Dizer que determinado texto é irônico («escrevi este texto, trata-se de um texto irônico») torna-o ainda mais irônico ou o quê?
Há vinte anos que os assim denominados «estudiosos linguísticos»* discutem as aplicações do tristemente afamado AO90 — Acordo Ortográfico de 1990, para os menos apressadinhos. E todas as dificuldades de implementá-lo (garganta abaixo, diga-se) deveriam bastar para perceberem que os idiomas são sim organismos vivos, mutáveis/adaptáveis, mas que não se dão bem com terminologias intervencionistas tais como:
delegação de observadores, ortografia oficial unificada, normas, adoção, processo negocial, proponentes, regulação estatal legislada, valor jurídico…
Etc. etc.
Esse tipo de vocabulário pode funcionar aos quartéis militares, às forças armadas ou aos bordéis, mas não com a gramática, a gramática e as formas de utilizá-la têm outro relógio, outra dinâmica.
A maleabilidade linguística leva tempo, não pode ser imposta. Trata-se de uma falésia preguiçosa a ser moldada pelas marés — ondas por vezes calmas e serenas; noutras, intempestivas e furiosas.
Meu bisavô, por exemplo, escrevia cartas com palavras assim: pharmacia, côr, êste, êle, philosophia, pilôto, phosphoro, exhausto, psalmo, commercio, lyrio, theatro. Futuramente, nossos netos podem até dizer: vovô e vovó escreviam coração com cedilha.
(Se é que a palavra escrever fará algum sentido.)
No livro Nova gramática finlandesa o autor Diego Marani relata a história de um finlandês rebelde que não sucumbia às investidas do exército russo. Porém, diante da derrota iminente, o gajo teria dito aos soldados estrangeiros: podem conquistar as nossas terras, mas nunca conquistarão o nosso idioma.
A difícil língua finlandesa a servir de último panteão da resistência. Bonito isso.
Vejamos agora, à guisa de recreio, alguns trechos aleatórios da música Yendo a la casa de Damián, da banda uruguaia El Cuarteto de Nos. O letrista Roberto Foccacio, com a ironia da praxe, coloca o dedo na ferida ao mostrar como o idioma espanhol também tem sido invadido por adjetivos e substantivos alienígenas (grifos meus):
Yendo un weekend a lo de Damián / Tenía urgencia de hablar con el man / Caminé porque pinché mi van / Vi una mina de la que soy fan / La saludé pero me hechó fly / Hacía un spot de Carefree / Y un jingle de los jeans Lee / Y que se rellena el soutien / Con corned beef y chou mien / Y a pesar de que usa Channelle / El security se puso heavy / Era malo pero usaba Levy’s / Era happy hour en el cabaret / Era fashion y tenía moquette / Como un pub cool y con pool / Y después de un breve impass / Entré a ver un show con free pass / De un master que tocaba jazz / A pesar de tener un bypass / Pero cayeron desde un penthouse / En mi ojo un teclado y un mouse / Ciego y perdido por el stress / Yo que en inglés solo se decir ‘yes’ / Pensé en el libro de Herman Hess / ‘Soy un loser como un boyscout’ / Y de la vida me declaré out […]**
Os excelentíssimos linguistas poderiam primeiro se preocupar com tais invasões — anglicismos, idiotismos e por aí fora — antes de perderem a cabeça (e as estribeiras) com a utópica adaptação da lusofonia às novas regras ortográficas.
Aqueles que se incomodam com essas arbitrariedades em Angola, Moçambique, Brasil, Portugal, Guiné-Bissau, Timor-Leste, Macau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe agradeceríamos imenso.
— P. R. Cunha
*A classe é terrivelmente abrangente, com membros que operam nas mais diversas áreas, de política à sociologia.
**Vale a pena escutar a canção inteira [https://www.youtube.com/watch?v=K7XcO81TckU], cujo ritmo dançante contagia o ouvinte que está a sentir-se um bocadinho down.
Em Portugal há personagens raivosos com o último Acordo. Vixe! Nada fixe.
O senhor Nuno Pacheco (vide publico.pt) andou a publicar cóleras a respeito do AO90 — «porque irreversível, neste mundo», ele disse, «só mesmo a morte».
Tretas…
Sim, ele e outros(as). 😊
Da parte dos outros países de língua lusófona não sinto protestos semelhantes.
P.S.: não consigo curtir suas respostas. Carrego, carrego no botão e nada. Eu leio-as. Rsrs
Acho a discussão válida desde que ela faça o gigantesco transatlântico linguístico sair do mesmo sítio de sempre. Não parece haver consenso — nem entre aqueles que são contra o AO, nem entre aqueles que apoiam o AO. Enquanto isso, ignoram o fato/facto/elefante na sala de a nossa querida língua portuguesa estar a beijar a lona depois de tantos ganchos e cruzados das abreviações, dos estrangeirismos, das corruptelas diversas, kza, vc, qro, pq, vms, tbm, bjs e que tais relacionados.
A respeito das curtidas, são apenas cortesias tácitas.
Abraços e bom fim-de-semana!,
P.
A grande idiotice do acordo nem é a imposição de novas graphias ou o corte com as pistas etimológicas (como o sempre citado exemplo de “epilético” vs”epilePsia”).
A grande idiotice do AO, é dizer que certas palavra se podem escrever como nós quisermos, que tanto “actor” como “ator” é correcto, dependendo da forma como cada um pronuncia a palavra. Isto, quando a ortografia é, por definição, a uniformização da escrita, só me soa a uma regressão aos textos medievais, em que tudu éra excritu confórm suava, purq num sabião melhor.
Concordo imenso consigo, Marta.
Um acordo que se pretende unificador e permite lá tantas exceções/excepções é de dar voltas à cabeça.
Difícil de ignorar, independentemente de acordo-bom-e-ou-acordo-ruim, a forma como a língua portuguesa tem sido mutilada em mensageiros tipo WhatsApp, blogues etc. Pelos vistos, está cada vez mais complicado falar em uniformização da escrita — é cada qual a praticar o próprio idioleto.
Entende-se quem puder.
Abraços para si,
P.
Sim, e esta velocidade toda de comunicação mudou tudo. Temos o corrector automático do smartphone, já não precisamos de saber escrever
Abraços!
M.
Interesante. Es verdad que el español está invadido de anglicismos de tal manera que muchos de ellos ya han sido aceptados y añadidos al diccionario de la Real Academia de España. Y mientras tanto van cayendo en desuso muchísimas palabras, lo que está empobreciendo el lenguaje común, el que hablamos todos los días.
Los mensajes han hecho muchísimo daño a la lengua, como dices, al final olvidaremos lo que es escribir…
Un abrazo.
Sí, es una situación melancólica, amiga mía.
¿Qué se puede hacer?
Bueno… Vamos aprovechar: mientras todavía recordamos, mientras todavía podemos escribir.
El futuro pertenece a nadie.
¡Abrazos!,
P.