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Desolações
«Escrevo esta história sob uma pressão mental considerável, uma vez que hoje à noite me apago», você sempre achou esse início do conto Dagon uma das frases mais impactantes não só da obra de Lovecraft, como de toda a literatura mundial. Protagonista sem dinheiro, o estoque de morfina (que torna a vida minimamente suportável) próximo do fim, ele não aguenta tamanha tortura. Quando lerem estas páginas rabiscadas às pressas, Lovecraft prossegue, poderão entender, ainda que não por completo, a minha ânsia pelo esquecimento ou pela morte. Você tem a impressão de que se esses trechos fossem frutos das penas de um Victor Hugo, Dumas ou de um Dickens, receberiam outro tipo de acolhimento. No entanto, quem os anotou foi um sujeito tímido de Boston que lutava contra ansiedades severas, depressão, fobia social, terrores noturnos e que fitou os olhos vermelhos do desespero mais do que poderia fazê-lo.
Publicado por P. R. Cunha / 26 de dezembro de 2025
Atlântico
Entre altos e baixos, idas e vindas, a sua trajetória literária, como naqueles fractais gerados por equações não-lineares, começa a apresentar padrões, partes repetem o todo: escritor falhado que depois de receber prêmio em Portugal passa a ser visto como um tipo excêntrico com algum talento cognitivo para construir personagens inquietos, ou proto-poeta-capaz-de-compartilhar-desconfortos, embora apenas em monólogos delirantes.
Publicado por P. R. Cunha / 24 de dezembro de 2025
Distraído
Alimentar ambições literárias é também conviver com melancolia e amarguras, de forma que você também procura se dedicar a outras atividades. Você tira fotografias em festas de casamento, toca bateria numa banda noturna, compõe trilhas sonoras para documentários independentes, traduz filmes húngaros, diagrama cartazes para agências publicitárias. Remanejamento temporário de foco. Mas quando tudo parece pesado e sem sentido, quando você precisa mesmo lidar com os próprios fantasmas, entrega-se novamente com todas as forças à escrita, à filosofia, às reflexões anestésicas.
Publicado por P. R. Cunha / 23 de dezembro de 2025
Espaço/vazio
Você é scuba diving existencialista
mergulha em si mesmo
até às trincheiras mais profundas
onde a luz é rarefeita
monstros marinhos vagueiam
imperturbáveis
no abismo subaquático
você experimenta
retirar o aparelho de respiração
— só para ver o que acontece.
Publicado por P. R. Cunha / 20 de dezembro de 2025
Tenebroso
Você vai ao consultório oftalmológico, a médica aponta lanterna azulada para dentro dos seus olhos, pressão intraocular, ângulo entre a íris e a córnea, a forma, a cor, a integridade do nervo óptico, retina, visão central, visão periférica. A oftalmologista de súbito muda de postura, para de sorrir, fica tensa, preocupada, «tem histórico de glaucoma na família, certo?», você faz que sim com a cabeça, «vamos marcar exames mais meticulosos», ela sugere, daí você sai do consultório com um incontrolável sentimento de urgência, quer ler e escrever o máximo que puder antes que o glaucoma lhe cegue, assim como fizera com o seu avô.
Publicado por P. R. Cunha / 19 de dezembro de 2025
Convenções
Alguns ainda colocam escritores no pedestal — você diz para uma plateia de oito num auditório com capacidade para 350 pessoas —, preferem acreditar que os ídolos literários nunca passaram por privações, nunca foram humilhados, semideuses intocáveis escondidos na torre de marfim. Cervantes…, você continua, Cervantes, que pode ser considerado o primeiro romancista moderno, queixava-se imenso da própria aparência, era ridicularizado por ter um quadril torto, andava esquisito. Dostoiévski era uma criança feia, nas palavras do próprio irmão do escritor. Lima Barreto foi estigmatizado e internado num hospício porque bebia demais. Nas memórias avulsas de Novalis, uma adolescência repleta de vergonhas, desilusões, fracassos grotescos. (Aqui você toma um gole de água, pigarro invisível na garganta.) Pavese hospedado num hotel barato em Turim telefona desesperadamente para as mulheres que o rejeitaram, quer sair do quarto, ele implora, respirar um pouco, e depois de ouvir de cada uma delas o mesmo «não» de sempre, o autor de Trabalhar cansa engole todos os comprimidos do pote de barbitúricos para nunca mais acordar.
Publicado por P. R. Cunha / 18 de dezembro de 2025
O mar salgado cicatriza feridas sinistras
Escrever é edificante, prazeroso, você comenta, mas às vezes também pode se mostrar uma atividade deveras ardilosa, «batalha de exaustão mental e física», como diria um russo. Quando você percebe os primeiros sinais de esgotamento, larga o manuscrito de lado e se desloca numa aeronave à costa oceânica. Dias de descompressão sob o sol tropical, deitado na areia, até que onda furiosa lhe devolve um ímpeto qualquer. Dali a pouco, você tira o bloco-notas da mochila e faz as pazes com os substantivos.
Publicado por P. R. Cunha / 17 de dezembro de 2025
Tanque ornamental em jardim
Não é a versão filho amoroso, irmão prestativo, músico prudente, atleta esforçado, muito menos a de desenhista, cozinheiro de fim de semana; a versão de si mesmo que você sempre gostou mais é a do escritor alienado, imprevisível, escritor que levanta castelos imaginários, que foge às falésias do absurdo, faz votos de silêncio, passa horas a traduzir os próprios pensamentos numa folha retangular que logo se afunda num lago de tinta azul, tinta triste, introspectiva, libertadora, revigorante.
Publicado por P. R. Cunha / 16 de dezembro de 2025
Meridianos magnéticos
Manhã nublada. A janela está aberta e a chuva entra no seu escritório. Você não se importa. Você reflete sobre a melhor maneira de encarar alguns traumas do passado. Como fazê-lo sem cair em divagações vazias, discursos repetitivos, ou mesmo sem que as memórias se assustem e saltem para outros tempos? Você é o capitão deste navio-fantasma, que não sabe ao certo para onde navegar.
Publicado por P. R. Cunha / 15 de dezembro de 2025
As terras intrépidas do nosso interior
Sem dúvida estou agora, em certo sentido, louco — você escreve no Moleskine com páginas pautadas —, embora a loucura, como sabemos, seja mera questão de perspectiva. Se cavamos um buraco na nossa alma, você acrescenta, e continuamos a perfurá-la diariamente, quem não encontraria ali um poço artesiano a transbordar de insanidades?
Publicado por P. R. Cunha / 14 de dezembro de 2025
Disparos
Não lhe parece arbitrário que filósofos cometam suicídio com tiro na cabeça enquanto poetas escolhem o coração como alvo — geralmente queremos calar aquilo que nos dói mais, você diz consigo mesmo.
Publicado por P. R. Cunha / 12 de dezembro de 2025
Intuito
Quando você sai para correr num parque perto da sua casa costuma encontrar o mesmo senhor com trajes esportivos da marca Adidas. Ambos acenam mutuamente com a cabeça, como num acordo tácito entre dois cavalheiros com bons modos mas que preferem ser deixados em paz. O senhor Adidas então para diante do lago e fica ali observando as capivaras que andam de lá para cá. Os propósitos tanto do senhor trajado de Adidas quanto das capivaras lhe escapam.
Publicado por P. R. Cunha / 11 de dezembro de 2025
Movimentos alternados
A liberdade que se manifesta quando você se desvencilha das expectativas/projeções atormentadoras, quando finalmente para de se debater feito um lunático e deixa-se levar pelo fluxo de águas tranquilas — é mesmo qualquer coisa de indescritível.
Publicado por P. R. Cunha / 10 de dezembro de 2025
Degelo
Se tem algo que você aprendeu direitinho nas suas ardilosas jornadas entre seres humanos é que a ausência de sinal é, se calhar, o sinal mais gritante de todos.
Publicado por P. R. Cunha / 9 de dezembro de 2025
Semblante
Alguns pensamentos lhe metem medo — são como florestas densas, bosques repletos de sombras. Algo ali dentro lhe chama para dar um passeio, o seu coração como que se retrai. Um vulto aparece. A despeito do terror, você se aproxima com uma curiosidade quase infantil e pergunta: quem és? No entanto, em vez de resposta, este silêncio sepulcral.
Publicado por P. R. Cunha / 8 de dezembro de 2025
Olhares vazios
A sua inclinação à fantasia, esta capacidade imaginativa que lhe agrada imenso, capaz de levá-lo a um maravilhoso estado de ausência, imobilidade atemporal, mas que também pode distanciá-lo tanto da «realidade» (aquela que se compartilha com os outros) que você se torna uma espécie de alienado esclarecido, cultiva ruminações desproporcionais, tropeça, exagera, negligencia, mete-se em ruas sem saída.
Publicado por P. R. Cunha / 7 de dezembro de 2025
Parcelas
Você acredita que as ideias são infinitas — no sentido cosmológico do termo: incontáveis arranjos, possibilidades, combinações. Universo observável possui fronteira, além da qual cientistas acreditam haver outros milhares de galáxias, estrelas, planetas, luas, asteroides, escritores, leitores. Mas mesmo esse limite já se mostra inatingível, nunca chegaremos nem perto dali. O consolo é que aquilo que você consegue enxergar dentro desta bolha cósmica é material mais do que suficiente para manter um curioso satisfeitíssimo durante bilhões de anos.
Publicado por P. R. Cunha / 6 de dezembro de 2025
Cautelas
Você possui modos serenos, leva uma existência lícita, tranquila, sem buscar o reconhecimento coletivo. Algumas pessoas já disseram que você é melancólico, metódico, obsessivo, hiperativo (no sentido clínico). Você tende a concordar com essas pessoas, embora a opinião alheia não lhe cause qualquer tipo de inquietação. Sou como sou, você pensa quando, no fim do dia, chega ao apartamento quarto e sala, coloca para tocar Walking to the Moon, de Waldo Schmidt & Christian LaVerne, sentado na poltrona de leitura, segurando o livro do Claudio Magris. Fora um par de cenas como essas (lugares-comuns na vida de qualquer sujeito que escreve), em parte alguma ficam a saber sobre a sua vida verdadeiramente privada, sobre suas dores, motivações, anseios. Para todos os efeitos, você é um ser humano invisível.
Publicado por P. R. Cunha / 5 de dezembro de 2025
Entre dois pontos
Você pratica a corrida, a sua cabeça se encontra numa outra dimensão. Você está convencido de que nada interromperá esse sossego conquistado a tanto custo. Para si, correr é isto: desligar-se. Confiante, você abaixa um pouco a guarda, deixa de policiar os próprios pensamentos. Mas é o balanço curioso dos galhos de uma árvore imensa, ou a murmuração de aves que parecem voar a nenhures, ou o inseto desengonçado que atravessa a rua ladeirenta e dali a pouco o seu cérebro está aceso novamente, começa a ter infinitas ideias, as narrativas surgem sem esforço, tudo estruturado — você só precisaria de tomar notas, mas decide não tomá-las, hoje não.
Publicado por P. R. Cunha / 4 de dezembro de 2025
Constrangimento
O paradoxo é o seguinte: você se sente muito agradado consigo mesmo quando elogiam as coisas que você escreve, no entanto, não sabe como agir, o elogio de alguma maneira o intimida. E quanto mais você pensa nisso, menos entende.
Publicado por P. R. Cunha / 3 de dezembro de 2025
Pulmões
E, então, como se você trocasse um casaco que já não aquecia mais, algo se desprende de si e o liberta.
Publicado por P. R. Cunha / 2 de dezembro de 2025
Ristretto
Você conversa com outras pessoas à mesa da cafeteria. É lá uma conversa leve, absolutamente informal. Numa certa altura, um bocadinho distraído, você fala qualquer coisa sem nexo — nada de muito grave, apenas uma frase desengonçada que não se encaixava na pauta. Mas aquilo lhe inquieta sobremaneira. Você agora não age de forma espontânea. Você mede as palavras, as pausas, as respirações, torna-se uma espécie de autômato, não consegue manter o sorriso protocolar, confunde adjetivos com substantivos, outro fracasso social, outra tentativa frustrada de convivência. À noite, enquanto o sono não chega, você pensa se não haveria algum jeito de reverter a entropia, reparar aquela situação que se tornara insustentável.
Publicado por P. R. Cunha / 1º de dezembro de 2025
Cachoeira
A sua vida ultimamente se resume a isto: você está sentado num caiaque a descer correnteza na direção de enorme queda d’água; você não tem os remos.
Publicado por P. R. Cunha / 30 de novembro de 2025
Competidores
Você gostava de coisas pelas quais hoje em dia já não se interessa. À guisa de exemplo: apaixonar-se. Em outros tempos era bom se apaixonar, cultivar aquelas aflições que corroíam as suas entranhas — será que ela pensa igual, será que ela sente igual, será que ela se entregaria igual? Você acompanhava os dias serem dilacerados por essas expectativas sem ceder ao desespero. Eventualmente, os vossos caminhos se alinhavam e tudo, como se diz, dava ao certo, mesmo que de forma passageira. Então o jogo recomeçava: outra pessoa, as mesmas dúvidas, as mesmas feridas, etc.
Publicado por P. R. Cunha / 29 de novembro de 2025
Ondas sísmicas
Você reconhece padrões. Os motivos não costumam fugir muito de determinada órbita: coração partido que insiste em magoar, decepções de toda a sorte, hostilidades, indiferenças, valores incompatíveis, desprezo, materialismo sufocante, quando o protocolar «tenha calma que isto passa» não serve mais de consolo temporário. Muralha que há anos estava a ser construída internamente. A pessoa se cansa, não quer riquezas, nem acumular, guarda poucos pertences, sem ambições, precisa estar longe. De aí que a muralha finalizada agora protege uma cabana simbólica — o esconderijo, o refúgio no qual é possível desfrutar de uma paz que seria inimaginável no chamado «mundo exterior». Você valoriza a muralha.
Publicado por P. R. Cunha / 25 de novembro de 2025
Aparências
Você se observa no espelho e sabe que está diante de um dos maiores clichês da literatura: falar sobre o próprio reflexo. Você fecha os olhos, esfrega-os, abre-os, e lá está novamente aquela imagem invertida. Você pergunta: a minha vida foi uma de muitos fracassos?, posso considerá-la agradável?, sou um pessimista?, um niilista?, otimista? É noite. Você apaga a luz do banheiro, o seu rosto ainda está marcado no interior das pálpebras — contornos indefinidos que nada sugerem, expressão paralisada, tipo máscara de morte oriental.
Publicado por P. R. Cunha / 23 de novembro de 2025
Sigiloso
Você joga xadrez sozinho, às vezes com os robôs do sítio web chess.com. Você sabe que no fim das contas é disso que precisa: alguma coisa com a qual se entusiasmar. Mas você também se perde, o xadrez se transforma numa obsessão, você passa horas e horas diante do tabuleiro elétrico, a manhã inteira, toda a tarde, até à madrugada. Existe nesse jogo algo que o inquieta, ou antes, algo que o perturba. Decapitar o adversário sem sangue, os corpos das vítimas que logo desaparecem do campo de batalha, personagens descartadas num cemitério de sepulturas coletivas. Você protege, constrói, destrói, ataca, traça planos, falha, fere, é ferido. E cada movimento adquire um significado quase comovente — como aquela solidão irremediável do rei encurralado, que grita, implora por ajuda, mas já ninguém o responde.
Publicado por P. R. Cunha / 22 de novembro de 2025
Frigorífico
Você tenta cortar supérfluos, evita toda a sorte de complexidades sobre as quais não tem controle, importa-lhe apenas focar naquilo que pode ter alguma influência direta. Sabe que quando fica muito tempo sem fazer as coisas que lhe agradam você contrai doenças e torna-se insuportável. Sabe igual que os dias nunca são os mesmos — alguns têm a cor da melancolia, outros oferecem um céu radiante, há os dias solitários, os dias de tirar o fôlego, dias em que os pássaros cantam e dias em que os trovões choram lágrimas congeladas.
Publicado por P. R. Cunha / 17 de novembro de 2025
Errante
Você adotou um ritual pré-escrita peculiar. Que o clima esteja ameno, que chova ou faça sol, que o vizinho esteja a fazer reformas ou a viajar para o estrangeiro, ventos, tempestades, crianças brincam no parquinho, senhoras idosas voltam das feiras com sacolinhas verdes, e você prepara o café, adoça com leite condensado (herança de uma ex-namorada [que de vez em quando ainda liga para saber se tudo bem]), você separa duas bolachas de chocolate, água com gás, bolo de laranja, acende a luminária da escrivaninha, e daí em diante nada conseguiria atingi-lo, você se sente, com certa razão, o dono de um pequeno planeta que fora ejetado de sistema solar longínquo.
Publicado por P. R. Cunha / 16 de novembro de 2025
Precipício
A sua família costuma utilizá-lo como arquétipo do desperdício de talento. Você está deitado na rede da varanda com uns livros russos no colo e cochicham: tão capaz, podia mudar o mundo, mas só quer saber de ler. Não é de hoje que você sabe que o seu tempo já passou — para os esportes ginásticos, para a carreira acadêmica, para a diplomacia, para a música, para os desenhos, tudo o que você poderia ter sido e não foi (ou foi apenas parcialmente). Mas isso não o perturba. O seu declínio desaba de mãos dadas com a ética de não se curvar a ninguém, até à morte.
Publicado por P. R. Cunha / 15 de novembro de 2025
Insetos holometábolos
Você se senta no terraço de um café, como que disfarçado, mais parecido com estátua de bronze do que com uma figura humana. Há muito que você não tem interesse pela continuidade. A vida nunca foi uma reta, você costuma pronunciar com melancolia resignada, a vida é um caos pautado pela borboleta de Edward Lorenz.
Publicado por P. R. Cunha / 14 de novembro de 2025
Auscultadores
Na escola, você aprendeu a falar, mas ninguém lhe ensinou sobre o silêncio. Diziam assim: tem que saber se posicionar, ter ponto de vista, emitir opinião, argumentos. A boca como que se mexia a tempo inteiro. Você chegava em casa, abria um livro, e de início achava aquela ausência estranha. Mas algo dentro de si insistia. Já na adolescência, pediu um fone silenciador de ruídos de aniversário.
Publicado por P. R. Cunha / 13 de novembro de 2025
Cardíaco
Você cultiva um apreço infinito pela solidão. Não tem nada, especificamente, contra os humanos — que lhe parecem mais enfeites num jardim de inverno, adornos na capa de um livro medieval. Você apenas gosta de estar com os próprios pensamentos, analisá-los, reformulá-los, questioná-los. Você se sente confortável à mesa de trabalho, ao escrever com a própria lapiseira, o som da grafite acinzentada a riscar a folha de papel, quase confundível com os batimentos do seu coração.
Publicado por P. R. Cunha / 12 de novembro de 2025
Recintos
Você só pode falar dos lugares que costuma frequentar: livrarias e cafés, basicamente. Você encontra Fulana num café, surpreende Sicrano a folhear qualquer coisa numa livraria. E é isto. Você conseguiria descrever esses ambientes com pormenores obsessivos. A madeira utilizada no balcão de determinada cafeteria, o acabamento de tal prateleira que segura o peso das obras de Calvino, os motivos geométricos dos tapetes que lembram os filmes dirigidos pelo Kubrick. Analisa todos os pequenos detalhes com ar de perito. Mas, no fim do dia, ao refugiar-se no silêncio, você encolhe os ombros e se pergunta se algum outro ser humano também se interessaria por essas miudezas insignificantes.
Publicado por P. R. Cunha / 11 de novembro de 2025
Iluminados
Você fica muito tempo a olhar para o semáforo. As mudanças cromáticas: ora é vermelho, ora é verde, dali o amarelo para chamar a atenção. Isso tudo o fascina. As pessoas em redor deveriam achá-lo louco, maníaco, talvez até um assassino em série à espera da próxima vítima, psicopata, mas eis aqui uma constatação corriqueira nas análises externas de hoje em dia (estamos no ano de 2025): as pessoas não dão a mínima — porque entretidas com as próprias telas, porque algures, longe. Um ser humano (você, no caso) parado a apreciar o semáforo jamais poderia competir com a quantidade infinita de estímulos que um telemóvel contemporâneo oferece. Para todos os efeitos, você não passa de uma placa instalada num local inconveniente.
Publicado por P. R. Cunha / 10 de novembro de 2025
Princípios
Você levanta da cama depressa demais, sente tonturas, cambaleia, faz que vai perder o equilíbrio, consegue (sabe-se lá como) se posicionar numa postura minimamente humana, vertical, e olha para o relógio sobre a escrivaninha. O relógio está ao lado do livrinho Reflexões ou sentenças e máximas morais do La Rochefoucauld. Você começou a ler esse livrinho ontem à noite, achava que conseguiria terminá-lo, como se diz, numa sentada. Mas sentiu imenso sono e colocou um marcador na página vinte e três. Ao lado do relógio e do livrinho Reflexões ou sentenças e máximas morais do La Rochefoucauld, há uma chávena de café semi-vazia (ou semi-cheia, como diria a sua tia de Niterói, senhora otimista). O psiquiatra havia lhe recomendado não tomar café depois das quinze horas, nem comer chocolate, comidas apimentadas, evitar, em suma, os estimulantes. Mas ontem, antes de começar a ler o La Rochefoucauld, você leva uma cumbuca de Nescafé para a escrivaninha, num ridículo ato de rebeldia contra o seu psiquiatra, que, em verdade, apenas finge se importar com a sua neurodivergência.
Publicado por P. R. Cunha / 9 de novembro de 2025
Proximidade
O meu vizinho de apartamento, ela disse, é este senhor idoso, carrancudo, possui casal de cães da raça Pinscher — duas feras em miniatura, sempre prontas para atacar. Quase todos os moradores do prédio odeiam esse senhor idoso. Eu de minha parte sinto pena. Outro dia toquei a campainha do velhinho, queria oferecer-lhe um pedaço de bolo, por piedade, quer dizer. Quando abriu a porta, vieram os cachorros alvoroçados, latiam como se fossem duas ambulâncias desgovernadas. Tentei fazer uma expressão indiferente, cara de paisagem, sorri, agachei, soltei onomatopeias graciosas, levantei. Não resulta: os monstrinhos estavam realmente em brasa. Volto para o meu apartamento, como eu mesma o pedaço de bolo.
Publicado por P. R. Cunha / 8 de novembro de 2025
Artérias
Estou a tomar café com o editor de um suplemento literário moçambicano e ele me pede para escrever sobre determinado best-seller insosso. Tento explicar que só resenho obras do meu agrado — sou desses. Ao que o editor retruca com azedume absolutamente justificável: pois!, diz-me de uma vez por todas qualquer obra do teu agrado, vivente. Salvo o meu coração, tudo está bem, do colombiano Héctor Abad Faciolince, livro que fala sobre incertezas, esconderijos, corações falhados e que acaba por tirar o fôlego dos leitores. O editor moçambicano toma um gole do próprio cafezinho, num daqueles consentimentos tácitos de quem compartilha da mesma opinião.
Publicado por P. R. Cunha / 7 de novembro de 2025
Quinta-feira
Era para ser uma manhã de quinta-feira como outra qualquer, ela disse, acordar, tomar banho, devorar às pressas o pequeno-almoço, entrar no automóvel, dirigir entre o caos de uma cidade modorrenta, buzinar, ouvir e proferir impropérios de toda a sorte, chegar ao trabalho como se tivesse envelhecido setenta anos, mas quis o destino que a meio do caminho eu me deparasse com uma jovem ciclista a pedir ajuda na berma da rodovia, de aí que respirei fundo, preciso de ser uma pessoa melhor, pensei comigo mesma, a ciclista precisa de auxílio, estacionei o automóvel, abri a porta, escutei o barulho agudo da motocicleta que me atingiu, como se diz, em cheio, e foi assim que perdi a perna esquerda, ela disse, nunca vou me esquecer, obviamente.
Publicado por P. R. Cunha / 6 de novembro de 2025
Condutas humanas
O sonhador…, bem, o sonhador sonha, ele disse, e falo com propriedade, pois eu mesmo já fui um desses, sempre com a cabeça alhures, nas nuvens, no campo das ideias, romântico, mas hoje sou outro homem, hoje faço parte da equipe dos práticos, vejo um problema, estudo esse problema, resolvo o problema, não peço permissão, não espero o melhor momento, não me boicoto, apenas vou e faço, é isto!, enquanto os outros pensam na morte da bezerra, eu vou e faço, ele disse.
Publicado por P. R. Cunha / 4 de novembro de 2025
E assim tenta conter tudo dentro de si
É um início de dia que, para quem está de fora, ela disse, pode parecer um bocadinho aleatório, eu começo com meditação, em russo, porque percebi que meditação guiada em russo é mesmo uma das melhores maneiras de se estudar esse ardiloso idioma com letras curiosas, depois fico a olhar pela janela, que não deixa de ser uma meditação também, observo o movimento da rua, escuto os pássaros que passeiam de árvore em árvore, ali a calçada, aqui os postes com fios elétricos desengonçados, o jardim dos meus vizinhos, penso na indiferença das pessoas que amei, pessoas às quais me entreguei muito mais do que deveria ter me entregado, penso também na ingratidão, no egoísmo, nas desconsiderações, no desdém, penso que estou sozinha, que sempre estive sozinha, de um jeito ou de outro, sozinha, e que minha âncora sólida sempre foi a literatura, meu para-raios, ler e escrever literaturas, os livros, fazê-los, apreciá-los, esgotá-los, só então é que me sento à escrivaninha, ela disse, valorizo cada palavra que coloco no papel.
Publicado por P. R. Cunha / 2 de novembro de 2025
País insular
Uma amiga minha, que numa época se apaixonou temporariamente por mim, ele disse, costumava contar para toda a gente que eu sou uma espécie de viagem às Bahamas, ou seja, é tudo muito divertido e agradável durante uns quatro, cinco dias, só que depois disso a pessoa não sabe mais o que fazer ali, quer voltar para a casa.
Publicado por P. R. Cunha / 1º de novembro de 2025
Jogo de cartas
Aqueles que buscam falar com os mortos, ela disse, são, muito provavelmente, os seres mais tristes da terra, não concordas?, porque não conseguem se conectar aos vivos, buscam uma cartada final, um último subterfúgio, a companhia de fantasmas.
Publicado por P. R. Cunha / 31 de outubro de 2025
Pugilista amador
É uma mente irascível, que não para nunca, ele disse, uma mente sufocada por pensamentos atrozes, de aí eu precisar de alguma fuga, algo de preferência agressivo, um saco de pancadas, praticar o boxe, e no meio de uma luta, ele disse, eu lembro de qualquer coisa que falei para o meu pai, que tolice aquela conversa, dez, onze anos atrás, não posso acreditar que falei aquilo, e quando «volto à realidade» (ele faz as aspas com os dedos indicadores), a luva do oponente está na minha direção, acerta o meu rosto em cheio, como se eu fosse um repolho fora da validade, caio na lona, o sangue escorre pelo nariz, e acho até que mereço esse soco, sabes?
Publicado por P. R. Cunha / 30 de outubro de 2025
O aspecto de uma folha a desabar
A verdade é que, a partir daquele momento, ela disse, passei a desenvolver uma raiva intrínseca de toda a humanidade, uma aversão irremediável, pois a vida, pelos vistos, introduz-nos nesse estado, não achas?, abrimos os olhos, perdemos o entusiasmo, eis que toda a gente parecia-me, ou melhor, ainda me parece abominável, insuportável, e cultivo cá dentro raiva, desconfiança, desprezo, e sinto que preciso mesmo de listar todos esses substantivos, um por um, ela disse, sinto que é o meu dever fazê-lo, a pessoa se expõe, se doa, compartilha, escuta, acolhe, afaga, a pessoa tem piedade, conforta os outros, anima, cura, para quê?, por quê?, para ser empurrada do precipício?…, tenho por mim que esses questionamentos são a última e a primeira linha de tudo.
Publicado por P. R. Cunha / 29 de outubro de 2025
Reparações
Contra todas as probabilidades, pelo menos naquilo que se convencionou ser «um ofício criativo», ele disse, a ocupação que mais me inspirou foi a de ajudante de pedreiro numa obra financiada pelo município de Niterói, e a despeito dos ruídos, do calor insuportável, do trabalho árduo, dos calos nas mãos, chegava em casa com as melhores ideias, escrevia furiosamente até ao meio da madrugada, quando eu simplesmente encostava a cabeça num dos tomos dos ensaios de Montaigne e experimentava uma espécie de morte súbita — acordava um bocadinho antes do sol nascer, para que o círculo vicioso recomeçasse.
Publicado por P. R. Cunha / 28 de outubro de 2025
Inacabados
Se colocamos algo numa folha de papel, ela disse, prosa, versos, se desenhamos paisagens, se compomos sinfonias, já no processo de transcrição estamos a perder a verdadeira essência dos nossos sentimentos, daquilo que nos instigara a escrever, a desenhar, a compor, tornamo-nos tradutores de nós mesmos, podemos até cultivar as melhores intenções, mas seremos sempre carcereiros do convencional, das fórmulas artificiais pré-estabelecidas.
Publicado por P. R. Cunha / 26 de outubro de 2025
Vários corpos juntos
É que existe muita influência, ele disse, somos influenciados de todas as formas, de todos os lados, daí fica difícil sermos apenas «uma» pessoa, ter uma única personalidade, essas coisas, nós mudamos a cada cinco minutos, e agora estou a segurar este cigarrinho de artista, ele disse mostrando o cigarrinho de artista, mas daqui a pouco vestirei a máscara do revolucionário anti-establishment que ainda escuta The Doors e acha as letras do Jim Morrison o que há de melhor na poesia não só do século vinte, mas de toda a história da humanidade, e sairei por aí cantarolando come on, baby, light my fire a caminho de alguma lanchonete-fast-food, porque nunca aprendi a cozinhar, ele disse, acrescente-se a isso o fato de sempre deixarmos um verdadeiro cemitério de ruínas atrás de nós, é uma cena terrível, avassaladora, projetos que começamos e nunca terminaremos, mentiras, adultérios, seres humanos que conhecemos, amamos, e depois deixamos de amar, e engana-se aquele que acredita que sairá incólume desse massacre, nós também somos descartados em cemitérios alheios, nós também seremos jogados na vala comum de uma pessoa que um dia significou tudo para nós, e que agora fecha a sepultura coletiva com o concreto armado à guisa de exorcismo.
Publicado por P. R. Cunha / 24 de outubro de 2025
Inverno
Do que eu mais sinto falta?, bom, acho que da neve, ela disse, das ruas repletas de neve, e dos telhados brancos, as árvores translúcidas, toda a gente caminha na calçada, e o clima glaciar que finalmente se equipara à temperatura do meu coração.
Publicado por P. R. Cunha / 23 de outubro de 2025
Fantasia
É como se a minha mente sempre precisasse de algo ou alguém contra o que lutar, ele disse, um barulho, uma condição desconfortável, um ser humano inescrupuloso, e se por um acaso estiver tudo tranquilo, ou seja, sem barulhos, sem condições desconfortáveis, sem seres humanos inescrupulosos, daí que meu cérebro como que cria um inimigo invisível, muito pior do que qualquer adversário real.
Publicado por P. R. Cunha / 21 de outubro de 2025
Eleva-nos e deixa-nos entrever a estranha realidade
Temperamento explosivo, estilo kamikaze e/ou terra arrasada, ela disse, o atrito da caneta, a tinta no papel, isto acalma imenso, embora eu tenha que colocar algum tipo de ruído de fundo, algo com a voz do David Eagleman, por exemplo, do contrário sou invadida por pensamentos desagradáveis, como se observada por algum bajulador incansável que não conseguimos afastar de nós, mas, fora um ou outro detalhe, a vida parece maravilhosa, não achas?
Publicado por P. R. Cunha / 20 de outubro de 2025
Notas de rodapé para a saudade (e outras distrações que não voltam mais)
É uma nostalgia bastante específica, ele disse. Isso foi em 1996, estávamos a viajar pelos Estados Unidos, meus pais, meu irmão, vovó e vovô. Ficamos num hotel em Nashville e numa altura papai nos chamou para assistirmos TV enquanto ele e mamãe se arrumavam. É uma imagem de conforto, segurança familiar, percebes? Nós quatro sentados na cama, meu pai veste o blusão de frio perto do guarda-roupa e mamãe arruma a maquiagem na frente do espelho. Todos vivos. Todos contentes por estarmos no Tennessee.
Publicado por P. R. Cunha / 19 de outubro de 2025
Contorno gráfico de uma figura teimosa
Nascido em Brasília, 1985, bacharel em comunicação social (jornalismo), possui mais livros do que um dia conseguirá ler, baterista, amante dos movimentos ginásticos, barra fixa, etc., abomina pessoas que não colocam o celular no modo silencioso, tem quem o ache áspero, convencido (vais morrer sozinho, dizem), cultiva manias, fala o russo como uma criança do primário, tira o chapéu para os leitores de Raymond Carver e àqueles que escrevem quase todos os dias embora sobrecarregados pelo fracasso inerente à empreitada.
Publicado por P. R. Cunha / 17 de outubro de 2025
Indícios
Toda a depressão parece começar com uma etapa relativamente branda de auto-boicote.
Publicado por P. R. Cunha / 16 de outubro de 2025
Mata Atlântica
Um escritor que decidiu levar a própria biblioteca com quase cinco mil exemplares para Angra dos Reis «em busca de sossego», segundo os jornais da região, estava a passar por uma espécie de crise de identidade, porque embora a vida pacata perto do oceano de fato lhe permitisse ler uma quantidade absurda de livros de outros autores, ele mesmo não conseguia escrever uma linha sequer, até que, no mês passado, ainda segundo relatos publicados pelos jornais da região, o escritor teria se dirigido ao Observatório Nuclear, de onde é possível ver com clareza as silhuetas das usinas, e depois de um momento meditativo atravessou a pé a rodovia Rio-Santos na direção da mata fechada para, a despeito dos esforços extraordinários das autoridades de Angra dos Reis, nunca mais ser visto.
Publicado por P. R. Cunha / 15 de outubro de 2025
Suspensão temporária de hostilidades
É que às vezes a vida parece dar uma trégua — momentânea, passageira, fugitiva, mas, ainda assim: trégua.
Publicado por P. R. Cunha / 14 de outubro de 2025
Manual de sobrevivência para manhãs medianas
Estava a pilotar a motocicleta e passei perto de um prédio que costumava ter um café no terraço — onde, aliás, escrevi boa parte do meu Paraquedas —, mas que agora encontra-se num sinistro estado de abandono e deterioração. Estacionei a moto e sem retirar o capacete da cabeça observei o interior do estabelecimento, as rachaduras nas paredes, mesas e cadeiras sem pernas, o ventilador de teto pendurado pela metade, o balcão onde o barista ficava a olhar pela janela como que perdido em pensamentos insondáveis. Antes de retornar à motocicleta, lembrei também que naquele mesmo café, numa ensolarada tarde de outubro, uma moça com lágrimas nos olhos disse «eu não te amo mais» para um homem com postura de estátua sentado à frente dela.
Publicado por P. R. Cunha / 12 de outubro de 2025
Divisão das briófitas
Andou todo o dia alhures a tirar fotografias das árvores e dos pássaros. Quando retornou a casa, o suor escorria-lhe. A câmara tinha vestígios de folhas secas e musgo. Será que chego ao fim deste mês, ele pensou enquanto tirava a garrafa da geladeira. Na semana passada, o tio-avô Theo morreu de causas naturais. Bebe a água do gargalo e sente um nó na garganta.
Publicado por P. R. Cunha / 11 de outubro de 2025
Margens do penhasco
Em cada novo parágrafo já reside a sombra do esquecimento, «declínio rumo às trevas», como disseram — ter ele próprio a consciência de que desaparecerá no abismo &tc. —, e quantas vezes um coração dilacerado destruiu, no escritor, a capacidade de narrar?
Publicado por P. R. Cunha / 9 de outubro de 2025
Ecossistemas
A verdade é que nos basta uma rápida e despretensiosa análise do chamado mundus naturalis e percebemos leões a caçar zebras, gazelas e coelhos correm de um guepardo, onças e jacarés lutam pela própria sobrevivência, capivaras devoradas por sucuris, foca na boca do urso polar — esse contínuo processo de consumir e ser consumido que igualmente notamos no agir humano, ao que toda a vida, cedo ou tarde, tornar-se-á elemento decompositor: quer da terra, quer do apetite de algum outro animal faminto.
Publicado por P. R. Cunha / 7 de outubro de 2025
Agenda
Ainda sou pego de surpresa quando acordo num quarto de hotel numa cidade estranha. É como estar fora do tempo. Ou melhor: fora do espaço. Escuto o barulho do primeiro tráfego matinal. Abro as cortinas e a janela. Brisa pesada no rosto. Mau tempo. Lá embaixo, perto da avenida, árvore torta sobrevive no meio da calçada de concreto. Mal se crê que seja de verdade. As luzes artificiais ainda estão acesas. Verifico o relógio: cinco e quarenta e sete. O café da manhã, diz o «MANUAL DO HÓSPEDE» grudado no pequeno refrigerador, é servido às seis. Volto minhas atenções ao outro prédio que fica desconfortavelmente perto da minha janela. Senhor grisalho do oitavo andar (contei) olha absorto para o nada. As nuvens aos poucos formam castelos — ou seriam monstros mitológicos a vestir um véu de chuva? Não compreendo.
Publicado por P. R. Cunha / 13 de setembro de 2025
Papel & caneta
Tendo esgotado as próprias forças por uma aplicação excessiva às chamadas «miudezas laborais da vida», caiu num estranho estado de paralisia do qual só conseguiu livrar-se através de um retorno gradativo às atividades literárias — esse favorável exercício, pelos solavancos emocionais que causa ao corpo, e sobretudo à cabeça do praticante, livra a alma (na falta de melhor termo) dos humores tempestuosos, dá elasticidade aos membros, restabelece as funções neurológicas, reanima o calor natural, recobra as vontades, dissipa as obstruções, abre todos os corredores, e por fim (e não menos importante!), pelo movimento contínuo que causa ao cérebro, o renova, por assim dizer, e lhe dá um vigor verdadeiramente extraordinário.
Publicado por P. R. Cunha / 11 de setembro de 2025
Obstáculos artificiais
Eu estava sentado na sacada do café que fica perto da barragem quando vi Orlando chegar de motocicleta. Ventava um pouco e o céu tinha aquele laranja característico do pré-crepúsculo. Cenário de filme. A moça que vinha na garupa desceu primeiro, tirou o capacete, jogou os cabelos para trás, parecia atordoada: ainda vais no matar pilotando dessa maneira, ela disse sem olhar para Orlando, que antes de tirar a chave do painel comentou: cedo ou tarde, seremos todos transformados em sombras. De aí os dois vieram na minha direção, como se absolutamente nada tivesse acontecido.
Publicado por P. R. Cunha / 2 de setembro de 2025
Outros tempos
Em 1642, às vésperas da Guerra Civil Inglesa, um lenhador britânico escreve no próprio diário: «É isto, estou a morrer, tudo bem, já vi demasiado». Perguntamo-nos o que seria ver demasiado para um homem pré-leis de Newton, sem energia elétrica, sem automóveis, sem rádio, Teoria da Relatividade, televisores, física quântica, aeronaves, internet, satélites orbitais, robôs marcianos. «Meus filhos foram-se embora», continua o lenhador, «e a árvore que plantei em miúdo agora faz sombra à varanda».
Publicado por P. R. Cunha / 1º de setembro de 2025
Passeio: agosto
O que faz pensar
se era mesmo apenas
palavra que se moía
dentro da cabeça do escritor —
este enigma de mármore
cujas fornalhas, pelos vistos,
nunca se apagam.
Publicado por P. R. Cunha / 31 de agosto de 2025
Apontamentos a respeito do sr. Wittgenstein
O sr. Wittgenstein constrói casa estranha para a irmã Margarete. A estranheza é proposital — ele diz —, não sou arquiteto, nem engenheiro. Aqui o sr. Wittgenstein agacha-se para averiguar pequena rachadura na porta de entrada.
«Se um leão pudesse falar, não o entenderíamos», eis um famoso experimento mental do sr. Wittgenstein. Sim, perceberíamos os sons que saíssem da boca do leão, mas não compreenderíamos a perspectiva do grande felino, porque mundos e experiências e necessidades e pontos de vista fundamentalmente distintos.
Não sou arquiteto, nem engenheiro, e muito menos um leão, disse ainda o sr. Wittgenstein antes de se despedir: sou filósofo.
Publicado por P. R. Cunha / 29 de agosto de 2025
Inter/relações
Quando duas estrelas
gigantes se confrontam
resta a escuridão
— buraco negro —
o nada.
Aprecias os teus sentimentos diante de literaturas da mesma maneira que acompanhas o desenrolar da tua vida. Estás envolvido num imbróglio: como traduzir com palavras o que se passa nos teus pensamentos abstratos. E não deixa de ser batalha: contra a linguagem, contra a semiótica, contra certa inutilidade.
Para quem observasse «de fora», a tua poesia soaria encantadora. Mas por dentro é outra coisa — um vulgar bocado de substantivos (ou algo pior).
Publicado por P. R. Cunha / 28 de agosto de 2025
Qual o teu papel como sujeito que escreve…
…abraçar a indefinição, deixar as janelas do pensamento sempre abertas para que a brisa possa arejá-lo — atitude descompromissada que permite adaptações de acordo com as circunstâncias. Instala-se, dessa forma, a flexibilidade. Tudo bem mudar de opinião, contradizer-se. O escritor não é estátua de mármore, antes assemelha-se a um castelo de areia minutos antes da maré subir.
Publicado por P. R. Cunha / 26 de agosto de 2025
Qual o teu papel como sujeito que escreve…
…é preciso se colocar em aventuras arriscadas para valorizar o retorno ao porto seguro — estou a falar sobre o teu retiro literário, onde estás protegido, amparado. Não é necessariamente a perda irremediável, trata-se antes de uma ameaça, uma quase-catástrofe, digamos assim. Porque tu atravessas situações em que a vulnerabilidade caótica coloca em risco o teu refúgio, e a correnteza te afasta das margens, daí, numa jornada homérica, consegues nadar de volta à praia, vestes umas roupas quentinhas e sentes imensa gratidão ao dizeres: o que seria de mim sem este abrigo de papel?
Publicado por P. R. Cunha / 25 de agosto de 2025
Qual o teu papel como sujeito que escreve…
…pode acontecer de estares a meio de uma ideia que te parecia promissora, inventiva, e de repente percebes que não vai dar em nada, ao que tu deixas a ideia de lado, os dias, como se diz, passam, estás quase a esquecer da ideia, até que qualquer coisa acontece, um gatilho intrigante, e a ideia te vem à cabeça novamente, e agora ela faz todo o sentido, torna-se imprescindível, singularidade, o fermento do teu melhor manuscrito de sempre — sim, pode acontecer.
Publicado por P. R. Cunha / 22 de agosto de 2025
Qual o teu papel como sujeito que escreve…
…costumas associar a tua autodisciplina à persistência, ou melhor, à resistência, porque escrever é maratona, e se o maratonista não tem fôlego, coloca tudo a perder. O ponto de viragem, insistamos nisto: se não estás à escrivaninha, o mundo como que se dissolve, não faz sentido. De aí sabes que estás contaminado (no bom sentido [e também no mau sentido]) por esta atividade canhestra a que os antigos chamavam de literatura.
Publicado por P. R. Cunha / 20 de agosto de 2025
Qual o teu papel como sujeito que escreve…
…após um par de décadas em que arriscaste a tua sanidade neste curioso ofício de escrever, percebes com cada vez mais clareza que a dinâmica papel-e-caneta é misteriosamente parecida com os teus relacionamentos humanos — precisas de espaço, de sentir as saudades, recuperar o fôlego. Até que de súbito te assola uma força motriz capaz de mover transatlântico nas águas congeladas do Ártico: daí, descreves (ou convives) novamente.
Publicado por P. R. Cunha / 17 de agosto de 2025
Qual o teu papel como sujeito que escreve…
…a escrita tem esta capciosa habilidade de te fazer sentir como gênio incompreendido num instante para logo depois, em questão de segundos, colocar-te, como se diz, no teu devido lugar, e ficas desnorteado, simplesmente encolhido num canto a perguntar, afinal, «que diabos estou a fazer da minha vida».
Publicado por P. R. Cunha / 16 de agosto de 2025
Qual o teu papel como sujeito que escreve…
…ser metódico, não subestimar os benefícios de uma rotina bem regrada, é quase uma obsessão: a chávena de café sempre no mesmo horário, a mesa de madeira que não irrita os olhos, a caneta quatro cores, o caderninho de anotações com páginas amareladas, os exercícios ginásticos para os períodos de descompressão. Estamos longe do escritório, ficamos dois ou três dias sem escrever, fingimos calma e juízo à guisa de sociabilidade, mas, por dentro, gritamos: não creio ser capaz de ficar mais um segundo sem a minha ficção.
Publicado por P. R. Cunha / 8 de agosto de 2025
Qual o teu papel como sujeito que escreve…
…devemos insistir na inacessibilidade, trancar a porta do próprio escritório, não ver ninguém, não pronunciar palavra — o mundo de certeza não acabará nesse ínterim (e se por um acaso acabar, ora!, paciência). Quanto mais tempo de qualidade conseguires permanecer absorto em pensamentos, nessa espécie de «zona criativa à Tarkovsky», mais o teu trabalho ganhará fôlego, isso é certinho.
Publicado por P. R. Cunha / 6 de agosto de 2025
Qual o teu papel como sujeito que escreve…
…estar atento aos detalhes em redor, isto é o mínimo, manter alimentação balanceada, nutrir o próprio cérebro, coabitar o planeta com seres humanos significativos — a verdade é que nesta altura já sabes direitinho o que te traz saúde, o que te causa desastre, focar, portanto, no que te traz saúde (parece simples, e de fato o é), longas caminhadas a nenhures continuam a ser importantíssimas, perder-e-achar pensamentos, o horário do teu trabalho é sagrado, desligar telemóveis, manter-se suspenso, mesmo que por apenas um par de horas.
Publicado por P. R. Cunha / 5 de agosto de 2025
Amor, um delírio (fins)
É madrugada. Estás acordado, pensativo, com os dedos entrelaçados sobre o peitoral. A pessoa que tu tanto amavas se mexeu, arrastou-se um bocadinho para o teu lado da cama: ei, preocupado com alguma coisa?, ela pergunta. Insônia, tu dizes. Ela espera alguma outra reação tua, mas ficas na mesma, ela então volta a se ajeitar no próprio travesseira, olhando para o teto do quarto. O que aconteceu com a gente?, tu perguntas, e a pessoa que tanto amavas permanece em silêncio.
Publicado por P. R. Cunha / 3 de agosto de 2025
Amor, um delírio (era dos extremos)
Apesar de estar muito bem sozinho, o solteiro resignado não esquece que lidar com o amor é lidar com contrastes — entre ter imensas coisas a dizer e não ter mais nada a dizer. A parte agressiva desse enredo é que em boa parte dos casos passamos por essas etapas extremas diante da mesma pessoa (ou pelo menos acreditávamos que pudesse ser a mesma pessoa).
Publicado por P. R. Cunha / 2 de agosto de 2025
Amor, um delírio (outra estação)
Existe o amor romântico puro?, ou melhor: é possível isolar o amor das expectativas de reciprocidade, das exigências mútuas, da dicotomia direitos-e-deveres, das promessas eternas, das transferências de responsabilidade, ou do simples medo de morrer sozinho? O amor que só funcionasse de facto no campo das ideias, nas pré-intenções, no inatingível.
Publicado por P. R. Cunha / 1º de agosto de 2025
Amor, um delírio (linguagem corporativa)
Diz aquele antigo provérbio chinês: escolhe bem os teus amores. E aqui entramos mais uma vez no campo das especulações. Na vida de toda a gente há sempre uma tia, um primo, uma cunhada que tratam de demonstrar vasto conhecimento de causa nos assuntos afetivos, e utilizam termos como: cobranças, deveres, débitos, prestações de contas, deadline, justificativas, segmentos, renúncias — tias, primos, cunhadas que, em suma, falam sobre o amor como se descrevessem uma empresa em processo de falência fraudulenta.
Publicado por P. R. Cunha / 31 de julho de 2025
Amor, um delírio (combustão)
Certa vez me disseram que o amor correspondido é como aquela carta que recebemos de alguém que nós é caríssimo: as palavras podem ser fortes, irresistíveis e marcantes, mas se aproximamos demasiadamente da fogueira, tudo vira cinzas.
Publicado por P. R. Cunha / 30 de julho de 2025
Amor, um delírio (outra anatomia)
Eu me sinto um frisbee lançado a nenhures quando determinado amigo pede a minha opinião sobre esta ou aquela pessoa por quem se apaixonara: estou terrivelmente interessado em Fulana, diz o amigo, que agora começa a declarar um inventário de como conheceu Fulana, o requinte cultural de Fulana, e como a voz de Fulana é doce como as águas do Nilo (eu mesmo nunca experimentei para sabê-lo), e que os olhos de Fulana são como duas portas que dão para o infinito cósmico (e eu cá achava [ingenuamente?] que após os olhos haveria o nervo óptico, e depois o cérebro, mas a cabeça de Fulana deve ser mesmo qualquer coisa gigantesca), e diz também, o amigo, que não consegue dormir, nem se concentrar no trabalho, pois só pensa em Fulana, e quer estar com Fulana, viajar com Fulana etc. etc. Eis uma amostra isolada de como o amor pode ser fascinante e inebriante para quem está apaixonado e um verdadeiro estorvo para o pobre sujeito que tenha de ouvir sobre ele.
Publicado por P. R. Cunha / 29 de julho de 2025
Amor, um delírio (incompreensível)
É tardezinha. Casal troca carícias perto do lago. Os ventos sopram com imensa força. Ele pergunta em voz alta enquanto protege os olhos: serás minha até quando? A mulher tenta ajeitar os cabelos, ela fala, porém a confusão e o barulho da ventania não deixam que ele compreenda a resposta — a cena tem um quê de peça de teatro escrita por Ionesco. Fico com uma vontade louca de rir.
Publicado por P. R. Cunha / 28 de julho de 2025
Amor, um delírio (domínios)
Uma imperatriz que após longos e tortuosos embates finalmente conquistasse certo reino de difícil trato e depois, satisfeita, negligencia a nova posse, quer ir atrás de outros desafios — é forçoso dizer que ela, segurando o escárnio de suas emoções primitivas, faz o mesmo com os amantes humanos, e a isso alguns chamam de «amor».
Publicado por P. R. Cunha / 27 de julho de 2025
Amor, um delírio (teoria das cordas)
Paulo Mendes Campos foi chamado de pessimista e ridículo quando escreveu que «o amor sempre acaba», e eu cá fico pensando que os universos paralelos devem mesmo existir, porque somente uma criatura que vivesse em outra dimensão rotularia de pessimista e ridículo alguém que revelasse uma das maiores certezas da raça humana: que o amor realmente acaba, numa esquina, por exemplo, depois de teatro e silêncio, longe dos parques de ouro onde começou a pulsar.
Publicado por P. R. Cunha / 26 de julho de 2025
Amor, um delírio (verosimilhante)
Afastei-me do amor romântico apesar dos conselhos dos amigos e também devido a eles, pois no meio da multidão de gentes hipnotizadas (ou com anseios de serem hipnotizadas) pelo assim chamado fogo da paixão (sic), haverá sempre uma alma semelhante com quem podemos conversar livremente sem que numa altura da conversa nos diga: é porque ainda não encontraste a pessoa certa.
Publicado por P. R. Cunha / 25 de julho de 2025
Amor, um delírio (corpo opaco)
Descobriremos analogias amorosas por toda a parte se mantivermos os olhos atentos — como no caso da bela moça cujo coração escureceu, passou de radiante a melancólico porque a sombra do rapaz por quem ela se apaixonara tapou-lhe a luz.
Publicado por P. R. Cunha / 24 de julho de 2025
Amor, um delírio (desatar-se)
O amor ideal talvez seja outra coisa. Um laço que não se aperta, mas antes que se solta, que se afrouxa. É dizer: gosto de ti imenso, por isso deixo-te respirar.
Publicado por P. R. Cunha / 23 de julho de 2025
Amor, um delírio (sucessões)
O que um solteiro amargurado saberia sobre o amor? Tudo e, principalmente, nada. O solteiro amargurado sabe, por exemplo, que mudamos de opinião em relação aos seres humanos que amamos — ou, como diria Mircea Cărtărescu, que acreditamos amar, mas nunca sabemos ao certo que tipo de amor é esse. Se amor dependente, temporário, se amor parasita, custoso, fatal. Um dia: eu te amo, alguns anos depois: não suporto mais a tua voz. Então o indivíduo olha para outra pessoa, sente-se atraído por ela, aproxima-se e implora novamente: faz-me feliz. Como era de se esperar, a outra pessoa se assusta imenso.
Publicado por P. R. Cunha / 22 de julho de 2025
Amor, um delírio (profundezas abissais)
Duas pessoas apaixonadas dizem: estamos preparadas para uma relação mais profunda. E ambas começam a mergulhar num dos incontáveis paradoxos amorosos, a saber: quanto maior a profundidade e a intensidade desse sentimento, mais é possível perceber o quão efêmero e inconstante ele se mostra. O que era para sempre, não tem sequer um caráter muito duradouro. À medida que o mergulhador avança, passa a sentir os efeitos da pressão abissal, mas o cérebro permanece eufórico, alucinado, mesmo que farsas e mentiras e miragens estejam a sufocá-lo, prefere continuar inundado por uma complexa interação de dopamina, endorfina e serotonina. O mergulhador, porém, começa a perder os sentidos, a água entrará nos pulmões, o fôlego vacilará — e a luz apaixonada que antes iluminava a superfície com o poder de mil sóis, dispersar-se-á nas profundezas glaciais. E isto está longe de ser hipótese, é algo que tu podes compreender perfeitamente com os teus próprios olhos, pois de certeza já testemunhaste um afogamento parecido, não é mesmo?
Publicado por P. R. Cunha / 21 de julho de 2025
Amor, um delírio (olheiros)
Qual seria o papel do solteiro resignado nesta época de amores fugidios? Apenas testemunhar — pois sabe-se que um solteiro doutrinador é tão insuportável quanto o romântico que elabora poemas nauseabundos para uma mulher que ama outro ser humano. Talvez possa rabiscar algumas notas, escrever ensaios com aquele distanciamento providencial de quem não participa, de quem não toma partido. O solteiro é como um controlador de tráfego aéreo que desde o conforto da torre percebe início de incêndio na turbina direita de uma aeronave que acabou de decolar: resta-lhe torcer.
Publicado por P. R. Cunha / 20 de julho de 2025
Amor, um delírio (tecido-espaço-&-tempo)
No amor, como na literatura ficcional, semeamos indícios, deixamos rastros, insinuações, geramos expectativas, certa sensação de fatalidade iminente — queremos, em suma, domesticar o acaso, construir justificativas à narrativa caótica dos sentimentos. E poderia um planeta moribundo a milhares de anos-luz de distância nos ensinar mais a respeito desse intricado processo do que os próprios seres humanos que, como se diz, sentem na pele as feridas amorosas? Estou a falar de KOI-55b, um planeta que é duas mil vezes mais quente do que a superfície do nosso sol por razões no mínimo perturbadoras: foi engolido e depois golfado pela estrela ao redor da qual existiu. Sim, não leste errado: KOI-55b estava dentro da estrela que durante milénios serviu-lhe de abrigo, e quando o astro luminoso contraiu-se, o que deixou para trás foi uma bola de pedra incandescente menor do que a Terra, mas que, em tempos, chegou a ser do tamanho de Júpiter. Tudo o que era atmosfera, camadas exteriores, tudo o que fazia de KOI-55b um gigante gasoso foi queimado, arrancado, diluído, devorado por um sol que lhe guiava pela escuridão do universo. E, no entanto, o planeta persiste, continua a orbitar o carrasco, tal e qual um navio avariado que não sabe para onde ir. Cientistas garantem que o pouco que restou de KOI-55b há também de evaporar-se e o ciclo enfim se fechará — como se até os astros tivessem um ponto de saturação, e o amor cósmico, num silêncio sem testemunhas, também acabasse em ruínas.
Publicado por P. R. Cunha / 19 de julho de 2025
Amor, um delírio (juras)
A partir do momento em que se faz necessário falar «eu te amo», já aí o amor começa a desvanecer. Como se verbalizá-lo fosse uma maldição.
Publicado por P. R. Cunha / 18 de julho de 2025
Amor, um delírio (eu vos declaro)
Relato de amor de Alfredo, 96 anos, casado há quase oito décadas com Magdalena, 94 anos: às vezes eu acordo de madrugada e me viro para o lado da cama e vejo aquele corpinho frágil e velho da pessoa que mais amei no mundo e desejo que ela não se mexa, é isto, desejo que minha Maggie esteja morta para que eu também possa ir-me junto, daí finalmente descansaríamos em paz.
Publicado por P. R. Cunha / 17 de julho de 2025
Amor, um delírio (rituais)
Aqueles que se agarram ao amor romântico como náufragos à procura de um qualquer destroço do navio à laia de sobrevivência talvez fiquem um bocadinho aborrecidos (i.e. perplexos) com este vocabulário, mas acontece que as semelhanças entre casamentos e funerais são demasiadamente explícitas para serem ignoradas. Comecemos esta breve e oportuna análise pelos trajes — as roupas escolhidas com solenidade, o terno do noivo, o terno do morto, centro das atenções (noivo parado no altar, morto deitado no caixão). Funeral e casamento, ambos pedem silêncio, reúnem testemunhas, há quem goste ou odeie secretamente os noivos, o defunto não tem melhor sorte. Os coreógrafos e os cenários dessas cerimônias: o padre, o juiz de paz, as igrejas, a música sacra, as capelas, as casas de campo, as coroas de flores, o buquê da noiva. Não nos esqueçamos também das lágrimas, pois chora-se imenso nesses eventos, como se todos ali logo percebessem que estão diante de um ato trágico, irreversível.
Publicado por P. R. Cunha / 16 de julho de 2025
Amor, um delírio (pré-requisito)
Um verdadeiro estudo sobre o amor só pode mesmo ser escrito por um solteiro cheio de amarguras.
Publicado por P. R. Cunha / 15 de julho de 2025
Amor, um delírio (raízes do drama latino)
Parece não ser coincidência que nas línguas latinas — gramáticas elaboradas para expressar sentimentos de povos com sangue quente e corações alucinados — a palavra «amor» tenha certas afinidades fonéticas e semânticas com o substantivo «dor»: amore e dolore (italiano), amour et douleur (francês), amor y dolor (espanhol), Iubire și durere (romeno), amor i dolor (catalão), amor e dor (galego). Saímos de casa, observamos os latinos que galanteiam-se e magoam-se para depois buscarem consolos em fugas desvairadas. No entanto, passam-se alguns dias, as feridas ainda nem cicatrizaram, e lá estão novamente: presos no mesmo círculo vicioso de cortesias e apunhaladas, como se nada tivesse acontecido.
Publicado por P. R. Cunha / 14 de julho de 2025
Amor, um delírio (aproximar-se do abismo [façanhas])
Calma no mar, diz o marujo — mas não fala propriamente das ondas, é antes um suspiro, fôlego que se recupera, pois o marinheiro encontra-se longe da verdadeira fonte dos próprios infortúnios, a saber: aquela mulher inatingível que sempre olha algures.
Publicado por P. R. Cunha / 13 de julho de 2025
Amor, um delírio (prólogo)
Para M. L., criatura dócil
Tendo vivido o amor romântico intensa e desesperadamente, a passar inúmeras vezes pelos nove círculos concêntricos do inferno, sinto-me, como se diz, mui à vontade para escrever um par de linhas a respeito desse sentimento tacanho e traiçoeiro. Comecemos pelas metáforas, imagens, sinônimos e eufemismos utilizados nos discursos da praxe: o amor romântico é laço, é comunhão, é interesse, é unir-se ao outro, o amor romântico sufoca, prende, amarra, incendeia — se estás a ler essas descrições e sentes subir pela garganta uma certa angústia claustrofóbica, por favor, acalma-te. Ou quando Ser Humano X deseja (e o verbo é intencional) Ser Humano Y, e gritam-se conquistas, posses, batalhas, prêmios, hipnoses, feitiços, propriedade privada, Sicrana é minha esposa, Fulano é meu namorado, enquanto alguns são soberanos, outros tantos fazem os papéis de súditos, subservientes, de, numa palavra: bobos. No amor romântico, fala-se muito também sobre o apetite, devoro-te, consumo-te com o meu querer insaciável, mas não chores, pois arruinar o teu coração é prova de todo o carinho e apreço que sinto por ti. Percebes?
Publicado por P. R. Cunha / 12 de julho de 2025
Perspectivas
A cena é até bem simples: o sr. Novalis está numa festa, de início as opções são quase infinitas, porque o sr. Novalis pode muito bem sentar-se, perambular pelo salão, manter conversa informal com alguma desconhecida, pode dançar (deveras improvável), pode ir à mesa de frios comer qualquer coisa insossa, mas à medida que a festa se alastra o sr. Novalis começa a perceber o espaço-tempo como uma espécie de funil retraindo-se, e no meio do funil, obviamente, está o sr. Novalis, a sentir os sintomas de sempre — fixações absurdas, tremores, ansiedades, tonturas, náuseas —, quando de súbito alguém se aproxima e diz «boas!, sr. Novalis, quero lhe desejar os parabéns, soube que terminou de escrever o livro», ao que o pobre do sr. Novalis olha em todas as direções, à procura de esconderijo, mas em festas assim nunca podemos nos esconder, não é mesmo?
Publicado por P. R. Cunha / 10 de julho de 2025
Hábito
Como acontece com tantos outros escritores, mesmo depois de escrever o livro este autor continua a tratar praticamente dos mesmos temas da narrativa finalizada — ato contínuo, efeito Doppler (ou então, se quisermos ir mais além: este autor se agarra aos assuntos que nos últimos tempos o definiram como «um ser que se esconde, cria, destrói, e [d]escreve»).
Publicado por P. R. Cunha / 9 de julho de 2025
Bases inseguras
Depois de finalizar um trabalho de fôlego — que me tomou quase cinco anos de planeta Terra —, sinto aquele vazio que subjaz tudo o que fazemos, e entre aversões e afetos e delírios o cérebro melindroso avança a custo, tentando processar paradoxos: quero terminar de escrever o livro que me consome, mas não quero abandonar (nem ser abandonado pelo) livro que me consome, em resumo: não gostava de perder meu único porto seguro em épocas de imenso desassossego, embora eu saiba muito bem que o fim é inevitável, e assim por diante.
Publicado por P. R. Cunha / 7 de julho de 2025
Estrado provisório de tábuas
O teu relacionamento de amor e ódio com a literatura é um completo absurdo — bom, pelo menos a parte do ódio, porque seria como se alguém ficasse com raiva de um prédio, da estrutura arquitetônica per se, por causa das atrocidades que ocorreram dentro desse prédio, que não teve culpa de nada, mesmo quando o prédio cai, não é culpa dele, mas de quem deveria ter feito as devidas manutenções, etc.
Publicado por P. R. Cunha / 5 de julho de 2025
Ceifa
Estás esparramado na cama, seguras com ternura o livro, abajur ilumina as páginas cor de creme, luz nostálgica, e com uma brutalidade inesperada um pensamento te tira do devaneio literário, um daqueles pensamentos que te atingem como um martelo, a saber: que num futuro (próximo ou um pouco mais distante) irás recordar desta noite com pesar e dirás: aqueles eram os tempos tranquilos.
Publicado por P. R. Cunha / 4 de julho de 2025
Paisagismo
Enquanto longe, evitando os vestígios de toda a gente, com o coração, diria Homero, devorado de tristeza, num confortável estado de alheamento (por fora e por dentro), li que a existência humana é algo que acontece, brevemente, entre duas representações do nada (Costică Brădățan), e, à moda Pascal, não procuro senão conhecer o meu vazio entre essas duas representações.
Publicado por P. R. Cunha / 1º de julho de 2025
Estruturas complexas
Passo dias, semanas intermináveis sem escrever uma linha sequer, observo o mundo microscópico das formigas, filas e filas de formigas, carregam folhas, terra vermelha, galhos, detritos vegetais, constroem castelos de formigas, túneis & câmaras subterrâneas de formigas — continuo sem escrever uma linha sequer.
Publicado por P. R. Cunha / 29 de junho de 2025
Desgraças inevitáveis — ou como se adaptar à má sorte
Não é apenas um estar-se inspirado, ter lá as melhores ferramentas à disposição, escritório climatizado, bela paisagem na janela, a força motriz do escritor é antes de qualquer coisa o improviso, o correr riscos, o seguir em frente a despeito dos contratempos, porque entre ruínas, hesitação, catástrofes, interrupções e imprevistos, o livro faz-se.
Publicado por P. R. Cunha / 24 de março de 2025
O barquinho
Aprecio a sensação
que me invade
depois de atravessar
períodos tão tormentosos
quando o meu barco perdido
num mar de indiferenças
transformara-se numa
mera tábua de madeira
esfarrapada
tudo partia
tudo afundava
tudo se desintegrava
— será esta então
a derradeira viagem —
até que de súbito
filamentos cortam
aquelas nuvens irascíveis
surge a tímida fresta
de céu azul o suficiente
para recobrar o fôlego
e é mesmo um prodígio
que eu não me tenha naufragado desta vez.
Publicado por P. R. Cunha / 23 de março de 2025
Parabólica
Gosto de acreditar que possuo esta antena interna a qual utilizo para detectar livros & pessoas, em outras palavras: percebo com certa antecedência se determinado livro é bom ou ruim, & também se determinadas pessoas são boas ou ruins — embora nem sempre a antena esteja devidamente sintonizada, o que não deixa de causar uma série de situações constrangedoras.
Publicado por P. R. Cunha / 19 de março de 2025
Sexta-feira à noite
Luminária acesa
eu leio o meu livrinho
eu tomo a minha sopinha
estou de pijama
estou velho.
Publicado por P. R. Cunha / 14 de março de 2025
São Paulo
As pessoas
em São Paulo
andam mais
depressa
Não deixa de ser curioso, quando estou a passeio numa cidade que não é minha, e que, de muitas formas, nunca poderia ser minha, numa cidade alheia, ou melhor: alienígena, não deixa, portanto, de ser curioso observar com olhos tacanhos e reducionistas o cotidiano dos assim chamados «nativos», da assim chamada «gente local», e percebo com cada vez mais clareza como a velocidade me entristece, como o não conseguir ficar parado me entristece, como o estar sempre à procura de qualquer outra coisa me entristece, enquanto a leitura lenta e despretensiosa do meu manuscrito — daquilo que em breve se tornará o meu melhor livro de sempre —, enquanto essa leitura lenta e despretensiosa e introspectiva acompanhada de um café preto como a madrugada de uma noite sem lua (é Lynch) me deixa absolutamente feliz, um prazer que me empenho em prolongar por horas.
Publicado por P. R. Cunha / 1º de março de 2025
Die Ameise [ou, simplesmente, a formiga]
Cai mais uma tempestade
e formiga a carregar
folha sobre a própria cabeça
a chuva é irascível
formiga não titubeia
continua a carregar
— folha sobre a própria cabeça
Encontro-me com amigo ao café e ele diz: pareces cansado, andas a escrever livro, não é mesmo?
De uma catástrofe a outra.
Publicado por P. R. Cunha / 27 de fevereiro de 2025
Sujeito inexistente
Estive por aqui
mas estive calado.
[…]
Descansa!
o dragão te manterá seguro.
Publicado por P. R. Cunha / 21 de fevereiro de 2025
O zen lunático: areia
Ao dar início a um novo livro, o escritor pode se sentir absurdamente poderoso — como aquele miúdo na praia que começa a cavar a areia na esperança de chegar ao outro lado do planeta.
Publicado por P. R. Cunha / 22 de janeiro de 2025
O zen lunático: confirmação
Sim, os escritores gostam mesmo de ficar no alto das coisas e observar o mundo.
Publicado por P. R. Cunha / 21 de janeiro de 2025
O zen lunático: observatório
A vida do escritor aos trinta e nove anos: uma escola de observação de abandonos.
Publicado por P. R. Cunha / 20 de janeiro de 2025
O zen lunático: alvo
Quem, escrevendo todos os dias, não atingirá uma vez o alvo? — como aquele estalajadeiro de Glasgow que durante 417 noites tentara acertar a bolinha de pingue-pongue no copo de uísque do bartender, e na noite 418 ele finalmente acerta, ao que o bartender diz: o senhor é mesmo muito bom nisso.
Publicado por P. R. Cunha / 19 de janeiro de 2025
O zen lunático: superfície
Mas só é simples à superfície.
Publicado por P. R. Cunha / 18 de janeiro de 2025
O zen lunático: vingança
Tentar explicar-se através da escrita, com todo o tempo para os pormenores, para voltas e reviravoltas, para as ruminações, vinganças da praxe, é mesmo uma grande tentação.
Publicado por P. R. Cunha / 17 de janeiro de 2025
O zen lunático: idioleto
Se tiveres uma narrativa que não queres que determinadas pessoas compreendam, põe-lhe um muro para o qual não tenham a escada — que é o mesmo que dizer: escreve numa linguagem absurda, num idioleto.
Publicado por P. R. Cunha / 16 de janeiro de 2025
O zen lunático: tinta
Às vezes a caneta do escritor transborda bile negra, tinta pesada que obscurece até o sol.
Publicado por P. R. Cunha / 15 de janeiro de 2025
O zen lunático: acaso
São os incidentes, e não os eventos organizados, que antes parecem desempenhar um papel crucial nas trajetórias humanas — movemo-nos muito mais ao acaso do que nas certezas.
Publicado por P. R. Cunha / 14 de janeiro de 2025
O zen lunático: sono
O sono, como já disseram, é o irmão mais novo da morte: dormimos cinco, seis, sete horas, estamos suspenso, deixamos de existir para o chamado «mundo real».
Publicado por P. R. Cunha / 13 de janeiro de 2025
O zen lunático: inutilidade
Depois de determinada idade, digamos que aos quarenta, o ser humano parece acumular dentro de si uma série de vestígios sombrios, lembranças odiosas, como diria Valéry, de ter caído numa cilada, de ter acreditado e de ter sido trapaceado, de ter sido feito de idiota, há também vestígios de traições, amores negligenciados, abandonar e ser abandonado, um sentimento de vazio, de inutilidade, de tudo isso para quê?
Publicado por P. R. Cunha / 12 de janeiro de 2025
O zen lunático: ausência
Chega a altura em que tudo se resume a isto: tu estás onde ela não está mais.
Publicado por P. R. Cunha / 11 de janeiro de 2025
O zen lunático: dor
Não é o vício da dor, é o vício da quase recuperação da dor, quando o sujeito, ainda com as mãos ensanguentadas, olha para as feridas e diz a si mesmo: sobrevivi, de novo.
Publicado por P. R. Cunha / 10 de janeiro de 2025
Pensamentos mínimos (oito)
Ficar sentado sozinho com uma folha de papel simplesmente estar com ela é uma das melhores coisas do mundo.
Publicado por P. R. Cunha / 9 de janeiro de 2025
Pensamentos mínimos (sete)
Às vezes é necessário encarar o manuscrito e dar-lhe um senso de propósito por menor que seja porque do contrário as palavras param de respirar.
Publicado por P. R. Cunha / 8 de janeiro de 2025
Pensamentos mínimos (seis)
Não se pode entrar e sair de um «momento de fluxo» a bel-prazer — é espetáculo raro e o convidado atrevido que interrompê-lo será expulso aos pontapés.
Publicado por P. R. Cunha / 7 de janeiro de 2025
Pensamentos mínimos (cinco)
Escreva coisas que a maioria das pessoas jamais se atreveria escrever.
Publicado por P. R. Cunha / 6 de janeiro de 2025
Breves entrevistas com escritores furiosos #15
[…]
Amiúde, as palavras são lâminas e a alma sangra em versos, um naufrágio inevitável no abafado denso das memórias crônicas, nos medos que se cristalizam em metáforas, na raiva que ecoa em rimas e, ainda assim, o incômodo é quando nenhuma delas rasga o silêncio e as entranhas ficam expostas ao frio do papel em branco, esse desconsolo, e ao estranho vício de escrever —a teimosia.
Publicado por P. R. Cunha / 5 de janeiro de 2025
O zen lunático: coração
A despeito de incontáveis tentativas de mistificá-lo/glorificá-lo, o animal humano continua a ser uma máquina orgânica e reprodutora cujo coração um dia para de funcionar.
Publicado por P. R. Cunha / 2 de janeiro de 2025
O zen lunático: suspiro
Silêncio como expressão de recusa: não falo, nego-me a participar, escudo contra a alienação — caminhos ardilosos criados pela tua própria cabeça —, um auto-antídoto, portanto, um passinho para trás, um regresso àquela simplicidade fácil e gratuita, um suspiro.
Publicado por P. R. Cunha / 1º de janeiro de 2025
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