmula toda é de um desgaste que causa náuseas. Nunca fui romancista, eu digo, e já na adolescência não conseguia suportar esse tipo de literatura. E do que gostas, ele pergunta como se quisesse saber a meteorologia da semana. De prosa, eu digo, ficção, autobiografias inventadas, dar corda aos sapatos. 

Publicado por P. R. Cunha / 4 de abril de 2023


Máscaras imprecisas (Café Wittgenstein)

Num dia sol
de aí chuva
no outro nevão
até que sol
de novo…


O que é um dia bom: quando posso me refugiar da realidade, mesmo que apenas durante um par de horas. Enquanto neste estado, dir-se-ia, de alheamento completo, dar formas à entropia, vida que coubesse numa caixa, ou num livro (que não deixa de ser uma espécie de caixa [caixa de papel, papelão]). Certas exigências e/ou expectativas de ordem e previsibilidade. Diante de incontáveis acidentes — se coloco a caneta em determinada posição, se deixo de lavar a roupa naquele horário específico, furo o sinal vermelho e assim estou como que a desmantelar cadeias de eventos, que mudam o tempo todo, com as minhas decisões, com as decisões alheias, mudanças atrás de mudanças, e resta o quê?, esta ilusão (artificial) de estabilidade, ou pior, uma continuidade imposta.

Publicado por P. R. Cunha / 3 de abril de 2023


Dietas

Há diante de nós esta piscina de infinitas impossibilidades. O zelador da piscina diz: muito funda. Vou até ao trampolim e pulo.

Várias gentes comem determinado tipo de alimento. É moda comer tal coisa. Não queres um bocadinho? Respondes: estou cá satisfeito, obrigado.

Alguns, no entanto, insistiriam: mas tens a certeza?, trata-se de um bom alimento, etc.

Publicado por P. R. Cunha / 2 de abril de 2023


Refúgio a calhar

Atentemos num exemplo característico: há sempre uma construção, alguém martelando coisas, automóvel barulhento, motocicletas barulhentas, homem que grita, mulher que grita, crianças que choram, anúncios luminosos, sirenes, balbúrdias eléctricas, música alta em cada esquina/café/restaurante — a tragédia urbana é realmente rica em lições a respeito.

Publicado por P. R. Cunha / 1º de abril de 2023


Boulangerie

Moça segura baguette
enquanto espanta
pombo com a perna
— o pombo foge.

Publicado por P. R. Cunha / 31 de março de 2023


Retratos

Giorginno foi convidado para um jantar na casa do prefeito. Visivelmente intranquilo, permaneceu no salão principal à espera das solenidades. Uma das assessoras do evento chamou o prefeito e disse que aquele ali era Giorginno, escritor de literatura. Cumprimentaram-se. O fotógrafo oficial sugeriu uma foto. Enquanto se ajeitavam para as poses, o prefeito deu três tapinhas nas costas de Giorginno e sussurrou: nunca li teus livros.

Publicado por P. R. Cunha / 30 de março de 2023


Empirismo

Então tu escreves para pessoas invisíveis?, ela perguntou com aquele tom sarcástico que ele tanto abominava, um jeito de falar calculado, sim, premeditado, justamente para aborrecê-lo. Escreves para as futuras gerações, ela continuou, para pessoas que irão te ler e de certeza terão imensa pena de ti, pobre filósofo, essas gentes do futuro dizem, pobrezinho, como deve ter sofrido, e tu já estarás soterrado num túmulo aos pedaços, num cemitério qualquer, e o coveiro pisa na tua lápide coberta de cascalho, erva daninha, e o coveiro não faz a ideia de quem tu eras, apenas mais um pedaço de carne apodrecendo num campo de mortos esquecidos, ela disse.

Publicado por P. R. Cunha / 29 de março de 2023


Ondas electromagnéticas 

Brasileiro sentado sozinho à escrivaninha reflete sobre os absurdos do planeta, suplemento alimentar em cápsulas, ultra concentração, biografia do Frank Sinatra (tomo I, num ângulo oblíquo [estranho], setecentas e quarenta e sete páginas), relógio digital de pulso estilo 1990, Amanhã para sempre de Jorge G. Castañeda. Brasileiro sabe que não está louco. Contém 120 cápsulas de 3g. Batem à porta com força.

Publicado por P. R. Cunha / 28 de março de 2023


O que acontece (ou deixa de acontecer) lá fora

Vida humana dura em média uns oitenta anos durante os quais o sujeito imagina-se parte do progresso parte da construção de algo maior toma notas sobre esperança a desigualdade disto e daquilo participa de manifestações também escreve no próprio diário miudezas climáticas que faz bom tempo que faz chuva que faz neve que o sol racha-nos o cocuruto passeios na montanha críticas de filmes de livros que logo tornar-se-ão irrelevantes diversas coisas sobre arte de forma geral música teatro pinturas relacionamentos fracassados a morte deste ou daquele sim como é triste lidar com a morte a perda o luto e o universo tem 13.8 bilhões de anos a escala é realmente brutal.

Publicado por P. R. Cunha / 27 de março de 2023


Capturas

Por volta das 20h: estávamos numa daquelas regiões urbanas negligenciadas, caóticas, esquecidas pelos políticos, esquecidas até pelo próprio diabo e meu amigo apontou com frieza para a esquina à nossa esquerda: quatro assassinatos só nesta semana, ele disse enquanto apertava o botão do semáforo. Do outro lado da rua, um prédio cinza, repleto de rachaduras e cicatrizes de infiltrações. Na janela do terceiro andar, a luz pálida da televisão preenchia o cómodo. Levantei a câmera para fotografar e não consegui. 

Publicado por P. R. Cunha / 25 de março de 2023


Ainda sobre os riscos de se conhecer/analisar a biografia de determinados escritores, um casou-se por conveniência a despeito de tudo o que escrevera sobre a inutilidade dos matrimónios, outro meteu-se num ridículo ballet político para manter regalias, quantos não aceitaram prémios-dinheiros-cargos de organizações duvidosas, basicamente: a importância do silêncio, da reclusão, dos segredos, do não participar, da obscuridade para a construção de um carácter menos indecoroso, e ajuda, também, se a figura idolatrada já estiver morta há, digamos, dois/três séculos

Que um bem-estar futuro (qualquer bem-estar [mínimo, que seja]) compense ou faça valer a pena estas ambições literárias, ambições dilaceradas — ao mesmo tempo, a certeza de que não, não compensará, não fará valer a pena, porque acúmulos de mais, acúmulos incuráveis de feridas, de torturas, de traumas, de rancores, etc.

Enquanto escrevo, pelo menos, um átimo de sentido. Propósito passageiro.

Tão logo coloco o ponto final e toda aquela angústia de sempre retorna, como se nada tivesse acontecido.

À noite, ópera.

Publicado por P. R. Cunha / 23 de março de 2023


Actos que precedem as coisas definitivas (dois preâmbulos)

Não importam os esforços e a boa vontade de uma pessoa — ela sempre será usada para algum interesse alheio e sempre usará outras pessoas para algum interesse próprio.

* * *

Na juventude, a personalidade está em construção, pode-se modificá-la, acrescentar, subtrair, alterar os materiais e o acabamento sem causar danos à estrutura. Porém, chega a idade em que isso já não é possível sem que se corra o risco de tudo desabar.

Publicado por P. R. Cunha / 22 de março de 2023


Hieróglifo, ou esconder-se à floresta

Imensas vezes, o único refúgio que temos é a nossa própria cabeça.

Há basicamente duas maneiras: modos exteriores (o que se escolhe mostrar ao mundo), modos interiores (aquilo que se passa «por dentro» [palavras, imagens, segredos, fantasias, bestiários]).

Colocamos as frutas no frigorífico e elas mantêm boa aparência; assim que as tiramos de lá, apodrecem.

Se penso numa narrativa, e ela faz todo o sentido, e até leva certa sonoridade poética, agradável, mas logo desaba quando a transfiro para a folha de papel. Sempre foi assim.

Publicado por P. R. Cunha / 21 de março de 2023


O monstro estava em paz (Café Wittgenstein)

Acho absolutamente compreensível a pessoa não querer levar uma vida filosófica, ele disse enquanto preparava o pequeno-almoço e tentava equilibrar o telemóvel entre a orelha e o ombro direito. Há pouco estive em Itália, fui visitar uma amiga a Salerno, e lá ninguém escrutinava a própria existência com questionamentos de toda a sorte, mostravam-se satisfeitos com o que tinham, com a quinta, com os animais, com os produtos da terra, ele disse, e vários já andavam na casa dos cem, seres humanos muito velhos e felizes. Agora eu te pergunto: quanto tempo vive um filósofo, quantos não estouram os miolos, e quantos ainda não morrem vivos, negligenciados na casa dos loucos…, percebes o que estou a dizer?

Publicado por P. R. Cunha / 20 de março de 2023


Batalhas perdidas ou curvas ao infinito

algures por aí há uma mulher
que roubou o elixir da vida —
lua encoberta

*

o som funerário do sino
desce para o vale
e transforma a água em gelo


Yosa Buson

Estou a ler Com meus dentes de cão, do Paulo Paniago — disponível nas melhores lojas do ramo literário.

O meu exemplar foi adquirido na Livraria da Travessa.

Digo isso a título de extravagância.

Livraria da Travessa não me ofereceu dinheiros para citá-la, mas eu os teria aceitado de bom grado, fosse o caso.

Quanto valeria publicidade num blogue que possui (segundo dados WordPress) quarenta e dois leitores diários?

Não é fácil falar sobre a obra de um amigo-professor-ouvinte-conselheiro. Pisamos em ovos, e o precipício nunca anda longe.

Sou um escritor de ficção, eu invento, eu minto.

Escrevo isto depois de algumas doses consideráveis de euforia etílica.

Se calhar, um dos papéis do misantropo é oferecer, sem filtros, acessos à realidade, às coisas como elas são. «Estás aí escondidinho atrás dessas mantas de ilusões», parece dizer o misantropo, «pois!, sai logo da cama!», e imaginamos o misantropo a levantar as mantas sem qualquer cerimónia, etc.

Paulo Paniago é escritor notável por discórdias prolíficas. Há sagacidades, sabedoria popular, animais humanos obscuros, frustrações…

…narrativa bem-humorada, indisposta, acrobática, fixe, elegante, distorcida, profética, lúcida, kafkiana, veloz, amazing, narcótica, vertiginosa.

Onde ler a obra?

Em casa, no autocarro, num café moderadamente movimentado. Silêncios fugidios, e, de quando em quando, uma ou outra pessoa a interromper.

Interrupções condizem com o carácter irascível do livro (a-arte-imita-a-vida-e-vice-versa). Mas, por momentos, esquecemos tudo.

Está-se à beira de um lago, árvores agitadas por uma ligeira brisa, folhas que oscilam, há uma limonada sobre a toalha de piquenique com motivos quadriculados.

Limonadas, sabemos, podem ser doces, azedas, amargas, naturais, verdes, suíças.

Com meus dentes de cão — limonada.

Publicado por P. R. Cunha / 19 de março de 2023


Analgésicos

Alguns fazem tricô, outros dedicam-se incondicionalmente à educação dos filhos, há quem aposte todas as fichas no trabalho, numa carreira respeitável, títulos, estabelecem metas improváveis, há os que praticam esportes radicais, escalam montanhas íngremes, acampam em glaciares, pulam de paraquedas de um arranha-céu, jogam-se às profundezas do oceano, levam o próprio balão aos limites atmosféricos, à Linha de Kármán para verem se conseguem respirar ali, enquanto eu: escrevo — válvula de escape, rota de fuga como outra qualquer. A mim me parece que a escrita com finalidades individualistas é a mais sincera. Atividade egocêntrica, absurda, em busca de prazer próprio, prazer efémero, como quem bebe garrafas de vinhos criminosamente dispendiosos sem pensar na conta a pagar.

Publicado por P. R. Cunha / 18 de março de 2023


Noctívago

Quando ele chegou ao restaurante, ela já estava à mesa perto da varanda com balaustrada ao estilo romano. Ela levantou o copo de mojito e com a outra mão convidou-o para sentar-se. Ele ainda achava inacreditável que pudessem se interessar por um escritor tão obscuro e, não se podia esquecer, pouco disposto a ocasiões sociais. «Peço imensas desculpas», ele tateava buscando o vocabulário apropriado, «o trânsito desta cidade…». Ela levou o copo de mojito à boca e permaneceu calada.

Sempé costumava dizer que cerca de 115% dos problemas dos escritores estavam de alguma forma relacionados a mulheres.

Estás quietinho no próprio apartamento, estás a tomar notas, a ler Kempowski, nada te abala, até que ela te convida para um jantar e tu, naturalmente, aceitas.

Publicado por P. R. Cunha / 17 de março de 2023


Relutância

É necessário imaginar Kaspar Hauser debruçado a tomar notas avulsas numa espécie de diário — a despeito da linguagem vacilante, do despropósito da empreitada, da tentativa hedionda de expressar-se. A despeito de tudo.

(A rotina do escritor por vezes tropeça em lugares-comuns [bares, livrarias/alfarrabistas, cafés, teatros, tabacarias, clubes de jazz].)

No café, alguns senhores ainda se entregam à leitura do jornal de papel. Em redor, a maioria tem o rosto azul da luz que vem do ecrã dos telemóveis.

A analogia é a de sempre: estão-ali-mas-não-estão-ali, etc.

Há os que sofrem mais com mudanças, com transições, com o novo, que, como se diz, «parece chegar a cada instante». Os que são devorados pelos torniquetes do progresso, enquanto tentam de todas as formas manter velhos hábitos.

Aqueles que escolhem não entrar na locomotiva desgovernada isolam-se, qual Kaspar Hauser, deixam de participar, vivem às margens.

Em suma: resistimos.

Publicado por P. R. Cunha / 16 de março de 2023


Lembra-te que tu também serás esquecido

Quantos escritores escreveram, digamos, na virada do século-19-para-o-20, quantos acordaram cedo para trabalhar no próprio manuscrito, quantos dedicaram horas e horas à fazenda literária, quantos buscaram casas editoras e foram recusados, quantos alimentaram a expectativa de ter leitores e foram sumariamente ignorados, quantos tiveram alguns fugidios momentos de relevância para logo depois caírem novamente na vala do ostracismo, quantos ainda são lembrados, ou antes: qual o nome desses fantasmas, que tipo de mensagens jogaram ao mar insaciável, etc., etc.

Publicado por P. R. Cunha / 13 de março de 2023


Aritmética aplicada

Talvez se apagássemos a luz, ela disse.

Ele ajeitou o travesseiro às costas. A conta é directa, ele disse, o dia possui 24 horas, então basicamente dividimos essas horas em duas categorias simplificadas, horas agradáveis / horas desagradáveis.

Não era bem isso que ela imaginara quando sugeriu apagar a luz, mas ela escutava mesmo assim.

Ele continuou: fiz um levantamento detalhado e cheguei à conclusão de que, em média, 19 horas do meu dia são desagradáveis, algumas horas chegam a ser insuportavelmente desagradáveis, mas não levei isso em consideração. Sobram-me, portanto, 6 horas de tréguas, em que procuro fazer o que tem de ser feito.

Ela fechou os olhos, como quem se preparasse para dormir e não conseguisse.

A regra de três é de facto inflexível, ele prosseguiu depois de um silêncio meditativo, 24 está para 100, ele faz as contas no ar com o indicador da mão direita, 19 está para X, 24 X é igual a 100 vezes 19, X é igual 1900 dividido por 24, o que significa que 79% do meu dia são desagradáveis.

A respiração dela sincronizada, cada vez mais profunda — já não lhe apetecia esforçar-se.

Publicado por P. R. Cunha / 12 de março de 2023


Isto é um conto de fadas

Escritor vivia num reino deveras instável. O rei, sempre muito atarefado com responsabilidades de rei, invejava a disponibilidade, o ócio, o foco, a resiliência, a disciplina desse modesto escritor. O rei ficara, dir-se-ia, obcecado pelo modo de vida do escritor, e tão logo percebera que seria impossível superar aquele audacioso homem das letras, partiu para os planos de vingança. Ordenou aos soldados mais agressivos do reino que fossem até à cabana do escritor e dissessem que ele estava expressamente proibido de escrever. Como o escritor não demonstrara nenhuma reação, mantivera-se firme e resoluto, o rei foi chamado às pressas. Tomado por uma ira ainda mais implacável, o rei chegou numa suntuosa carruagem, mandou destruir todo o material de escrita, despedaçar a escrivaninha, rasgar todas aquelas folhas e, por fim, incendiar a cabana. O escritor, no entanto, permanecia calmo, imperturbável, sussurrara que escrevia e pensava com a cabeça e não com objetos. Ao escutar a afronta, o rei puxou violentamente a espada da bainha de um dos soldados e com as próprias mãos decapitara o escritor.

Publicado por P. R. Cunha / 11 de março de 2023


Disparos

Conheço escritores que se sentam confortavelmente ao jardim & escrevem durante uma manhã soalheira, & quase conseguimos ouvir os pássaros, as folhas das árvores, o burburinho da água gaseificada com rodelas de limão — escrevem felizes, portanto.

É um gatilho que não me apetece. Se está tudo bem, se tenho tudo à disposição, enxergo a escrita com ainda mais desconfiança, torna-se uma atividade ainda mais supérflua, um mero exercício de estilo (como um miúdo que acabasse de aprender a andar de bicicleta e gritasse para toda a gente: vejam, sei andar de bicicleta! [engraçadinho de início, mas dali a pouco irrita]).

Moro numa zona industrial, abro a janela do apartamento & escuto o rugir das máquinas, o barulho metálico dos contentores, das carretas, & quando dou por mim estou à escrivaninha, furioso, com tipologia pesada, tresloucado.

Não estou a dizer que sofro ao escrever.

É outra coisa.

Inclinado às miragens gratuitas, talvez eu seja um «eterno» discípulo da Confraria Schopenhauer, da Escola Nietzsche, do Instituto Cioran — escrevo para amenizar, para suportar, para afogar, escrevo para calar-me.

Publicado por P. R. Cunha / 10 de março de 2023


Cansado

Estás cansado — cansado de escrever, cansado de não escrever, cansado de correr atrás, cansado de correr à frente, cansado de agir, cansado de procrastinar, cansado da espera, do sedentarismo, cansado da atividade, cansado da passividade, cansado de inventar, cansado de reinventar, cansado do nomadismo, cansado de blogue, livros, manuscritos, dicionários, cansado de acordar, cansado de dormir, dos jogos, das encenações, cansado de actuar, cansado de beber, de devorar, de ser devorado, cansado de verdades, cansado de mentiras, de estar-tudo-bem, de estar-tudo-mal, cansado dos advérbios de modo, cansado dos adjetivos, dos substantivos, cansado das gentes, dos noticiários, cansado dos filmes, das músicas, das artes, cansado de comprar, cansado de ser comprado, cansado dos dados, cansado dos gráficos, cansado das metas, do virtual, do desigual, cansado de revoluções, cansado do mais, cansado do menos, cansado da chuva, do sol, cansado da neve, cansado da pele, das texturas, cansado dos sabores, dos desassossegos — sim, estás cansado.

Publicado por P. R. Cunha / 9 de março de 2023


Vir-a-ser (Café Wittgenstein)

Estaríamos, portanto, fadados a sermos uma espécie constantemente insatisfeita, incapaz de realizar (de facto) alguma coisa? Sempre a expectativa, os dissabores, o quase, nunca o sonho por inteiro, apenas uma série de objetivos fragmentados, incompletos.

Alguém que construísse uma casa funcional, moderna, confortável, mas que sentisse constantemente a falta de algo, de objetos, de móveis, electrodomésticos, ou é a parede que tem um aspeto estranho, a cor do sofá o desagrada.

A casa está boa — alguém diz —, no entanto, precisa de ajustes.

Em suma: acabamento impossível, perpetuamente no futuro.

Publicado por P. R. Cunha / 8 de março de 2023


Cubos de gelo

Quando se escreve muito sobra a inutilidade de todas as coisas, entropia, o fugidio, o efémero, sobre narrativas artificiais criadas para manter o castelo de areia em pé, quando o sujeito se aproxima demasiadamente da falésia, e está a fitar o nada, o vazio, o despropósito, a ausência de sentido das próprias atitudes, inclusive a escrita, antes de mais nada a escrita: atividade monomaníaca, insanidade parcial, ideia-fixa, é preciso de ser um desajustado para dar prosseguimento ao livro?, dar cabo do livro («embarcamos, fazemos a viagem, atracamos ao porto e chega o momento de desembarcarmos»), quer dizer — cultivar uma série de miragens/ilusões, repetir para si mesmo: é um livro relevante, trata de temas relevantes, pessoas relevantes irão lê-lo, etc. Ou quando o próprio livro, a fazenda do livro, as pesquisas do livro, a tipologia do livro, a mancha gráfica do livro, epílogo do livro, prólogo do livro, quando todo o livro se torna o propósito, a obsessão, a única âncora que ainda não enferrujara, e está-se a uma ou duas braçadas do naufrágio.

Publicado por P. R. Cunha / 7 de março de 2023


A dificuldade de terminar o livro

A dificuldade de terminar o livro
não é questão técnica
de estilo ou gramática
é compartilhar quietudes
segredos subterrâneos
cinco anos de convivência
de angústias e desesperos
e agitações e demandas
sim mas também
de refúgios e confidências
e consolos e caminhos gentis
terminar o livro é livrar-me
do amigo que mostrava
dia-após-dia
a alegria das coisas simples
do sentar-me à mesa
das visões fantásticas
da mente atenta
da caneta
que repousa no caderno
após descrever filosofias
reveladoras —
é despedir-me da sinfonia
que levava ao infinito
todas as manhãs o sussurro
de notas suaves
ou ondas irascíveis
de acordes lentos
ou abalo sísmico irrevogável
vislumbre de felicidade
completude efémera
como o abraço de alguém
que já não existe mais.

Publicado por P. R. Cunha / 4 de março de 2023


Insuspeito

Por motivos dos quais não me orgulho, havia deixado de preparar o meu café matinal com aquele esmero ritualístico, como um aborígene que oferecesse o próprio coração aos deuses.

Tornara-se mera atividade despropositada, automática, quase tão previsível quanto apertar o botão da cafeteira eléctrica e esperar a chávena encher.

Eu havia me transformado numa máquina de café sucateada.

Na obra Non-lieux, o antropólogo Marc Augé definiu «não-lugar» como espaço onde se permanece anónimo, sítio que não possui características significativas, que não constrói referências: átrios de grandes redes hoteleiras, autoestradas, supermercados, aeroportos, rodoviárias.

A pessoa, acrescenta Augé, não vive e não se apropria desses espaços, «corredores» onde está-se apenas de passagem.

Em suma, minha rotina com o café transformara-se em não-lugar, numa atividade indiferente, sempre com a cabeça algures.

Até que hoje acordei com o abraço flamejante do sol às 5h43 da manhã com vontades de regressar aos velhos hábitos: dedicar-me ao cafezinho, moer os grãos, sem pressa, água mineral, coador…

Café bem-feito talvez seja um dos melhores antídotos para dias macambúzios. Felicidade indescritível, faz esquecer certas vicissitudes, ameniza fardos.

Sente-se tudo isso por dentro.

A coloração, o sabor característico, a fragrância de amores, ternuras, saudades, de noites confortavelmente solitárias a ler Kempowski deitado no sofá da sala.

Publicado por P. R. Cunha / 26 de fevereiro de 2023


Açude

Ele estabelece o que precisa de ser feito e o faz com dedicação — dir-se-ia — obsessiva. Coloca todas as forças (mentais & físicas) à disposição do projeto, arrisca tudo (vida matrimonial, amigos, reputações), não poupa nada, nem tempo, nem dinheiro, nem a si mesmo.

Há recompensa passageira, que é quando o livro parece escrever-se sozinho, e o autor observa aquelas palavras alienígenas a surgir numa torrente incontrolável.

Sente-se vivo, o autor.

Veículo de vontades alheias, como que possuído. Na plenitude desses recursos, sem se importar com fonte, gatilho, ou com as consequências de tais sacrifícios, todos os obstáculos desaparecem.

Até que algo acontece, mudança repentina de curso, naufrágio. As frases perdem o significado, porque grotescas, falsas, vazias, e os verbos dão ânsia de vômito.

Autor leva as mãos ao rosto e pergunta se não estaria a desperdiçar a própria vida, etc.

Publicado por P. R. Cunha / 23 de fevereiro de 2023


Sons produzidos por reflexões

Cabana. Fica a vinte e cinco quilómetros de qualquer rodovia pavimentada. Estilo Wittgenstein.

Floresta de árvores retorcidas.

Não há postes elétricos. À noite, pode-se ver a abóbada celeste. Infinitos pontos luminosos.

Era assim que ancestrais erguiam o pescoço para o firmamento? Milhões de olhos a observá-los lá de cima? Deuses vigilantes, talvez.

Os astros se misturam. Não é estrela, é Vênus.

Quando nos tornamos tão desencantados com os detalhes cósmicos? Cabeça baixa para não tropeçar. Um sol distante está prestes a explodir.

Quem liga?

Publicado por P. R. Cunha / 22 de fevereiro de 2023


Escreve

Meteras-te em confusão no trabalho? Escreve!

A moça com quem havias marcado um encontro não apareceu? Escreve!

Perderas as estribeiras no jantar de família? Escreve!

Ganhas dois mil dinheiros e gastaste quatro mil? Escreve!

Alguém disse que és um imprestável, vagabundo, preguiçoso? Escreve!

Pensamentos inescrupulosos a respeito da esposa de um amigo? Escreve!

Mamã e papá te odeiam? Escreve!

Esqueceras os pasteis de nata no forno? Escreve!

Em suma: foste atropelado pela vida?

Escreve…

Publicado por P. R. Cunha / 19 de fevereiro de 2023


Ginjais

Infinitesimal. Kazuma Okabayashi. A caneca branca com a marca do batom dela. Não te lembras? A cama ainda desarrumada. O sol que nasceu, mas ainda se esconde atrás das nuvens e das chaminés das fábricas o barulho do maquinário — ao qual já se acostumara. Garrafa de água com gás vazia sobre a escrivaninha. Há quanto tempo não entornas um copinho de licor de ginja? Ginja de Óbidos, a tua preferida de sempre, uma satisfação prazenteira que faz-te esquecer (bocadinho que seja) desta existência por vezes leve, muitas vezes nem tanto.

Publicado por P. R. Cunha / 18 de fevereiro de 2023


Máquina, descrever

É uma questão de não asfixiar a espontaneidade, porque, depois de um tempo, a empreitada torna-se «produção industrial» (ele abre e fecha aspas com indicador e dedo do meio): atingir metas, mil palavras por dia, separar algumas horas às revisões, e todo esse jazz. O gatilho da praxe é o café, que guia o cérebro àquela região misteriosa a que Tarkovsky chamara de Zona. A viagem, na falta de melhor termo, dura pouco, então precisas de aproveitar cada segundo. Trata-se de uma experiência tão reveladora, quase mística, que voltar ao mundo real é frustrante — agressivo, dir-se-ia. Certa vez, no Zoo de Birmingham, vi um cuidador tirar o bebezinho macaco dos braços da mamã macaco, e a atrocidade daquela cena é o que mais se aproxima do sentimento que me assola quando percebo que estou a sair do fluxo literário.

Publicado por P. R. Cunha / 16 de fevereiro de 2023


Planador

Papagaio-do-mar-do-atlântico, estou a observá-lo a um par de horas, a plumagem alvinegra, patas e bicos alaranjados, como se Paul Gauguin resolvesse pintar uma mistura de pinguim com tucano, ave marinha, certo desdém perante as obrigações do mundo, nada parece abalá-lo enquanto mergulha na água salgada, nem o faminto alcatraz-comum — que sobrevoa as falésias à espera de um descuido.

Publicado por P. R. Cunha / 15 de fevereiro de 2023


Visitantes

Quando estamos a ler um livro alheio, é como se a pessoa que escrevera aquelas palavras estivesse a abrir momentaneamente a própria janela para que espiássemos por dentro: percebemos alguns móveis, dois ou três quadros grudados nas paredes, a tapeçaria, o cantinho de uma biblioteca. O mesmo acontece quando alguém nos convida para jantar em casa, e muitas vezes nos contentamos em apreciar apenas algumas miudezas da sala, ou os utensílios do lavabo, mas o introvertido anfitrião não pretende nos mostrar, por exemplo, os quartos do segundo piso — ele apenas diz (ou temos de supor): há quartos no segundo piso, etc.

Publicado por P. R. Cunha / 14 de fevereiro de 2023


Letreiros

Por algum motivo, escutar sinfonias tornou-se acto de resistência, escreve Simon numa tarde de primavera — até quando chamaremos de música clássica? Mozart, o jovem rebelde de Salzburgo, teria odiado o rótulo, da mesma maneira que Ozzy Osbourne não compreenderia se chamassem o espólio dos Black Sabbath de «canções para elevador». Simon leva a chávena de café aos lábios: já tentaste sair do país sem os documentos necessários, sem as autorizações, os certificados, os comprovantes, os recibos?… Pois que os discursos de liberdade não passam de ladainhas, miragens. É como ler que, segundo a Declaração Universal dos Direitos Humanos, todas as pessoas têm direito à moradia, enquanto ao semáforo uma família sem-casa começa a montar acampamento.

Publicado por P. R. Cunha / 12 de fevereiro de 2023


Prescrições ritualísticas

Eis um trecho que poderia estar no livro que escrevo atualmente — e de facto está, com outras palavras. Sensação de inutilidade, de isolamentos (produtivos e improdutivos [a depender do dia]), uma espécie de mantra laico grudado na parede do escritório: imaginar, produzir, descrever. Inquietar-se, sem perder, como se diz, o fio da meada, etc.

Publicado por P. R. Cunha / 11 de fevereiro de 2023


Época em que as coisas ainda não tinham dado para o torto

Os antigos álbuns de fotografia — penso no nosso álbum «Férias em Cabo Frio» de 1989 — sugerem nostalgia porque, amiúde, guardavam momentos marcantes/significativos para observador & observados. Memórias seletivas em 36 poses. Levemos ainda em consideração que o rolo de filme é mais caro (em vários sentidos do termo) do que um despretensioso toque no ecrã do telemóvel: e ao escrever esta frase com certo azedume percebo o tanto que envelheci.

Publicado por P. R. Cunha / 10 de fevereiro de 2023


Etiqueta

Kuznetsov descia a escada rolante da estação de comboios e pensava no que escutara há pouco ao balcão da cafeteria um casal à esquerda a conversar sobre assuntos variados e a atendente à caixa registadora pedira a ele para inserir o cartão na máquina e aquele verbo («inserir») trouxe-lhe uma série de imagens eróticas à cabeça e enquanto Kuznetsov à guisa de bons modos tentava dissipar essas imagens o homem à esquerda disse que «cada um gera também aquilo que acontece consigo invoca-o não deixa de escapar àquilo que tem de acontecer» descia a escada rolante e pensava portanto nessa frase quando viu uma mulher distraída a sorrir para o ecrã do telemóvel e o comboio aproximava-se numa velocidade como se diz vertiginosa e Kuznetsov chegara a tempo para impedir que a mulher fosse atropelada ou pior dilacerada pelo comboio esquartejada e a mulher olhou para Kuznetsov virou-se e continuou a andar sem dizer palavra.

Publicado por P. R. Cunha / 9 de fevereiro de 2023


Sabotagem

Há alturas em que tudo parece andar bem, e o sujeito encontrara certo sossego, continuidades previsíveis, o clima é bom, a escrivaninha adequada, o trabalho flui, o corpo está saudável, mas, como Pascal bem sabia, o infortúnio do sujeito começa com a incapacidade de estar a sós consigo mesmo num quarto vazio, e por causa de circunstâncias biológicas que ainda carecem de maiores explicações algumas pessoas são sempre atraídas para o penhasco, buscam entropia, e se estiverem longe das falésias criam-nas dentro da própria cabeça — um abismo ainda mais terrível.

Publicado por P. R. Cunha / 8 de fevereiro de 2023


Ateliê

Sempre quis começar, escreve Köhler, narrativa ao modo W. G. Sebald em Vertigem, mas não esperava que em circunstância tão insólita, para não dizer perturbadora — adjetivo caro a Thomas Bernhard, escritor admirado tanto por mim quanto por Sebald.

Então, para tentar escapar a um período particularmente difícil da minha vida, meti-me num ateliê improvisado ao jardim da casa e comecei a construir uma mesa de mogno maciço. A ideia era talvez canalizar na madeira as minhas frustrações e principalmente a minha depressão: que naquela época tornara-se uma sombra difícil de ser dissipada.

Como forma de terapia indireta, imaginava uma família feliz em volta daquela mesa, todos sorririam, e falariam sobre os últimos acontecimentos, e brindariam, e reforçariam laços e coisas assim.

Dois anos depois, a minha própria família estava sentada a esta mesa cujo acabamento — vaidades à parte — mostrava-se de facto impecável quando tocaram a campainha. Sem delongas, um jovem com uniforme militar disse que o general Vogel, pai da minha esposa, meu sogro, havia morrido num trágico acidente ferroviário.

Convidamos o soldado para entrar e oferecemos uma chávena de café, a qual ele sorveu com modos mecânicos, quase como se fosse um robô programado para não reagir a estímulos mundanos. O jovem entregou-nos uma mochila com alguns pertences do general. Sem muito interesse, visto que há tempos havia cortado relações com o pai, a minha esposa largou a mochila no chão, perto das crianças.

O soldado fez vênia exagerada e comentou que o aguardavam no quartel, que precisava de partir e fomos acompanhá-lo até à porta. Ao voltarmos para a mesa, Babette, a nossa caçula, estava com um chapéu militar na pequena cabecinha, o quepe do velho Vogel que, diga-se a propósito, matou/assassinou mais de três dezenas de seres humanos em ocasiões variadas.

Publicado por P. R. Cunha / 5 de fevereiro de 2023


Era uma vez

Era uma vez um escritor que de tanto escrever acabara com a tinta de todas as canetas que possuía e para não perder como se diz o fio da meada fizera um pequeno corte na ponta do dedo indicador e prosseguira com o próprio sangue.

Moral da história: quando todos os dardos foram perdidos, jogue-se a si mesmo ao alvo.

Publicado por P. R. Cunha / 4 de fevereiro de 2023


Pastilhas contra o nervosismo

Há muito espaço — a lua e o planeta não estão assim tão próximos.

Nos últimos casamentos aos quais Hannah compareceu, sempre uma espécie de padrão: a fisionomia da noiva, como que desesperada, a perguntar-se: o que diabos estou a fazer da minha vida?

Temperamentos, astigmatismo, cair de bicicleta, o relógio cuco da vovó que metia medo, baterias viciadas de telemóveis viciados, shots de tequila, a cor roxa do Campari, ansiolíticos, cartas para responder, guitarra verde, kit viagem, o sol parecia uma bola de tênis que os miúdos mergulharam em álcool e acenderam com fósforo para brincar de «batata quente», ir ao posto de gasolina, comprar miudezas e nunca mais voltar.

Publicado por P. R. Cunha / 3 de fevereiro de 2023


Anonimatos

Dentro do coração —
tempestade de neve
Lá fora
brilha o sol
escaldante.


Por vezes, estar-se tão isolado que não se reconhece nada além das fronteiras da própria fantasia (artificial, como todas as fantasias). Ao defender-se com barreiras reais (i.e., as paredes de um quarto) e imaginárias (i.e., cadernos de literatura), cria-se cosmologia à parte — onde as leis de física não operam do jeito que toda a gente espera.

De aí tu não seres notado no meio da multidão, porque é como se não estivesses lá.

Depois de alguns dias sem escrever, tuas inquietações ganham ares de angústia (não a angústia de Sartre, nem a de Heidegger, mas a angústia de Kierkegaard [«aquela ameaça imprecisa e indeterminada inerente à condição humana, pelo facto de que o sujeito, ao projetar incessantemente o futuro, defronta-se com possibilidade de fracasso, sofrimento e, no limite, a morte»]).

Lembra-te.

Qualquer segurança que tu tenhas será sempre ilusória e passageira. Sabes direitinho que foste condenado à errância, ao imprevisível, ao efêmero. Não tens pátria, nem casa.

Publicado por P. R. Cunha / 2 de fevereiro de 2023


Fazendeiro que se ajoelhasse diante da colheita devastada

Hoje de manhã passou um veículo pesado a levar árvores na carroceria. Fiquei a observar aquelas mudas que cresceram em algum terreno fértil e agora estavam a ser transportadas alhures — para um jardim residencial?, área verde de um shopping mall?, praça arborizada? Sabe-se que as plantas têm essa invejável capacidade de se adaptar a vários tipos de terra, mas algumas podem não se sentir em casa em determinados solos: definham, tornam-se infrutíferas. Nesses casos, como diria um amigo meu que é biólogo e entende do assunto, «nesses casos, é preciso de ter paciência, ou lamentar a morte da árvore».

Publicado por P. R. Cunha / 30 de janeiro de 2023


Remorsos

Algumas (poucas) pessoas estarão ao teu lado — mas terás de tomar as decisões por ti mesmo. E quase de certeza tomarás decisões equivocadas, ou «pouco adequadas», porque quando escolhes uma trilha, deixas de escolher infinitas outras trilhas, infinitas possibilidades que não foram, e acabas invariavelmente a analisar esses caminhos alheios com uma consciência idealizadora, seletiva: com olhos mágicos, digamos assim.

Publicado por P. R. Cunha / 28 de janeiro de 2023


Aproximar-se das labaredas com destreza

Esta sensação de estar levemente embriagado, incapaz de me aprofundar no trabalho literário, falésias insondáveis por todos os lados — um cão que farejasse e tentasse reconhecer uma rua na qual nunca esteve.

Diz-se que o sol nasce e morre no horizonte. O dia: microvida.

Publicado por P. R. Cunha / 27 de janeiro de 2023


Itinerário

Apenas esquecimento
um cansaço passageiro
quarto arrumado
nova mesa de trabalho
busca de outros objetos
— a escrita consoladora
fica para amanhã.

Publicado por P. R. Cunha / 26 de janeiro de 2023


Obsoleto

Se olhares retrospectivamente, tudo parecerá inevitável. Era óbvio que morreria num desastre de automóvel, sempre afoito no trânsito; não à toa Ximena fracassara, vivia distraída; aquele ali perdeu os botões porque se aventurou ao abismo. Passado simplificado, quando na época havia dúvidas, incertezas, complexidades, havia caos, corações arrependidos, pensamentos sombrios.

Publicado por P. R. Cunha / 25 de janeiro de 2023


Semicírculos

O cérebro — este órgão gelatinoso responsável por 20% do consumo total de oxigênio do corpo humano, máquina de reconhecer padrões, sempre a buscar significados, casa de neurotransmissores que tentam construir a narrativa mais completa possível mesmo diante de uma perturbadora escassez de informação.

Por vezes, bate-se a cabeça e o cérebro chacoalha no líquido cefalorraquidiano.

Dói.

Para cada escritor bem-sucedido, há milhares de outros que sequer conseguiram ser publicados, pessoas munidas de bloquinhos e caneta que perambulam no meio de nenhures, como fantasmas invisíveis à procura de luz.

Publicado por P. R. Cunha / 24 de janeiro de 2023


Interromper-se

O sujeito está numa rodovia escura a dirigir o próprio Nissan Tiida. O relógio digital do painel mostra que são 2:25 da madrugada. Ele decide encostar o automóvel na berma. Os pneus passam por cima de pedras, areia, galhos partidos, folhas secas e param. O sujeito abre a porta e olha para o céu com infinitos pontos luminosos: tudo o que ele vê é ausência, silêncio.

Bebê também estava em silêncio dentro da barriga da mãe. Médico o arranca do conforto do ventre e, compreensivelmente, é homenageado com berros altos e lágrimas. Bebê não pediu para sair.

Publicado por P. R. Cunha / 23 de janeiro de 2023


Não se contrói prédio (decente) em dois dias ou terreno de areia à beira-rio

Quando chegava de uma viagem dessas, sentava sozinho no quarto, lia qualquer coisa, tomava um café, ficava satisfeito.

Tens sempre um caderninho e uma caneta no bolso. Aprendeste a andar com esses pequenos utensílios independentemente de ocasião/circunstância/destino/&tc. Alguém que olhasse para o teu bolso e perguntasse: o que levas aí dentro? Tu respondes: meu material de trabalho.

Ora, caderninho e caneta deitam-se em qualquer superfície (até mesmo na palma da tua mão), de forma que podes escrever em toda a parte — não há desculpa, ainda mais depois que adquiriste uns protetores auriculares eficazes.

Publicado por P. R. Cunha / 22 de janeiro de 2023


Sapo canta sobre a pedra do jardim

Por vezes chegamos a determinados sítios, olhamos para os lados, há montanhas tomadas pela floresta, um céu azul preenchido por nuvens rechonchudas, pássaros que sobrevoam os rios, o vento balança os cabelos e o sujeito se pergunta: estou a sonhar, isto é real?

Nenhum ser humano num raio de quê?, cinco, dez, vinte quilômetros… E numa altura escutamos as cigarras, ou o barulho do nosso coração.

Na cidade: todos os disfarces possíveis e imagináveis. Aqui: nenhum disfarce — máscaras caem.

As árvores dançam todas juntas, e os galhos cantam hinos de indignação.

Na floresta, obedece-se.

Silêncio, horizonte desimpedido, tudo como deve ter sido há séculos. Um filme passa pela minha cabeça: alguns livros publicados, um par de reconhecimentos literários, cada passo até ao, como se diz, «descanso derradeiro». Depois, desaparecem os livros, os prêmios, os jantares artísticos…, eu.

Este sítio não será assim tão tranquilo daqui a alguns anos. A balbúrdia sempre arruma um jeito.

Parte significativa da minha consciência diz que escrever não leva mesmo a nada, certa inutilidade neste ato de colocar pensamentos no papel; enquanto outra parte da minha consciência (igualmente significativa) diz que isto é a única coisa que sei fazer, que se não fosse pela escrita eu não teria motivo para me levantar de manhã, etc.

O andarilho com o próprio cajado, mais três cães (Chicotó, Luva e Leônidas), desbravam a mata fechada como um Fitzcarraldo sem norte, o barulho do rio, a cachoeira, a queda d’água, e toda a insignificância, o disparate, o efêmero — experiência reveladora em tantos níveis.

À noite, o canto arrastado dos insetos. Incontáveis pontos luminosos no céu, manta cósmica. As estrelas também não dão a mínima.

Uns fragmentos de paisagens que têm interesse para quem esteve lá, mas talvez algo minúsculo e monótono para quem apenas lê tais fragmentos.

Nem toda a gente partilha o mesmo entusiasmo.

De manhãzinha, pingos de chuva tamborilam o telhado da casa. Um sapo canta sobre a pedra do jardim, como se dissesse: já é hora de regressar.

Publicado por P. R. Cunha / 19 de janeiro de 2023


Privações voluntárias

Meio a brincar e meio a sério, o escritor disse que só cortaria o cabelo depois que terminasse o manuscrito no qual estava trabalhando. Como o cabelo dele não parava de crescer — chegara, inclusive, a um «comprimento inaceitável» (segundo os parâmetros da própria noiva) —, muitos passaram a acreditar que ele nunca terminaria a obra, enquanto outros, mais maliciosos, alimentavam rumores sobre uma possível desistência do escritor: não só do livro, mas também de toda a sorte de literaturas.

Publicado por P. R. Cunha / 16 de janeiro de 2023


Panorama

Perto da casa da minha infância — na qual mamãe ainda mora — há um parque com longa trilha que leva até ao lago. Durante o trajeto, o andarilho não precisa de pensar em nada, e as pernas como que se movimentam sozinhas. Dentro do parque há também um mirante, de onde avistam-se os prédios do centro da cidade, a ponte, a torre de televisão e, se virarmos para o sul, a varanda do quarto da minha mãe (por vezes com a diminuta figura dela à balaustrada, contemplando). A sensação que se tem é de que tudo ficará melhor: não perfeito, nem ideal, simplesmente melhor.

Publicado por P. R. Cunha / 15 de janeiro de 2023


Uma nuvem relacionada a outras nuvens (nefologia amadora [ou pequenas alterações podem levar a grandes consequências])

Sentar-me à mesa para refletir sobre os sofrimentos do mundo, ler Nietzsche, Cioran, o próprio Schopenhauer, mas também olhar pela janela e perceber um dia agradável e soalheiro. Se muito do mundo é representação elaborada pelo sistema cognitivo, faz-se necessário tomar os devidos cuidados na hora de abastecer esse sistema. Noutros termos: preocuparmo-nos não apenas com a dieta alimentar, mas também com os pratos de informação que consumimos diariamente.

Publicado por P. R. Cunha / 14 de janeiro de 2023


Monólogos interiores

A primeira palavra desenhada no papel, a frase que se segue, pensamentos abstratos que se tornam legíveis — processo que produz estado de êxtase de enorme intensidade —, a caneta avança depressa, como os dedos de um adolescente necromante sobre o tabuleiro ouija, cada átomo do teu corpo está envolvido nesta inextricável e enigmática atividade: é isto o que estás a ver acontecer.

Publicado por P. R. Cunha / 12 de janeiro de 2023


Panorama

Quão maravilhosa deve ser a vida de escritor — ele diz —, pelo menos se tirarmos as neuroses, as ansiedades, os distúrbios, as perturbações, os abandonos, as fobias, os envenenamentos, as vulnerabilidades…

Quando o próprio local de trabalho passa a ser classificado como um sítio inseguro:

«A minha escrivaninha está a afundar-se.»

Mas estou aqui pelo silêncio (o que sobrou dele).

Publicado por P. R. Cunha / 11 de janeiro de 2023


Ocasiões

Na minha juventude, eu jogava futebol praticamente todos os dias, depois voltava para casa e tocava bateria. Era esse o ciclo. Até que aos 16/17 anos descobri a escrita. Eu já havia lido algumas coisas de Poe, Lovecraft, Kafka, Púchkin, mas nada se comparava com aquilo, com o ato de preencher folhas em branco, exorcizar as próprias ideias. Eu pensei: isto aqui é mágico, alienígena, por que cargas demorei tanto, etc. etc. Mais tarde, já nos meus anos 20, tive a mesma sensação ao experimentar cogumelos. Lembro-me de ter olhado para uma amiga e dizer: «É como escrever literatura, parecidíssimo».

Publicado por P. R. Cunha / 10 de janeiro de 2023


Submerso

Não se sabe a verdadeira profundidade das águas escuras sobre as quais o mundo sorridente flutua — mundo de pedras e desertos, mísero átomo diante de um cosmos que está a expandir-se muito depressa.

Sebastián passa boa parte do dia sentado em uma poltrona estilo Kubrick-A-Clockwork-Orange-1972 no centro de um apartamento praticamente vazio. Fuma o cachimbo, serenamente desapegado, medita, não raro tira do bolso um pequeno caderno e toma notas:

A construção e a desconstrução de um outro ser humano depende daquele que está a observá-lo. Amamos ou odiamos de acordo com um conjunto arbitrário de regras que fabricamos, que estabelecemos.

Sebastián hesita, leva a mão esquerda à têmpora: de aí ser tão «agressivo» para o observador quando a outra pessoa resolve participar da equação caleidoscópica, e se mostra alguém completamente diferente de quem acreditávamos que fosse.

Publicado por P. R. Cunha / 9 de janeiro de 2023


Contradições elétricas

A chuva
o frio —
solidão


Escrever à máquina: mais que um método anacrônico, uma resistência.

Alguém diz: livro de papel, livro eletrônico, qual a diferença?, são palavras, o conteúdo é o mesmo.

Uma pessoa que se levanta cedo, está a se preparar para o dia, toma café na caneca favorita (presente, digamos, da filha, ou do cônjuge, ou talvez herança de um ente querido), experiência significativa. Agora, estás deitado no leito de um hospital, uma enfermeira injeta café na tua veia, ou talvez diretamente na boca, o tubo plástico encosta nos teus lábios, a luz branca do quarto causa-te náuseas.

Café.

O conteúdo é o mesmo, certo?

Publicado por P. R. Cunha / 8 de janeiro de 2023


Valsa à eternidade

O propósito, a razão, o significado de escrever é continuar escrevendo.

Como uma memória que nunca existiu, um fantasma que te envolve, e não te assusta, nunca fala alto — está sempre lá.

ESCRITOR (es-cri-tor [três sílabas, oito letras]):

Alguém que passa anos isolado, a praticar em segredo exercícios mentais de autotransformação e, por meio dessas técnicas, desenvolve extraordinário controle sobre a caneta.

Formas de vida baseadas em carbono / monólito.

Em outros termos: a escrita é algo que não desaparece, mesmo quando deixamos de pensar nela.

Scott Fitzgerald, Virginia Woolf, Hemingway, Philip K. Dick, Kerouac, Sylvia Plath, Lovecraft, Poe…

Às vezes, enlouquecer é resposta apropriada à literatura.

Publicado por P. R. Cunha / 7 de janeiro de 2023


Na meninice: viagens ao Rio de Janeiro; na velhice: tempestades em Brasília; no meio: todo o resto

Onde estão os limites da minha ilusão?

Um escritor que almejasse curar corpos e «almas» doentes.

As ondas
o cair da neve —
vento paralisado


Sonhei que estava dentro de um automóvel e caíamos de uma ribanceira. A queda parecia durar uma pequena eternidade. Vestígios da morte do meu pai? Possivelmente.

Todos os corações parecem felizes. Ao longe, um cachorro late (mas não me incomoda).

Publicado por P. R. Cunha / 6 de janeiro de 2023


Núpcias

Escrever como se fosse a primeira vez — grande desafio.

A rotina subtrai supérfluos, mas também embrutece, negligencia.

Um miúdo a quem ainda não ensinaram nada, e tudo o que ele sabe é aquilo que sente, sem conceitos estabelecidos, sem nomenclaturas, sem rótulos.

Criar coisas e deixá-las desaparecer. Depois, lamentar-se por não ter sido mais amável com elas.

Ir embora enquanto o mundo todo ainda se mostra aberto para as fugas.

A cadeira é a mesma, os livros em redor são os mesmos, a escrivaninha é a mesma, o escritor não é o mesmo.

Como é fácil uma rotina dessas desmantelar-se. Mas aqui não é proibido brincar nas ruínas.

De longe um clarão
como uma biblioteca ardendo

Publicado por P. R. Cunha / 5 de janeiro de 2023


Geometria euclidiana

Sabe-se que o comportamento de um escritor sobre a folha em branco sugere possibilidades sem fim. Cada escolha, cada vírgula, cada ponto…, tudo acarretará em outras escolhas, outras vírgulas, outros pontos, ad infinitum. E isto é verdadeiro — construir mundos não é assim tão simples quanto parece. No entanto, o que a atividade exige não é necessariamente uma escrita total, mas antes um tipo específico de síntese, uma redução aos elementos mais importantes daquilo que se quer contar. Assim, a caneta que se expande, e se retrai, e se bifurca em todas as direções, pode ser reduzida a um plano finito.

Publicado por P. R. Cunha / 4 de janeiro de 2023


Ouvidos internos — depois da tempestade, vêm outras tempestades

Início de ano. Digo a mim mesmo para tirar umas férias: trabalhaste demais, descansa. Vinte e quatro horas depois, lá estou eu angustiado atrás de papel e caneta para conter as vozes que transbordam a minha cabeça.

Coruja: símbolo de sabedoria, guardiã da Acrópole. Mito provavelmente inspirado pelos olhos grandes e pela aparência solene dessas rapinas nocturnas.

Sobre a minha mesa de trabalho há uma corujinha de pedra — chama-se Orwell. Está sentada perto dos livros do Kempowski com uma expressão severa, olhar fixo, inquisidora.

Uns olhos vidrados do tipo que encontramos, segundo Sebald, em determinados pintores e filósofos que, com recurso apenas à pura observação e ao puro pensamento, procuram penetrar nas trevas que nos cercam.

As corujas de verdade são feitas de penas, farta plumagem, asas longas, ossos adaptados ao voo, átomos, moléculas, e, assim com os seres humanos, espaços vazios.

Publicado por P. R. Cunha / 3 de janeiro de 2023


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