Incrível delírio — entrevista com P. R. Cunha sobre o lançamento de Sinfonia do fracasso (Ases da Literatura)
O problema não é a entrevista em si eu simplesmente não gosto de falar e se estou num café e me dá vontades de escrever e outras pessoas perceberão que estou escrevendo afinal é um café movimentado como todos os cafés contemporâneos sempre movimentados com toda a sorte de algazarras e música alta e motocicletas barulhentas e não se tem mais sossego em parte alguma então que outras pessoas perceberão que estou escrevendo e isso não me incomoda mas se alguém se aproxima e diz AH VEJO QUE ESTÁ ESCREVENDO que é um pouco como dizer a um cozinheiro que ele está a cozinhar ou a um motorista que ele está a conduzir e se esse alguém quer saber sobre o que escrevo como eu escrevo o que me inspira a escrever disso eu nunca dei conta ao que me levanto e vou-me embora naturalmente muito aborrecido.
Minha ideia era que não conseguissem encontrar um sítio apropriado para Sinfonia do fracasso que o livro pudesse estar tanto na seção de música quanto na de teatro nas prateleiras de filosofia terror cinema fotografia mas isso não vai acontecer irão colocá-lo em literatura brasileira mesmo.
Se não estou em erro Marshall McLuhan escreveu que os esquimós ainda vivem nos chamados espaços acústicos basicamente espaços onde a fala é imprescindível fale então poderei enxergá-lo e eu mesmo não suportaria ser um esquimó digo isso com o devido respeito eu me deixaria congelar na neve sim prefiro virar um cubo de gelo a ter de falar para poderem me enxergar.
O universo não tem qualquer obrigação de ter sentido gosto imenso dessa frase o universo não nos deve nada as estrelas tampouco têm sentido galáxias buracos negros não têm sentido mas então vêm um animal humano com pretensões egocêntricas e senta-se confortavelmente à escrivaninha e fabrica lá uma dúzia de sentidos e quantos leitores não caem na cilada não é mesmo?
Se abro a boca só falo asneiras e às vezes tenho mesmo de evitar ler entrevistas de alguns escritores porque eles também abrem a boca e falam asneiras e isso de certeza destrói a experiência literária como um filósofo alemão corretamente dizia não conheçais os vossos ídolos etc. etc.
E querem sempre um posicionamento o que acha disso o que acha daquilo e o governo tal e o movimento tal e se falamos qualquer coisa distorcem tudo e tiram de contexto e nos fazem de palhaço para tomar o exemplo mais à mão.
Outro dia dei comigo a pensar que sou uma espécie de antena e não uma antena boa mas uma daquelas antenas terríveis toscas pouco resistentes e portanto sensíveis a qualquer tipo de interferência externa então tento proteger a antena do contrário a transmissão sai com imensos ruídos e quem ligasse o rádio na minha frequência achar-me-ia insuportável contraditório e se reflito melhor a respeito chego à conclusão de que por mais que eu tente proteger a antena ela está constantemente exposta e fora de sintonia o que aliás acontece com todas as antenas até as melhores antenas ficam expostas e fora de sintonia apesar de não saber até que ponto isso me serve de consolo.
Pelo menos os escritores que eu admiro escritores que leio e releio escritores que copio descaradamente e mastigo e transformo todos escreviam ou ainda escrevem para como se diz escapar de infernos.
Até porque se pensarmos com a devida seriedade logo perceberemos que os conceitos são mutáveis a depender de vários fatores e o conceito de sucesso é igualmente líquido mas sinto-me pouco à vontade se tentar desenvolver essa analogia pois li pouco da obra do Zygmunt Bauman agora podemos analisar o conceito de sucesso na literatura e há escritores megalomaníacos que almejaram toda a espécie de fama queriam ser o centro das atenções para quem o sucesso seria uma data de leitores e uma data de resenhas nos jornais e nas revistas e uma data de prémios e uma data de encontros com autoridades e há o outro lado do espectro há o Walser escrevendo palavras miudinhas numa casa de loucos há o Leopardi escrevendo crónicas para nenhures há os totens poéticos do recluso Ernst Herbeck e quantos não acham que o sucesso literário é nada mais nada menos do que saber lidar com os fracassos ou seja fracassar inúmeras vezes e mesmo assim seguir adiante para gáudio dos leitores acordar escrever e fracassar dia após dia.
Andamos lá muito pertinho do abismo e por vezes apetece chegar ainda mais pertinho e cada vez mais pertinho do abismo e se há alguém atrás a nos observar pode ser que essa pessoa fique aflita com o que vê.
W. G. Sebald o Thomas Bernhard o Samuel Pepys o Melville o Kafka o Pynchon em linhas gerais o poder do escritor está na própria capacidade de permanecer em silêncio fora da obra o aspecto psicológico o tédio da rotina o esperar e esperar e esperar e nada acontecer a monotonia é brutal absolutamente implacável e nada disso aparece nos livros nos planos de divulgação das editoras nas notinhas de rodapé querem obviamente o livro pronto para ser consumido o bolo sai do forno e devoram o bolo sem pensar nos ingredientes do bolo no caos em que ficou a cozinha ao preparar o bolo não faz sentido nenhum.
Escritor unicamente escritor nada mais que escritor porém isso não é possível nunca foi e nunca será possível há sempre outra coisa por fazer.
E às vezes vêm tempestades devastadoras e temos que nos esconder em alguma cave até a fúria passar e às vezes a fúria passa depressa noutras vezes persiste a tempestade que inunda tudo e o sujeito procura as margens agita-se até às margens mas não há margens só lama e barro e pântano tive muitas ocasiões de presenciar isso.
Poucas coisas me parecem mais absurdas do que escrever romance talvez jogar xadrez contra um computador invencível ou ir morar para Marte entrar num foguete e ir para um planeta absolutamente hostil que tentará matá-lo de tantas maneiras isso também me parece um absurdo tão absurdo quanto fitar folha de papel por horas e dias e semanas e meses e nada acontece nada se mexe nada sai do lugar.
Empurrar um transatlântico com as próprias mãos e a mão direita está fraturada e você é destro.
Alguma coisa no entanto faz com que o sujeito insista a tragédia literária é rica em lições a respeito e pelos vistos cada um precisa de encontrar e cultivar essa força motriz esse incrível delírio seja ele qual for porque insistir será sempre tarefa do escritor de ninguém mais.

Autor: P. R. Cunha
Edição: 2023
Editor: Ases da Literatura
Coleção: Novos Ases
Idioma: Português
Páginas: 132
Tipo de produto: Brochura
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