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[sítio web do p. r. cunha // escritor, fotógrafo & músico]

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Etiqueta: monólogo

Paradoxo de Fermi com mojito

A afeição pode se revelar nos momentos mais inesperados, ele comentou enquanto enchia o copo dela. Quero dizer, ele continuou, onde diabos estão os alienígenas? Ela deu um gole no rum, ele se aproximara — o tímido sol escondia-se entre as árvores, os últimos raios de luz entravam pela janela retangular do restaurante e atingiam perpendicularmente o rosto da moça, que corava à medida que a bebida surtia-lhe efeito. Ando realmente perplexo com essa pergunta, ele disse, alienígenas, paradoxo de Fermi, sabe?, bilhões de estrelas na nossa galáxia, estrelas parecidas com a nossa, grande probabilidade de planetas como a Terra rodearem essas estrelas, sistemas solares bem mais antigos do que o nosso, um cenário deveras adequado para o surgimento de toda a sorte de civilização, e ainda assim: nada, nothing, rien, die Null, nichts. Ela sorriu sem mostrar os dentes. Estamos presos nesta bola rochosa, ele disse, no meio de um vasto nenhures, ele disse, e por vezes sinto cá uma coisa estranha, incontrolável, ele disse, imprevisível, que vai-e-vem-vai-e-volta, algo que não obedece aos meus planos, uma coisa que faz o que quiser, quando quiser, ele disse, e quando chega, parece aniquilar a minha alma, aos pouquinhos, ele disse, como se eu estivesse fisicamente a me desmantelar, um buraco, sim, ele disse, um buraco negro no meu coração, ele disse, e acho que tenho dificuldade em compreender isso. A moça permanecia calada, observava o passeio lá fora, umedecido pela garoa, e as folhas do outono a cair perto do hidrante com aquela velha tinta amarela.

— P. R. Cunha

Publicado a Outubro 19, 2018Categorias LiteraturaEtiquetas brasília, brasil, buraco negro, coração, cosmos, literatura brasileira, literatura portuguesa, mojito, monólogo, p. r. cunha, paradoxo de fermi, paulo renato souza cunha, portugal, sistema solar, universo8 comentários em Paradoxo de Fermi com mojito

Tudo o que se pensa está sempre a ser devolvido ao ponto de partida

— Para a Elisa

(Um homem entra pela direita e senta-se numa banqueta — centro do palco. Holofote ilumina o corpo do homem.)

(Limpa um pigarro invisível)
Eu sou o Maior
Ator do Mundo
e esta peça obviamente
foi escrita pelo Maior
Escritor do Mundo
(Pausa)
que não veio
ao teatro hoje porque
sente medo do público
É natural que o Maior Dramaturgo
do Mundo sinta medo
do público
O público só lhe faria mal
O público aniquila os
maiores dramaturgos
sempre aniquilou
De modo que muito prudente
da parte do Maior Escritor
barra Dramaturgo
barra Artista
do Mundo
não estar presente hoje
e sinto cá um orgulho
perverso nisso
Só o Maior Ator do Mundo
disse-me o Maior Dramaturgo do Mundo
só o Maior Ator do Mundo
poderia encenar a minha
peça sem que eu comparecesse ao teatro
no dia
ou melhor
na noite da apresentação
Não vem
Não veio
o Maior Dramaturgo
digamos assim
para encurtar
Maior Dramaturgo
simplesmente Maior
Dramaturgo
sem portanto
do Mundo
Simples e direto
Maior Dramaturgo
como tem de ser
Teatro da cenografia
ele disse
dramaturgia experimental
tudo visual
Senta numa banqueta
e conta lá a minha história
Ele disse
(Pausa, estica as pernas)
o Maior Dramaturgo
teatro concreto
Para o Maior Ator do Mundo
Eu no caso
Foi sempre o que ouvi dizer
Maior Ator do Mundo
Leva tudo às costas
não precisa de outros atores
Outros atores só lhe
me
atrapalhariam
Senta e conta a minha história
(Pausa, olha-se dos pés à cabeça)
História dele
Maior Dramaturgo do Mundo
A história se chama
(Tira um papel do bolso, lê:)
Tudo o que se pensa está sempre
a ser devolvido ao ponto de
partida
Título incrível
como não podia
deixar de sê-lo
A história é a seguinte
(Bebe um gole d’água e põe logo o copo de parte)
Estou sentado à uma mesa
dentro da biblioteca da
Universidade de Brasília
e uma jovem dama olha na minha
direção
Vejo que ela tem cabelo castanho
olhos esverdeados
veste um casaco preto
à moda Beckett
Que há de mais terrível que receber
as olhadelas de uma bela
senhorita e não saber se são
de facto
direcionadas para si
(Pausa, olha para o relógio)
Eis o que penso desta tese
1) a moça estaria a olhar
em verdade para algum vivente
sentado atrás de mim
(Olha atrás de si)
2) talvez fosse estrábica
improvável
3) e se estivesse a refletir sobre uma
qualquer passagem ardilosa
que acabara de ler e congelasse
a vista num ponto aleatório
e calhou de esse ponto aleatório
ser a minha própria cabeça
Interessante conjectura
4.1) supor que ela esteja realmente
a fitar-me
4.2) estaria eu com alguma sujeira
para os lábios
Sobras do pequeno-almoço
mancha de café
geleia de amora
etc.
4.3) remela nos olhos
difícil de perceber a uma
distância desta
4.4) cabelo desgrenhado
infantilidade
5) trata-se portanto de um olhar
zombeteiro
ou um flerte despretensioso
ou uma coincidência momentânea
afinal em espaços fechados
só se pode olhar para direções finitas
(Para o público)
Do que sei eu
Atrás de mim não se tem vivalma
(Olha atrás de si)
elimina-se a possibilidade 1)
não é estrábica
falo ainda da moça
naturalmente
Pode-se estar a refletir sobre uma
qualquer passagem ardilosa
Sim
Pode
Não tenho nada para os lábios
Meu rosto está limpo
(Toca no próprio rosto, teatral)
Nada de sobras do pequeno-almoço
nem de remelas
É evidente que isso já é um
avanço
Cabelo satisfatoriamente
em ordem
Sem muita convicção
concluo
portanto que trata-se de
um flerte
Alguma espécie de flerte
A dama é bonita
sinto-me lisonjeado
Agora o que fazer
1) continuar a observá-la
arriscando-me seriamente
a ser tachado de maníaco
2) desviar o olhar
sentir-me satisfeito com o flerte
momentâneo
dar o caso por encerrado
3) levantar-me e ter com a dama
apresentar-me em suma
Jamais
Completamente fora de cogitação
4) levantar-me e ir-me embora
mas tenho ainda tanto para ler
5) piscar à antiga
Isso já seria ridículo
(Subitamente)
Nada faço
A dama deita para a mochila
os livros
Mamet
e Carver
e Foster Wallace
e Calvino
e Stendhal
Cultíssima
Que mulher
Deita os livros para a mochila
e como se diz
desaparece
(Pausa)
Sem desilusões
é a palavra certa
Sem desilusões
Ao ponto
de partida

(Pano cai)

— P. R. Cunha

Publicado a Março 27, 2018Março 27, 2018Categorias TeatroEtiquetas absurdo, banqueta, brasília, brasil, calvino, carver, desilusões, foster wallace, mamet, monólogo, o maior ator do mundo, o maior dramaturgo do mundo, p. r. cunha, palco, peça teatral, portugal, stendhal2 comentários em Tudo o que se pensa está sempre a ser devolvido ao ponto de partida

Manual de sobrevivência do escritor (um monólogo epistolar)

Para Johnny Salvatore, do outro lado do Atlântico

Reduzir-se ao mínimo possível. Não utilizar indumentária dispendiosa. Camisas, de preferência, sem estampa (a estampa pode [deve] incomodar [i.e.: distrair] quando fazenda literária). Coma somente o necessário. Vender o relógio de ouro do vovô (herança do vovô). Ter poucos amigos. Casos amorosos aqui e ali, mas sem, como se diz, ancorar-se no oceano alheio. Levar a cabo investigações (in)escrupulosas da própria consciência de «escritor que nunca será compreendido pela sociedade». Afastar-se da vida «normal» (é Handke). Estar-se sempre preparado para o fracasso, puro e simples fracasso, tê-lo como uma espécie de estímulo. Dizer para toda a gente: escrevo, não quero ser incomodado, não me convidem para canto algum — depois, sentir-se extremamente aborrecido, indignado, branda depressão (drama), por ninguém lhe convidar para canto algum. Descreva-se como gostaria que fosse, não como se é, pois que a realidade nunca foi (e nunca será lá) grande coisa. Minta sempre que for necessário. Minta também quando não for necessário. Beba o café, fá-lo forte, sem açúcar, café-de-cowboy (café de Joe Gould). Cultive a loucura, prepare-se para ser chamado de louco: fulano escreve, fulano perdeu a cabeça, fulano é ridículo. Diga sempre: há-de chegar a altura em que escreverei meu grande romance; nunca escreva este grande romance. E, last but not least, lembre-se de que quando se deixa passar a ocasião certa, ela nunca mais volta.

— P. R. Cunha

Publicado a Março 24, 2018Março 24, 2018Categorias LiteraturaEtiquetas brasília, brasil, café, caliath, epistolar, escritores, johnny salvatore, lisboa, literatura brasileira, literatura portuguesa, livros, manual de sobrevivência, monólogo, p. r. cunha, paulo renato souza cunha, pierre cunha, poeta, portugal11 comentários em Manual de sobrevivência do escritor (um monólogo epistolar)

Memória biográfica reduzida ao mínimo

De início eu morava com os meus pais. Depois eu cresci um bocadinho & disse: pai, mãe, vocês têm qualidades positivas, mas isto de eu cá morar com vocês não está certo. Minha mãe chorou. Meu pai nunca foi de chorar & naturalmente não foi dessa vez que ele chorou. Então conheci a Isolda & nós nos casamos & esse tipo de coisa. A Isolda ficava postada atrás de mim com uma faca enquanto eu me matava de escrever. Eu não podia parar nem por um segundo que ela erguia o facão, afiadíssimo, por sinal, & dizia: termina, anda lá, termina antes que eu lhe meta isto no peito. Ela o fazia porque lera qualquer coisa numa revista francesa sobre um pintor impressionista desses & parece que alguém ficava atrás dele com um machado, pois sem o machado o pintor impressionista podia esquecer-se do que estava a tentar alcançar. Isolda não era boa da cabeça. Só bebia uísque & vodca, mais nada; vodca & uísque a toda hora. Era esse o tipo de mulher que ficava a me observar enquanto eu me esgoelava, como se diz, para escrever & ela tinha consigo o maldito facão, percebe? Até que um dia eu tive mesmo de ser direto & perguntei sem paninhos quentes: Isoldinha, você não pensa em se utilizar dessa faquinha afiada, pois não?, quero eu dizer, é só teatro, não é?, de brincadeira, não é?, & a Isoldinha lançou-se sobre mim & enfiou a faca no meu ombro esquerdo & eu gritei: você não bate bem!, não está boa da cabeça!, & meu ombro sangrava. Nós nos divorciamos, claro. Espírito perturbado, a Isolda. Meses depois deu-me na telha de ir à livraria perto do meu apartamento & na calçada tinha um corpo em pedaços & uma multidão formara-se ao redor desse corpo estilhaçado. Era o corpo de uma mulher, podia-se ver pelos cabelos longos & ondulados & o rosto fino. Não vou negar que cheguei a pensar que aquele fosse o corpo da minha Isolda, mas era a filha do dono da livraria. Como não poderia deixar de ser, a cena terrível da filha do dono da livraria no meio da calçada, com aquela multidão ao redor, tudo isso causara-me náuseas & desisti de ir comprar os livros. Fui nadar ao invés & gostei de perceber que uma senhora de uns oitenta anos fitava-me na piscina com aquela traquinagem um tanto ou quanto despudorada que só as senhoras de uns oitenta anos sabem demonstrar.

— P. R. Cunha

Publicado a Março 23, 2018Março 23, 2018Categorias Literatura, Um conto por diaEtiquetas biografia literária, brasília, brasil, contos breves, literatura brasileira, literatura portuguesa, monólogo, natação, p. r. cunha, paulo renato souza cunha, pierre cunha, portugal, uísque, vodcaDeixar um comentário em Memória biográfica reduzida ao mínimo

Monólogo #1 – Confiar cegamente em alguma decisão que se toma e que depois se revela equivocada

Lata de lixo no meio do palco. Homem — cabelo claro, com risco ao meio, barba rala da mesma cor — segura moldura de um retrato envelhecido. Pijamas com motivos abstratos. Meias brancas. Homem vira, observa a plateia.

A gente começa
se desfazendo das
pequenas coisas
é terrível
absolutamente terrível
O retrato do meu pai
que me causava muita
tristeza
porque os olhos do meu pai
(mostra o retrato do pai)
isso toda a gente sabe
não é segredo para ninguém
de modo que não vou me sentir
culpado por falar desta forma
já que
repito
toda a gente sabe
que meu pai tinha os olhos de
melancolia
o tédio
trabalhava numa ótica
a montar os óculos dos outros
meu pai
(mostra o retrato do pai novamente)
que tinha olhos de tempestades
A gente se desfaz primeiro dessas
pequenas coisas
Retrato do pai
lembrança de alguma mulher
que um dia amamos
depois a odiamos
As coisas são mesmo assim
e depois que descobrimos o padrão
gostar amar odiar detestar
depois o que se passa
é que não conseguimos mais nos perder
na vida de ninguém
repudiamos na verdade
ojeriza
Pai triste
olhos tristes
lembrança triste
mulher triste
(pausa, bebe água, olha para a plateia)
jogamos tudo para o lixo
tudo dentro daqueles sacos pretos
(segura um saco preto)
como os sacos pretos
de enterrar humanos
instituto médico legal
necrotério
Enterramos os objetos dos humanos
jogamos para o lixo a memorabilia
por assim dizer
é simbólico, sem dúvida
ato simbólico
(joga o retrato do pai para o lixo)
olhos tristes do montador de óculos
objeto da mulher triste
amávamos agora odiamos
(joga tudo para o lixo)
É assim
Terrível
A minha mãe também
não era lá muito satisfeita
mas dela não posso falar muito
não a conheci
parece que fugiu depois de se
recuperar do parto
Fui um bebê difícil de sair
podemos dizer desta forma
difícil de sair
Então minha mãe fugiu do bebê
difícil de sair
e do meu pai
dos olhos do meu pai
suponho
E me parece óbvio que
esses traumas de bebê
bebê feio
difícil de sair
resmungão
Esses traumas com os quais
no decorrer da vida
(pausa, quer beber água, a água acabou)
o bebê cresce e lida com esses
traumas e cria para si
o bebê difícil de sair
cria para si toda a sorte
de obsessões
com a limpeza
por exemplo
Retrato do pai
retrato da mãe
pessoas tristes
mulher triste
amei sim
muito
odiei sim
mais ainda
As obsessões com essas limpezas
saco de necrotério
(segura outro saco de lixo)
é escuro o saco de lixo
porque não podem ver
o que jogamos para o lixo
Objetos, pedaços de seres
humanos
não podem ver
Seria perturbador se vissem
Obsessões com limpezas
Pretendemos enganar a quem
com esses livrinhos organizadinhos
e o chão impecavelmente
(inclina-se, toca no chão com o indicador direito)
brilhante
tudo limpo
tudo dentro dos conformes
Enganar a quem
anotar monólogos teatrais nos
papéis alvos
quatro cores de caneta
tipologia irretocável
Bonito de se ver
Enganar a quem
Saco preto necrotério
cinzas exumação
bebê difícil de sair
bebê feio
olhos de tempestade
mulher triste
Enganar a
morte.

(Cai o pano)

— P. R. Cunha

Publicado a Fevereiro 26, 2018Março 6, 2018Categorias Literatura, TeatroEtiquetas brasil, dramaturgia, lembrança, literatura brasileira, literatura portuguesa, memória, monólogo, p. r. cunha, pai, paulo renato souza cunha, peça, portugalDeixar um comentário em Monólogo #1 – Confiar cegamente em alguma decisão que se toma e que depois se revela equivocada
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