Personagens
Angustiada, mulher na casa dos trinta com agorafobia
Zélia, amiga de Angustiada, dona de uma loja de sapatos
A ação passa-se em Brasília em frente do Seu Patrício Querido Café.
Ato Único
É tarde, por volta das quinze horas. Angustiada e Zélia estão sentadinhas. Num volume ameno, confortável, toca Lágrimas, de Kelton Gomes.
ANGUSTIADA
Há qualquer coisa no meu marido
que me dá vontade de
cortar os pulsos
(Ela faz o dedo indicador da mão direita de serra, tenta cortar o pulso da mão esquerda com o indicador direito. Zélia arregala os olhos.)
ZÉLIA
Às vezes assustas-me
ANGUSTIADA
Homem terrível
com uma família igualmente
terrível
mãe irmã primos irmão
gente terrível
(Pausa.)
ANGUSTIADA
Percebes bem
o que estou eu a dizer
(Zélia levanta o cardápio, discretamente.)
ANGUSTIADA
Um pavor
ou melhor
um ódio mortal
gostava de vê-los mortos
ele claro
ele principalmente
e a irmã
sim
os dois
principalmente ele e ela
cunhada e marido
(Acentua a palavra marido, divide-a em sílabas.)
ma-ri-do
(Pausa.)
odiáveis
(Pausa.)
monstros
(Garçom aproxima-se. Angustiada pede macchiato, Zélia o cappuccino.)
ANGUSTIADA
Vamos para o nosso
oitavo ano de casados
bodas de lã
ou bodas de algodão
nunca sei
ZÉLIA
Barro
ANGUSTIADA
Como é
ZÉLIA
Oito anos de casamento
bodas de barro
ANGUSTIADA
Bodas de merda
vai lá
(Garçom coloca macchiato e cappuccino sobre a mesa.)
ANGUSTIADA
Ronca
não ajuda em nada
pede-me para lavar as ceroulas
aquelas ceroulas horrorosas
roupa interior
molha a casa de banho
joga a toalha no chão
arranha as panelas com
a esponja de aço
(Pausa.)
Eu lhe falo
cacete
usa a parte amarelinha da esponja
ele usa a parte verde
arranha destrói
faz de propósito
(Zélia dá um gole no próprio cappuccino.)
ANGUSTIADA
Volta tarde
meia-noite
uma hora da manhã
três horas da manhã
bêbado
obviamente
muito bêbado
com aquele cheiro
conhaque
Dreher
Jägermeister
monstro
(Zélia mastiga o biscoito de natas que veio com o cappuccino.)
ANGUSTIADA
(Faz que vai se levantar, não levanta.)
Xinga-me
diz que estou acabada
que não sirvo
que envelheci
ele diz
estás velha
caduca
estás a perder os dentes
(Mostra os dentes para a amiga.)
tenho-os cá todos
todos os dentes
os sisos inclusive
trinta e dois dentes
(Mostra os dentes para a amiga novamente.)
meus dentes
(Sorri, orgulhosa dos próprios dentes.)
(Passa uma senhora a vender panos de prato — Angustiada e Zélia não precisam dos panos de prato.)
ANGUSTIADA
Tédio
pavor
desprezo
este gênero de sentimento
repete-se incessantemente
ser humano lastimável
eu penso
onde fui me meter
eu penso
(Pausa.)
Até que me traz flores
o maldito
trouxe-te flores
amorzinho pra lá
dependência
amorzinho pra cá
ódio
como está o cheiro das flores
ele me pergunta
estão cheirosas as florzinhas
ele me pergunta
necessidade
e de ali estamos na cama
um horror
(Zélia acende o cigarro. Garçom diz que ali não pode fumar. Zélia apaga o cigarro.)
ANGUSTIADA
Amanhece
e volta a ser como antes
esquece-se
caio em desuso
sou ruína
de novo
pergunta-me se lavei-lhe as ceroulas
pergunta-me o que teremos para o jantar
e volta às três da manhã
com cheiro de Campari
Vermouth
Bitters
Aperol
e não só
(Zélia respira profundamente, como se estivesse a praticar a vipassanā meditation. As luzes escurecem.)
FIM
— P. R. Cunha